Mar Vermelho

Qual a afinidade entre as falas de Moro e outras autoridades do Planalto – todos atribuindo-se traços de profetas do Velho Testamento – e a trajetória da TV Record? Em que medida a emissora antecipou o que estava por vir?

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Há algumas semanas Sérgio Moro recorreu ao Êxodo judaico, mas para se comparar não a Moisés, e sim a Deus”: “Eu olho, eu escuto”. Eu olho, eu escuto o meu povo eleito, e ele não é necessariamente toda a sociedade nacional. Bolsonaro anunciou que irá nomear para o STF um ministro “[ai de vós!] terrivelmente evangélico”. Em culto na Câmara dos Deputados, confirmou-se ao presidente pela boca do pastor ad hoc que ele seria “o escolhido”. Ele é o Escolhido, mas nem todo povo eleitor virá a ser o povo eleito, e este é aquele que estivera a seu lado desde o início e jamais o abandonará. Outro ungido de Deus seria o novo Secretário de Comunicação do Governo, o general Luiz Eduardo Ramos, que no dia de sua nomeação assim discursou: “O presidente disse que já era hora de um evangélico ir ao Supremo. Deus sabe das coisas. O presidente colocou um evangélico na articulação política”, ou seja, “a este quem vos fala”. O Onisciente soprou ao Messias a hora de chamar um evangélico para o Supremo. Em outro momento do discurso o general se identificaria a si mesmo como um dos velhos profetas, senão superior a estes pelas qualidades que sintetiza: “Deus me deu a sabedoria de Salomão, a capacidade de articular e gerenciar de José do Egito, e a força de um guerreiro que foi Davi”.

O jornalista Reynaldo Azevedo fez uma análise divertida do “terrivelmente evangélico” e do disparate presunçoso de Eduardo Ramos, mas também me chamaram especial atenção o uso do verbo gerenciar e do substantivo guerreiro. Este último é de lavra mais antiga e poderia ser usado sem anacronismo para aqueles tempos imemoriais; não é o caso, porém, do sinônimo de “administrar”. Ocorre que, uma vez justapostos, se determinam reciprocamente, fazendo entrecruzar fulgores primevos com luzes contemporâneas. Depois que somos estimulados a imaginar a capacidade de articulação do gerente José, também não vamos pensar em Davi apenas como o harpista que abateu com um estilingue o gigante Golias, ou no guerreiro temido por filisteus e depois escolhido por Javé para ser o monarca do Reino de Israel. A autodescrição do novo ministro funcionara antes como uma verdadeira oficina de fundição de materiais arcaicos com resina de última geração, de que saía uma placa, talvez kitsch, com um manager no Egito antigo e Davi como um batalhador de alta resiliência do mundo do trabalho, capaz de superar tantas e traumáticas provações laborais. O distintivo de Salomão no tríptico concebido por Ramos era a sabedoria, deixando o autor dos Cânticos mais preservado de anacronismos ou repaginações que seus antecessores, igualmente antediluvianos. A palavra “sabedoria” é um significante neutro, por assim dizer, que atravessa os tempos, preenchido pela eticidade de cada povo e época. Não fora preciso usar o linguajar mais próprio do mundo atual da acumulação flexível nem tampouco dizer que Salomão tinha inteligência emocional, conhecendo cada membro de sua equipe o suficiente para dele extrair o máximo rendimento.

Por que todas essas citações? Por convicção própria, por esforço de comunicação, por tentativa de automitificação? Um pouco de tudo, mas também para concretizar uma encenação, não tanto no sentido de hipocrisia como no sentido de atualização, presentificação. Estamos, é verdade, acostumados ao padrão Globo de qualidade, que, mesmo não sendo o mesmo desde o começo dos anos 90, ainda concebe adaptações de mais bom gosto para seu público, capazes de confirmar a fé na ficção. Mas quando se tem fé religiosa a encenação pode ser rude, não prejudicando nem a magia nem a catarse.

A TV Record já o sabia e assim se preparava há muito para um dia reinar soberana, quem sabe até a serviço de algum Messias, munida inicialmente com estilingues que pareceriam ainda rudimentares em relação ao aparato tecnológico e profissional da concorrente gigante para depois guerrear com mais recursos e superproduções bíblicas, estas sempre arriscadas, mais ainda no vídeo –com mais prudência técnica, a Globo creio que só se aventurara em dar forma a Deus, à Nossa Senhora ou outras grandezas semelhantes pela mediação de alegorias do imaginário popular religioso ou pela mão de autores como Ariano Suassuna.

Às vezes tenho a impressão de que o declínio da TV brasileira desde o início dos anos 90 anunciava o Brasil de hoje. E, se o Brasil pareceu melhor durante os governos do PT, nem por isso a TV lhe acompanhou o ritmo ou pareceu melhor, seguindo ao contrário em sua autonomia própria de deterioração e ofuscamento – o que não deixava de expressar algum processo social em curso e ainda pouco nítido e, claro, uma decisão política. Se os militares não teriam podido sonhar com a Globo de hoje – que já dispõe há muito de profissionais endogenamente formados e não depende do mesmo modo, como dependera nos anos 70 para constituir o seu padrão qualidade, de jornalistas da mídia alternativa e artistas, os comunistas protegidos de Boni, vindos da literatura, da música, do teatro e do cinema –, o bispo Macedo e outros magnatas da fé e da mídia devem ter sonhado com um país parecido com o que temos agora. A esse propósito, lembrei de uma crônica não publicada, escrita em 2015 por ocasião da novela “Os dez mandamentos”, exibidos pela emissora:

