Do neofascismo brasileiro à “terceira via”
Exame da vida institucional recente do país revela: as classes dominantes não precisaram de um fascismo clássico – nem permitiram que ele se instalasse. Mas surgiu um movimento fascista; e este pode ser uma das bases para uma candidatura neoliberal-autoritária, porém “palatável”, em 2026
Publicado 30/04/2025 às 19:55 - Atualizado 30/04/2025 às 20:00

Por Jorge Almeida
Título original:
O fascismo histórico e o neofascismo brasileiro
A condenação de Jair Bolsonaro à inelegibilidade e sua provável condenação à prisão como líder da tentativa de golpe de Estado, abriram a temporada de disputa de seu legado neofascista e de seus votos. Diferentes políticos profissionais ligados ao ex-presidente disputam esse espaço eleitoral assim como a base de um comportamento político-ideológico da direita liberal mais tradicional.
A classe dominante, suas elites políticas e intelectuais e suas mídias voltaram a procurar uma chamada “terceira via” que esteja entre o chamado “bolsonarismo raiz” e a candidatura de Lula da Silva (ou outra por ele indicada), que possa parecer mais “limpa” e capaz de ir ao segundo turno para derrotar uma candidatura petista.
Já fracassaram duas vezes com essa tentativa, em 2018 e em 2022. Assim, aumenta a possibilidade real de uma convergência (ou uma ponte) entre o desejo de uma “terceira via” e um herdeiro, supostamente mais palatável, do eleitorado bolsonarista. Até as convenções partidárias, muita água suja ainda vai rolar por debaixo das tentativas de construir essa ponte.
Nesse sentido, continua atual o esforço de melhor definir o neofascismo brasileiro em suas relações e diferenças com o fascismo histórico e o neoliberalismo.
Ao tratar da relação entre bolsonarismo e fascismo não podemos cair em anacronismos, tentando aplicar superficialmente um conceito daquilo que apareceu historicamente, há cerca de 100 anos, na Itália. O Reino da Itália era um país do centro do imperialismo, pois, mesmo não sendo o Estado mais importante, era uma das grandes potências naquele período histórico.
É preciso contextualizar, então, o conceito de fascismo pois, além de terem se passado 100 anos, estamos num país da periferia do capitalismo mundial.
O que foi o fascismo na sua origem e no país onde nasceu e assim se autodenominou “Fascismo”? Vamos responder partindo do revolucionário italiano Antônio Gramsci1, o primeiro entre os marxistas a definir o que é “fascismo”.
O que é o fascismo?
Para Gramsci, fascismo é um autoritarismo militarista. Mas não é somente um bonapartismo ou uma ditadura militar, como tantas outras. Não é uma extrema-direita qualquer.
O movimento fascista nasceu no momento de uma profunda crise nacional e internacional, posterior à Primeira Guerra Mundial, da qual a Itália saiu com a dignidade nacional ferida (MAESTRI e CANDREVA, 2001).
Um outro elemento do contexto, fundamental para entender a ascensão do fascismo, é que a Itália vivia uma “crise de hegemonia” e um ascenso das lutas dos trabalhadores. As classes dominantes não estavam conseguindo governar para garantir seus interesses sob um regime de democracia liberal burguesa.
Segundo Gramsci (2000), hegemonia é uma combinação de direção política com dominação coercitiva. Ou seja, é uma combinação da capacidade que um determinado grupo social, econômico e político tem de dirigir aqueles que aceitam sua liderança política, ideológica e moral; ao mesmo tempo em que tem os instrumentos para agir com força (coerção) contra os que não aceitam a sua liderança consensualmente. A direção política e ideológica se constrói a partir da sociedade civil e a coerção se faz principalmente via Estado.
Ademais, a hegemonia política e ideológica também é econômica: precisa se basear no controle dos núcleos fundamentais da estrutura econômica.
