O preço dos combustíveis e o futuro da Petrobras

Ao invés de agradar a Faria Lima e penalizar a população com nova alta, Lula tem hoje uma chance rara. A de desarmar a bomba-relógio que Bolsonaro deixou na empresa e prepará-la para jogar papel decisivo na reconstrução nacional

Nas mãos de Lula, uma decisão essencial: atender aos desejos dos rentistas ou ligar a Petrobras a um novo projeto de paĩs?
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MAIS:
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1. O desmanche da Petrobrás, e como pará-lo
2. Como reduzir a Petrobras a “vaca leiteira” dos mercados
3. Petróleo: a estratégia para a recolonização
4. Os caminhos para resgatar a Petrobrás

Governar é, também, driblar as armadilhas da rotina e do pensamento raso. Uma decisão que Lula tomará nas próximas horas pode elevar em até R$ 0,69 o preço do litro da gasolina, puxar a alta dos demais derivados de petróleo e repercutir em mais inflação. A isenção de impostos federais (PIS e Cofins) sobre os combustíveis expira na quarta-feira e pode, ou não, ser prorrogada. Os especuladores financeiros e a mídia comercial pressionam pela volta do tributo, alegando que ela é importante para o “ajuste fiscal”. O argumento é recoberto, às vezes, por verniz ecológico: não teria sentido subsidiar um combustível fóssil. O ministro Fernando Haddad, que ser reunirá com Lula para participar da decisão (também estarão presentes Ruy Costa, da Casa Civil, e João Paul Prates, presidente da Petrobrás), estaria a favor desta posição.

Colocado nestes termos, o debate oculta, porém, as questões essenciais. Entre outubro de 2016 e agosto de 2022 – nos governos Temer e Bolsonaro –, os preços dos combustíveis explodiram, subindo 2,3 vezes mais que a inflação. Esta disparada foi parte de uma política que visou, paradoxalmente, desmontar a Petrobras e, num segundo momento, privatizá-la. A empresa foi gravemente ferida, mas resistiu. Pode ser uma das alavancas principais do movimento de “reconstrução nacional” anunciado por Lula em seu discurso de posse. As medidas necessárias para isso enfrentarão resistência feroz – mas são conhecidas e viáveis. Um novo aumento de preços agora manterá a dinâmica do desmonte, afetará o capital político do governo e tornará mais difícil a luta pelo resgate do petróleo brasileiro.

A destruição programada da Petrobras pode ser examinada com mais clareza por meio de alguns gráficos. O primeiro mostra o crescimento astronômico dos dividendos pagos pela empresa a seus acionistas. A coluna relativa a 2022 é parcial: nos três primeiros trimestres do ano a empresa distribuiu R$ 173 bilhões. Equivalente a pelo menos vinte vezes o valor pago pelo Banco Itaú e é superior ao que pagaram todas as corporações petroleiras internacionais, com exceção da Aramco, saudita.

O Estado brasileiro comanda a Petrobras (pois tem, por lei, a maioria das ações com direito a voto), mas esta montanha de dividendos flui, principalmente, para especuladores privados. Eles detêm 64% do capital total da empresa e são, majoritariamente (73%) estrangeiros – com destaque para mega fundos internacionais. O mais chocante é que, enquanto presenteava os rentistas, a estatal corroía se próprio futuro. O gráficos seguintes expõem a queda dramática dos investimentos (de US$ 48,1 bilhões em 2013 para 8,8 bilhões em 2021), do número de trabalhadores próprios e terceirizados e, finalmente, da própria extração de petróleo bruto. As perdas qualitativas foram ainda mais graves. O governo Bolsonaro amputou da Petrobras a rede de postos BR, as distribuidoras de gás Gaspetro e Liquigás e as produtoras de fertilizantes, além de começar a vender as refinarias.

Tudo isso é reversível, se houver vontade política e apelo à mobilização social. As privatizações podem ser revistas, explica o advogado Gilberto Bercovici, professor titular de Direito Econômico da Faculdade de Direito da USP. A empresa pode reduzir o pagamento de dividendos ao mínimo estipulado por seus estatutos (25% do lucro líquido). E os preços dos combustíveis, hoje determinados por uma política esdrúxula (PPI), que os equipara às cotações internacionais podem ser readequados. O engenheiro Ildo Sauder e economista Paulo César Ribeiro de Lima, dois dos grandes estudiosos da empresa, sugerem regras ponderadas (1 2), que desestimulem de modo gradual o uso do carro privado mas o façam sem favorecer o rentismo.

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A isenção de impostos federais, adotada por Bolsonaro nos últimos meses de seu governo, teve caráter claramente eleitoreiro. Preservou as bases da política de desmonte da Petrobras, mas buscou aliviar momentaneamente seus resultados. Visava vencer as eleições e, em novo cenário, apressar a privatização.

Não é possível reverter a política bolsonarista mantendo a aposta nas decisões de curto prazo e pouco fôlego. A Petrobras precisa ser vista como peça essencial de um projeto de reconstrução do Brasil em novas bases. Suas descobertas – fruto da melhor tecnologia do mundo para pesquisa e extração em águas profundas – resultaram numa das maiores reservas de petróleo do planeta. A renda petroleira livra o país da dependência de dólares. Pode assegurar, por exemplo, os investimentos em tecnologia indispensáveis para uma reindustrialização inteligente – ou para a própria transição energética. Imagine, como propõe o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, Petrobras e Eletrobrás juntas, reorganizando todo o setor elétrico brasileiro; utilizando a receita das exportações para criar sistemas públicos de geração solar e eólica; oferecendo centenas de milhares de ocupações dignas; alimentando, com suas encomendas, uma indústria nacional de componentes elétricos avançados; voltando a financiar grandes projetos culturais, com os recursos hoje desviados para dividendos; apontando caminhos para outro país necessário.

Este projeto de longo prazo pode começar com alguns passos iniciais. Uma hipótese: Lula anuncia, após reunir-se com Haddad, Ruy Costa e Prates, que os preços dos combustíveis serão mantidos. Ao mesmo tempo, dá ao presidente da Petrobras prazo de 90 dias para apresentar uma nova política de preços de combustíveis baseada, entre outros, nos estudos de Sauer e Ribeiro de Lima. E comunica que, como acionista controlador da Petrobras, o governo determinará à empresa a revisão de seu plano estratégico, hoje ainda baseado nas premissas de Bolsonaro e Paulo Guedes. Entre as mudanças, afirma o presidente, precisam estar a recuperação das subsidiárias privatizadas, a autonomia do Brasil no refino de combustíveis e na produção de fertilizantes e a recompra das ações controladas por especuladores.

Nada disso faz parte hoje do debate público, porque o Brasil se acostumou à mediocridade. Para satisfazer os interesses econômicos hegemônicos, a Petrobras precisa continuar a ser “a vaca leiteira dos mercados”. O caminho contrário enfrentará muitos obstáculos e exige um amplo debate com a sociedade. O governo Lula estará pronto para ele?

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