O relógio e a delicadeza
Na capacidade de gerar vínculos de afeto, Lula é inigualável. O que o terá levado a trocar a pedagogia política pela noção simplória de “entrega”? Ou a ser impaciente e descortês, na cena constrangedora em que se despediu de Nísia Trindade?
Publicado 05/03/2025 às 16:03 - Atualizado 05/03/2025 às 16:07

Por João Carlos Salles
1. “Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás.” Talvez essa seja a frase mais reproduzida em cartazes e camisetas, sempre acompanhada da icônica foto do Che, a imagem de um revolucionário. Ainda que Che Guevara nunca a tenha enunciado exatamente assim, a frase continua a expressar o melhor espírito da militância e nos oferece uma chave humana única, a nos inspirar em meio a uma dura luta de resistência contra obscurantismos e ditaduras.
Agora, porém, esse tipo de sensibilidade parece apartada da política, de qualquer linha política. No chão duro da gestão e das lutas partidárias, a alma delicada pode até ser acusada de despreparo e fraqueza. A política seria para os fortes e, em geral, feita sem deixar testemunhas. Nesse campo, portanto, estaria abolida qualquer sensibilidade excessiva — como a que, outrora, com o perdão da impropriedade, diziam ser feminina.
A sensibilidade, ao contrário, deveria ser a própria medida do humano. Infelizmente, costuma-se endurecer com o concomitante sacrifício de qualquer ternura. Esquecem muitos que, com isso, a completa rispidez, sobretudo no detalhe, pode deixar marcas terríveis. Conseguimos, muita vez, sobreviver a grandes ataques, mas todo nosso sangue pode esvair-se por um corte mínimo, quase à flor da pele.
É claro que alguma selvageria faz parte da interação humana, como se fora um traço perene de toda sociedade. Não cabe aqui nenhuma ilusão. Porém, essa atitude do tipo “não é nada pessoal, são apenas negócios” pode ser a regra em outro contexto que não o da política, uma vez que esta sempre há de exigir justificativas, e essas são irredutíveis a meros resultados.
2. Um teste da rudeza política precisa ser formulado, indicando quem tem mais chances de sobreviver e vencer na política e quem, por outro lado, pode representar uma visão humana e progressista. Arrisquemos um possível questionário — e resta a curiosidade em saber a opinião do eventual leitor, caso queira associar as características abstratas descritas abaixo a nomes de nossa política, embora esta nossa especulação seja tão somente, como se diz, uma mera obra de ficção.
Os políticos não se distinguem por terem mais ou menos inteligência, vale lembrar. A inteligência é um dado de destino, estando ela, ademais, bem distribuída por todas as categorias, de sorte que não implica por si só traços virtuosos de caráter. Tendo isso em conta, podemos perguntar quem costuma vencer a luta política:
- Quem atropela seus adversários e desrespeita interesses alheios ou quem hesita em atravessar um sinal?
- Uma pauta progressista ou valores tradicionais e reacionários?
- O democrático na gestão ou o autoritário?
- Quem representa valores ou quem luta por interesses?
- Prevalecem os realistas ou os tocados pela utopia?
- Quem se mede pela óbvia superioridade da força ou quem se inclina por argumentos, detalhes e, quem sabe, lenga-lengas?
A lista de questões pode ser ampliada em muito, em traços largos ou acerca de decisões imediatas, visando a desvelar aspectos ideológicos, psicológicos, políticos e intelectuais. Se não nos enganamos no diagnóstico, afirma-se amiúde a crueldade da pragmática política. As divisões da infantaria tendem sempre a prevalecer sobre os cuidados da banda de música. E ganha um doce quem souber elaborar uma classificação das personalidades ora no poder ou fora dele, neste momento ou em outros, proporcionando o poder efetivo dos governantes em conformidade com a cadeia de características desse teste — ou de algum outro mais sagaz e apropriado.
De nossa parte, arriscamos privadamente uma simulação, sem discriminar nomes, pois alguns são óbvios demais para merecerem ser citados. Nada tinha de improvável a conclusão pavorosa a que chegamos de poderem parecer mais aptos para a política e terem mais poder aqueles capazes de reunir as características, digamos, de serem ideologicamente reacionários, politicamente autoritários e pessoalmente grosseiros.