Assim, uma classe hegemônica é aquela que, ao mesmo tempo, garante seus interesses materiais detendo os núcleos fundamentais da economia, tem suas ideias predominando na sociedade civil e controla os setores decisivos do Estado
Se a classe hegemônica perde a predominância em um desses três planos (ou esferas) da sociedade (estrutura econômica, Sociedade Civil ou Estado) advém uma crise de hegemonia. Seu poder está correndo riscos.
Era isso que estava acontecendo na Itália. Havia, de fato, da parte das classes dominantes, a intenção de dar uma resposta à luta do operariado da região Norte, a mais industrializada da Itália, onde estavam sendo construídos os Conselhos de Fábrica. Ali, os operários fabris chegaram a controlar o processo produtivo, inclusive nas empresas mais importantes do país – como a Fiat, em Turim.
Já no Sul, que era a região predominantemente rural e de produção agrícola, ocorria um ascenso do movimento camponês, que lutava pela terra para quem nela trabalha, com ocupação de latifúndios.
Havia realmente uma situação revolucionária. Ao mesmo tempo, do ponto de vista eleitoral, o Partido Socialista (PSI) chegou a ter mais de 30% dos votos nas eleições de 1919.
O fascismo nasce num momento de crise de hegemonia e de possibilidade real de um ascenso da luta operária e camponesa e da conquista do poder político por via revolucionária, com amplo apoio popular.
A base original do fascismo italiano foi a chamada “pequena burguesia” urbana que tinha a expectativa de um governo e um regime político que representasse os seus interesses, de setor médio da população, que não era nem a classe trabalhadora nem a grande burguesia. Nasce, portanto, de uma quimera pequeno-burguesa de ter um regime econômico, social e político próprio, acima das principais classes sociais. Mas, a pequena burguesia não tem condições estruturais e, portanto, políticas, de construir um modo de produção e um regime político próprios. No capitalismo, somente as classes fundamentais (burguesia e trabalhadores) têm condições de dirigir um Estado que expresse seus interesses de classe e estendê-lo a toda a sociedade.
Por isso, esse movimento fascista vai acabar sendo um instrumento a serviço do grande capital e da repressão às lutas do povo trabalhador, especialmente do operariado e do campesinato. Será um movimento visceralmente anti-esquerda, especialmente antissocialismo e anticomunismo, que eram as duas principais forças de esquerda na Itália naquele momento. Ou seja, o fascismo nasce com base na pequena burguesia urbana, mas será apoiado e financiado pelo grande capital, que passa a ver o movimento como uma alternativa para evitar um processo revolucionário do povo trabalhador na Itália.
Naquele momento, o Partido Socialista (PSI) era a principal força da esquerda, a que tinha mais base social nos sindicatos urbanos e no movimento dos camponeses. O Partido Comunista (PCI) era a força mais radical e ativamente revolucionária, porém com menor presença nos movimentos de trabalhadores.
Ideologicamente, o fascismo se apresenta como conservador na pauta dos costumes e das relações sociais. Carrega marcas do tradicionalismo dominante, do racismo, da misoginia e do patriarcalismo. Mas, politicamente, nas palavras de Gramsci, é um “subversivismo reacionário”, que pretende golpear a ordem social para impedir uma transformação reformista ou revolucionária.
Na sua origem, era um movimento nacionalista de fato. Não era somente um nacionalismo de palavras, nem um patriotismo retórico (como o neofascismo no Brasil). Foi, efetivamente, um movimento que procurava defender interesses nacionais da burguesia italiana num contexto de conflito interimperialista e quando a Itália pretendia ampliar suas colônias.
Era, portanto, um nacionalismo de direita, imperialista, tanto na disputa com outras potências imperialistas, como parte de um país que tinha colônias na África (especialmente na Eritréia, Somália e Líbia), além de pequenas ilhas no Mediterrâneo e que, já durante o regime fascista, em 1936, invade e ocupa parcialmente, pela força militar, a Etiópia.