“Enquanto a Record mostrava Deus abrindo o Mar Vermelho para Moisés passar com seu povo, o Jornal Nacional exibia um tiroteio na Linha Vermelha no Rio” (coluna de Monica Bergamo, Folha de São Paulo, 10/11/2015). Não foi ingênuo o registro da sincronia entre os programas. O vermelho, comum ao nome do local de cada cena, uma fictícia (ou duplamente fictícia), outra real, conjugava instantaneamente o sublime e o grotesco, o sacro e o profano. É verdade, um sublime de papelão, pelo que se definia menos um contraste que semelhança e continuidade. Uma estranha continuidade fora apanhada pelas jornalistas da coluna entre a letalidade do tiroteio numa via icônica do crime e do confronto e a salvação representada pelo episódio bíblico, ambos unidos pela cor do alarme.

O foco da matéria era o fato de a novela Os dez mandamentos ter desbancado em 10 pontos a audiência da Globo. E isso ocorria justamente quando Deus, por intermédio de Moisés, fazia o mar dar passagem aos hebreus, que assim deixavam o cativeiro e tomavam o rumo da terra prometida. Seria uma sugestão de que estávamos nos livrando do cativeiro da tela quente por meio do caduceu eletrônico do Bispo Macedo?

Também estes trechos da reportagem me chamaram a atenção: “As redes sociais da Igreja Universal, à qual a emissora é vinculada, pediam para os fieis compartilharem o seguinte ‘meme’: ‘O mar vai se abrir em minha vida também’”, ou “A inundação também chegou ao twitter. A cena foi o assunto mais mundialmente comentado em parte da noite desta terça, com a hashtag “#MarVermelho'”. Não entendi logo o “mundialmente”, já que esse assunto, por importante que fosse, seria doméstico e nacional. Se tínhamos uma inundação que se tornava matéria de interesse mundial era o recente tsunami de lama em Minas Gerais, decorrente da ruptura de barragens de uma joint-venture da privatizada Vale do Rio Doce, Samarco, e que bem poderia reivindicar também o nome de “mar vermelho”. Mas, nesse caso, ele não dera passagem a ninguém; antes soterrou, como as lavas de um vesúvio inexistente, partes de cidades, homens, animais, casas, rios.

Talvez o advérbio de modo (ou de intensidade) fosse devido à Igreja, Universal ou Mundial, que, detentora de concessão pública de televisão e portanto interessada na audiência da novela, divulgara, por meio de suas redes sociais, o tal meme, que, como análogo do gene (conforme explica a Wikipédia), seria uma unidade mínima de informação, “que se multiplica de cérebro em cérebro”. Achei bastante curioso que, em se tratando de frase a ser publicada e difundida e de cuja repetição se esperasse efeito prático-mágico, a igreja tivesse feito uso do pronome “minha” (“Um mar se abrirá em minha vida” ), e não “sua”, ou mesmo “nossa”. Oportunamente lançada no dia em que ia ao ar um dos mais epifânicos momentos da mítica saga mosaica, patrocinada senão presentificada pela Record, a frase sem dúvida expressava uma vontade de transformação individual, mas deveria ser repassada para que cada um a repetisse e saísse do eterno deserto do seu próprio presente. Cada um recebia, da parte de outro irmão, a mesma mensagem, e com isso se formava uma rede sólida e rapidamente multiplicada [viralizada], de todos se solidarizando entre si pelo simples gesto de replicar, embora cada um dissesse “o mar se abrirá para mim”. Ora, não seria mais fácil e direto divulgar “O mar se abrirá em nossa vida!”, ou “O mar se abrirá no Brasil”, ou ainda “O mar se abrirá para o povo sofrido do Brasil” (acossado neste 2015 pelas consequências, embora tardias, da crise de 2008, e pelas políticas de austeridade fiscal da presidente Dilma). Não faria mais sentido isso, já que Moisés cortou a água ao meio para todos os judeus? Não, não, os bispos não estariam preocupados com a emancipação do coletivo ao mesmo tempo, mas com a emancipação de todos por si mesmos, digamos, forçando um pouco a gramática, pois seus seguidores, precisados de que a vida lhes fosse mais branda e conscientes de que outros também sofreriam como eles, a deveriam multiplicar por um impulso solidário, que para os bispos era também publicitário. Publicidade da novela como oportunidade para a ação divina, se é possível dizer assim, e de quebra da marca Igreja Universal. Eu devo me convencer dessa transformação mágica que ocorrerá em mim, mas dou a chance ao meu irmão, ao lhe retransmitir a fórmula, de ele se convencer do mesmo, lá sozinho e com seus botões. E assim se constitui uma comunidade vasta, mundial, de repetidores solipsistas, num crescendo que, a certa altura, deveria engatar no capítulo da novela, em razão do qual a mesma unidade de informação fora propagada. A repetição frenética, ou ativismo religioso-eletrônico, praticado ao longo do dia, produziria um tal estado mental que, quando fossem 20h e ponto, a fenda no mar Vermelho partiria a própria TV. A ficção realizava o milagre de cada um, tocado pela mais extremada graça de mercado.

O meme me fizera lembrar também de outra criação televisiva, o desenho animado dos super-gêmeos, dois super-heróis adolescentes que, apertando o próprio anel contra o anel do outro, mentalizavam e manifestavam seu desejo individual, ou privado, mais forte no momento, sempre seguido da fórmula “super-gêmeos, ativar!”. Pois o anel agora era o twitter.

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