Um absurdo, sem sombra de dúvida; mas tais atributos podem ser lidos como aptidão para a política e mais propícios à obtenção de resultados, de modo semelhante a como a competição parece a muitos preferível por ser ela capaz de nos fazer chegar ao “melhor dos resultados”, mesmo ao preço de extrair o pior das pessoas. Por outro lado, aplicando o mesmo teste, espíritos sensíveis, corteses e dispostos a múltiplos “considerandos” estariam condenados ao fracasso e à obsolescência.
Dada essa taxonomia, com a projeção de cenários infernais, quem sabe até que ponto podem chegar essas pessoas rudes no exercício do poder. Tampouco podemos prever o quão subservientes a seus desmandos podem ser os que, sem a devida altivez, lhes atribuem méritos que estão longe de ter ou direitos que lhes deveríamos recusar.
3. São grandiosos e raros os líderes capazes de acrescentar uma nota pessoal ao exercício de suas funções públicas. Toda figura pública sabe que o jogo é duro. Entretanto, em meio à conflagração de interesses, o grande líder estabelece um vínculo único e pessoal com seus seguidores — um vínculo tão forte que parece independer de circunstâncias as mais mesquinhas e outras quaisquer ninharias mortais. A gente não quer só comida, afinal de contas; a gente quer comida, diversão e arte. Trabalhamos até em dobro para retribuir um simples afago, uma atenção que nos pareça sincera. Como lembrava um bom pregador, gentileza gera gentileza; e a aridez pura torna-se o terreno natural apenas para os capazes de sacrificar princípios por interesses.
Na capacidade de gerar um vínculo especial com as pessoas, nosso presidente Lula é inigualável. Seu abraço nos aparece sincero, acolhedor, sendo capaz de dobrar quaisquer resistências e de fascinar mesmo os mais céticos. Considerem esta uma declaração assumidamente feita sem a mais mínima prova. Esses laços intransferíveis só podem ser atestados por quem já teve a experiência de alguma prosa, de algum ritual, mesmo fugaz, de aproximação e acolhimento. Ou seja, não podem ser provados para quem não os conheça e dispensam demonstração para os convertidos.
Agora, entretanto, temos múltiplos testemunhos de que, supostamente, parte do encanto teria esmaecido — o que talvez se reflita na recente queda de aprovação do governo. Como é possível, todavia, que um laço assaz indemonstrável se dissolva? Como poderia faltar à liderança mais acolhedora seu poder de encantamento? Permitam-me aqui uma hipótese, esta também resistente a uma mera prova.
Ora, é mesmo difícil entender a mudança, se ela, de fato, existe. Afinal de contas, a prisão não o tornou amargo, mas talvez, é parte de nossa hipótese, tenha retirado muito da sua paciência. Retornou à cena valorizando então os que lhe trazem mais “entregas” e as mais imediatas, conquanto para isso possam embaralhar agressividade pessoal e argúcia política. O tempo encolheu.
É incalculável, contudo, o dano que pode resultar do convívio com pessoas alçadas a grande poder, mas cuja inteligência (geralmente grande) pode conviver com a falta de polidez e, por vezes, com visões reacionárias da vida em comum ou com métodos agressivos e autoritários para a obtenção de quaisquer resultados. Não pode ser só nem sobretudo isso, é claro; mas é isso também. Nosso presidente deveria tomar um banho de folha e afastar as pessoas nefastas, recuperando sua característica sensibilidade e sua singular gentileza.
4. Em suma, a maior liderança brasileira precisa voltar a gastar mais do seu tempo no cuidado com o outro — virtude em cujo exercício não tem igual. Entretanto, episódios recentes o mostram bem distante disso. Mostram, sim, uma impaciência crescente, algo que nenhum expediente de comunicação pode curar.
E, não duvidem, adversários que são um perigo para nossa democracia hão de cobrar qualquer deslize e ampliar qualquer falta. A direita, sobretudo, constitutivamente violenta, aguarda ansiosa para mostrar que, de pleno direito, a pauta da agressividade e da exclusão é toda sua, mesmo quando revestida de títulos acadêmicos e discursos técnicos de competência.
