Impasses em torno da ideia de reindustrialização

Quais os caminhos para fortalecer pequenas e médias empresas, as que mais geram empregos no país? Por que a justiça social pode estimular a inovação e reduzir a dependência externa? Considerações sobre artigo do presidente do BNDES

Imagem publicada no site A Voz da Indústria
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Em “Produtividade e digitalização para a indústria”(FSP de 06.09), Mercadante e Lucchesi expressam sua expectativa de que a “nova política industrial sustentável, inovadora e socialmente inclusiva” em curso será aproveitada pela empresa local para aumentar sua produtividade. Segundo eles, depois de ter “falhado em capitalizar os benefícios da terceira revolução industrial” (revolução digital, semicondutores, automação industrial, integração de sistemas mecânicos e eletrônicos às telecomunicações e processos de fabricação), “… a quarta revolução industrial seria uma oportunidade para as indústrias brasileiras se tornarem mais competitivas”.

A “política de neoindustrialização”, então, induziria a empresa a internalizar as “tecnologias 4.0” (inteligência artificial, computação em nuvem, big data, cyber segurança, internet das coisas, robótica avançada, manufatura digital, manufatura aditiva, integração de sistemas, sistemas de simulação, digitalização) fazendo com que a “… falta de conhecimento e custos elevados que são obstáculos para sua implementação” fossem removidos mediante o “investimento empresarial em pesquisa e desenvolvimento, fator decisivo para a inovação e ganhos de competitividade”.

A expressiva ambição dessas expectativas suscitou cinco considerações que finalizam com perguntas para que se possa avaliar sua exequibilidade. E, também para que, por contraste, quem lê possa cotejar essa política de reindustrialização empresarial com aquela – complementar e não excludente – que temos chamado de reindustrialização solidária.

1. Todos sabemos que, ao longo da história, os empresários, quando impedidos de diminuir o salário ou aumentar a jornada de trabalho, inovam. Dessa maneira, ao incrementarem a produtividade do trabalho que pode ser apropriada sob a forma de lucro, e se considerarem que ele possa ser maior do que aquele associado a outras escolhas, eles gastam em inovação. Sabemos também que esse comportamento é potencializado caso os empresários inovadores considerem que os não inovadores possam ser expulsos do mercado.

No Brasil, economistas de esquerda, que compartilham com os autores a intenção de favorecer a classe trabalhadora, indicam que a classe proprietária que possui nossas empresas é responsável por um dinheiro que o Estado não arrecada devido: (1) sonegação (estimada em 10% do PIB); (2) renúncia fiscal (4%); (3) imposto centrado no consumo e não na renda e na propriedade; (4) isenção de lucros e dividendos; (5) e da exportação. E por um dreno financeiro causado pelo juro alto: (1) serviço da dívida reduz alavancagem do gasto público (estimado em 7% do PIB); (2) famílias submetidas a juro extorsivo consomem menos (10%); (3) empresas contraem atividade levado à desindustrialização (3%).

Face a essas evidências, cabe perguntar até que ponto os proprietários das empresas, inseridos num contexto caracterizado pela sua escassa competitividade, precisam subsídio governamental para lograr os “ganhos de competitividade” que a política pretende. Ou, em outras palavras, será que comparado com os 35% do PIB que é estimado como sendo o que a classe proprietária aufere para viabilizar seus negócios, o recurso proveniente da “política de neoindustrialização” poderá vir a orientar nossa economia na direção conveniente?

2. Os mesmos analistas sugerem que o favorecimento que esses indicadores expressam teria provocado a desindustrialização que a política pretende reverter. Ela teria sido consequência de uma opção da classe proprietária atraída por aplicações mais lucrativas, como as associadas à especulação financeira nacional e internacional, ao agronegócio, aos empreendimentos imobiliários, à exploração de bens naturais, etc.

O que levaria a questionar a frase inicial do artigo “A indústria brasileira luta há décadas com desafios de produtividade” e enfrenta “desafios … da baixa qualidade da educação e um parque industrial obsoleto, com máquinas e equipamentos com idade média de 14 anos”. Será razoável considerar a classe proprietária das empresas como um ator prejudicado por um contexto adverso? Não seria mais legitimo entendê-la como um ator economicamente racional que assegura com competência, haja vista os recordes mundiais de taxas de lucro e de juro que desfruta, a acumulação de seu capital?

3. O artigo ressalta que o “objetivo de aumentar a produtividade de pequenas e médias empresas”, ao ser alcançado mediante a “política de neoindustrialização”, as tornaria capazes, inclusive, de “participar de cadeias globais de fornecimento”.

O fato de que são empresas multinacionais situadas nos ramos tecnologicamente mais intensivos de nosso tecido industrial aquelas habilitadas a se inserir nessas cadeias de modo a se tornarem competitivas, parece contrariar essa expectativa. O que leva a considerar se seria essa política a mais adequada para potencializar as qualidades das pequenas e médias empresas. Por serem as que mais geram emprego, estabelecem fortes ligações a jusante e a montante, atenuam a concentração de renda e a corrupção, satisfazem a demanda interna por bens e serviços, etc., elas não seriam dignas de uma política mais focada em suas reais necessidades?

4. Menciona-se que, para lograr o objetivo de internalização da “4ª revolução industrial”, a política “vai unir consultoria e formação profissional de colaboradores” que as empresas “vão receber diagnóstico e acompanhamento para melhoria de gestão, participarão de intervenções para melhoria da produtividade e da eficiência energética, serão beneficiadas com projetos de empresas provedoras de tecnologias 4.0 e serão contempladas com plano de transformação digital”.

Esse objetivo, por implicar a obtenção de um conhecimento sabidamente muito mais sofisticado do que aquele praticado pela grande indústria local, parece ser o que levou à inclusão na política de organizações como a Finep [Financiadora de Estudos e Projetos, empresa pública brasileira]. Isso parece se dever ao fato de que, dado sua conexão com o potencial de P&D de nossas instituições de ensino e pesquisa, ela poderia orientar sua utilização para o cumprimento desse objetivo.

Não obstante, a conhecida elevada preferência das empresas inovadoras locais pela inovação via compra de máquinas e equipamentos e o uso – limitadíssimo, mas economicamente racional – que fazem daquele potencial, deixa antever a pouca eficácia dessa cautelar inclusão.

É plausível supor que a estrutural realidade de nosso capitalismo periférico, que possibilita ao nosso empresariado lucrar reduzindo o salário e aumentando a jornada de trabalho, e engendra uma demanda imitativa por bens e serviços já engenheirados no Norte, possa ser alterada mediante a “política de neoindustrialização”?

5. Para justificar a importância de “um programa de alto impacto na indústria e na economia brasileira… que vai beneficiar mais de 200 mil empresas ao longo de quatro anos”, cita-se que seu antecessor, o “programa Brasil Mais Produtivo” orientado à assessoria pelo Sebrae às pequenas e medias empresas “aumentou a produtividade em 66%”!

Frente à semelhante indicador de sucesso, caberia indagar a respeito de outros que evidenciassem o resultado de iniciativas como essa, cujo objetivo declarado é a geração de empregos com remuneração superior a dois salários mínimos. Ou será que a “política de neoindustrialização” pretende aumentar a produtividade sem promover a inclusão que ela declara buscar?

Esperamos que quem chegou até aqui se sinta provocado a aproveitar essas considerações para cotejar essa política com aquela – complementar e não excludente – que temos chamado de reindustrialização solidária.

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