Além do banho de folha, que é de lei, sugiro que nosso presidente seja invadido por algum lirismo. Afinal de contas, perante um contexto tornado árido e feito sob medida para fazer parecer mais fortes os que, homens ou mulheres, apenas são mais rudes, há que contra atacar com alguma poesia.
Para entendermos a gravidade de um gesto banal, valhamo-nos aqui de um dos nossos mais sensíveis poetas, Mario Quintana, capaz de extrair poesia elevada até dos pequenos anúncios de jornais. Quintana abomina a indiferença, a pressa, o descaso, até mesmo diante de quem, inerte, deixou de funcionar, por ter sido subtraído do tempo. Ou seja, mesmo diante de quem tenha falecido, impor-se-ia uma delicadeza simbólica. Ensina, pois, em seu poema em prosa “Do tempo”: “Nunca se deve consultar o relógio perto de um defunto. É uma falta de tato, meu caro senhor… uma crueldade… uma imperdoável indelicadeza…”
Imaginem então quão grave é a indelicadeza quando se tem pressa diante de quem permanece, de quem vai continuar seu serviço público e deve ser estimulado e louvado em sua luta. Como se fora um adolescente que não desgruda de um celular, Lula foi flagrado olhando o relógio com impaciência exatamente na cerimônia que tinha o claro e consabido significado de ser a despedida do cargo de uma extraordinária figura pública, a ministra Nísia Trindade — que, ademais, é uma sua correta e competente aliada.
Um Lula em plena forma, com seu raro talento político, podia ter transformado o momento em uma singela homenagem, um afago, mas esteve bem longe disso. Podia exatamente frisar que alguém da estatura de Nísia, tendo já prestado um grande serviço, continua viva e firme e, por isso mesmo, para além de qualquer cortesia cerimonial, ela mereceria mais ainda todos os meneios.
O constrangimento tornou-se visível por Nísia não ter perdido a compostura, nem ter manifestado qualquer ressentimento. Sua pauta, inclusive à frente do ministério, tem sido mais larga; e ela não abandonou, nem abandonará o compromisso com um projeto que, afinal, mesmo deixando vítimas no caminho, nos vincula a uma sociedade democrática, com saúde e, esperamos, com doses generosas de delicadeza.
Alguns querem esquecer esse episódio rapidamente. Outros insistem na imagem da “entrega” — péssimo vocabulário, aliás, que deveria ser abolido em nosso meio, porquanto reduz a interação da política a uma medida de comércio e não à realização de princípios. A cultura política da entrega nivela todos os partidos, subordina todos à mesma medida. Por isso, veludosas vozes dos diversos campos dizem com pretensa sabedoria: Nísia não teria feito a devida “entrega”.
Dois equívocos estão presentes nessa crítica. O primeiro é esse desvio genérico que repelimos acima, porquanto carregado da antiga retórica do “progresso”, que despreza circunstâncias e não poupa nada nem ninguém. O segundo é a aplicação de uma medida gerencial que ignora a especificidade das políticas de saúde, cuja praxe Nísia respeitou ao começar a implementar pelos estados o programa Mais Acesso a Especialistas, ou seja, seguindo o que é necessário ao SUS e sem fazer com que a velocidade da implementação atropele o cuidado integral das pessoas — e isso é boa política, feita no tempo certo, no ritmo adequado e conforme às melhores e mais bem sucedidas práticas.
Contra essa dupla leitura inquinada das “entregas”, é hora de reiterar nossos cumprimentos a Nísia Trindade, com a certeza de que ela há de continuar seu notável serviço público, com todo seu brilho e vivacidade. Com sua postura elegante, ela nos relembra ademais o que podemos ter de melhor e que continuamos a julgar que deva, sim, ser bem representado pelo próprio presidente Lula. Se supostamente não “entregou” no Ministério da Saúde da forma que lhe pediam, são expressivos e estratégicos os seus resultados, que podem ser mais bem apreciados por pessoas da área da saúde. Enfim, ela nos deixa também, nesse episódio infeliz, uma lição exemplar de dignidade pública e de educação. Lembra-nos, que, pouco importando a correção de uma decisão, ela jamais pode vir embalada em péssima política. A sensibilidade é revolucionária, não a rudeza.