No começo do governo Mussolini (1922), quando ele ainda governava ao lado de conservadores e liberais, o modelo econômico respeitava um viés liberal. Mas, a partir da consolidação do regime de Estado centralizado, a tendência foi estatizante, no sentido de uma economia regulada e dirigida pelo Estado, com forte protecionismo para defender grandes empresas capitalistas privadas italianas, e estatizações de empresas falidas ou inviáveis economicamente.
O fascismo clássico, apesar da retórica de estar acima das classes, estava de fato a serviço do grande capital e reforçava o capitalismo nacional. Mesmo as ações de intervenção e dirigismo estatal tinham esse objetivo. Trabalhava no sentido de aumentar o arrocho e a exploração dos trabalhadores e a concentração de capital e riqueza nas mãos de uma minoria. Para garantir isso, todo o sindicalismo autêntico e independente foi proibido e eliminado violentamente. E, em seu lugar, foi instituído um sindicalismo corporativista, imposto e controlado pelo Estado.
O regime fascista foi um regime autoritário e centralizado que acabou quebrando as instituições da democracia liberal burguesa, instituindo um partido único (Partido Nacional Fascista) e acabando com a dita independência dos chamados “três poderes” liberais (executivo, legislativo e judiciário).
Ao fazê-lo torna-se um governo ditatorial do poder executivo, dirigido unipessoalmente, com mão de ferro, por Benito Mussolini (em comum acordo com o estado maior das forças armadas), que acabou se impondo sobre o conjunto das instituições do Estado e da sociedade.
Outro aspecto essencial, é que ele nasceu como uma organização política e paramilitar que atuava na sociedade civil. O fascismo não era simplesmente uma organização autoritária nascida dentro do Estado. Na verdade, nasceu como um movimento fora do Estado, a partir de 1919, e se organizou como um partido que fez disputa política e ideológica, mas também agindo de forma paramilitar, na sociedade civil, antes da tomada do poder estatal. E, a partir do momento em que conquistou o poder político, continuou agindo por dentro e por fora do Estado (GRAMSCI, 2004).
Aliás, mesmo antes da conquista do poder político, já atuava de forma legal e ilegal. Usava a legalidade, mas ao mesmo tempo atropelava as leis. Para isso, contava com a cumplicidade do aparelho jurídico e coercitivo: juízes, promotores, policiais e forças armadas, para os seus crimes.
Quando conquistou o poder, portanto, o fascismo já agia por dentro e por fora do Estado. Isso permitiu que houvesse uma espécie de fusão entre as forças fascistas e o próprio aparelho militar burocrático profissional do Estado, centralizado pelo comando do estado maior das forças armadas italianas.
Contudo, era um movimento dirigido por um chefe com imagem forte. Pois a ideologia fascista também acredita em soluções que partam de um “grande líder” que se apresenta como um guia personalista e “salvador da pátria”. Daí porque Mussolini se autodenominava “Duce”, ou “Condutor”, um líder que é um chefe incontestável.
Outra característica fundamental do fascismo é que ele não tem limites morais que possam inibir as suas ações políticas e seus crimes de todo tipo.
É importante ressaltar também que, no caso da Itália, Gramsci identificou dois “tipos” de fascismo. Um, original e mais ideológico, era o movimento fascista, chamado de “Fasci Italiani di Combattimento”, que depois se transformou no Partido Nacional Fascista. Em paralelo, existiam as organizações paramilitares montadas por latifundiários no sul da Itália, sem um programa ideológico bem definido, porém formadas para promover repressão direta ao movimento camponês. Mas, ambos confluíram nos mesmos objetivos gerais.
Esse processo, em seu conjunto dialético, acabou gerando uma unificação de todas as frações das classes e elites dominantes da Itália, seja o grande capital industrial, o capital financeiro e os latifundiários. Sejam os políticos propriamente fascistas, outros políticos da direita conservadora e, também, setores da igreja católica, assim como o comando das forças armadas.
No final das contas, a Itália, que era uma democracia burguesa com um regime de monarquia constitucional parlamentarista, viu o próprio rei apoiando esse processo e indicando Mussolini como primeiro-ministro, que teve a sua aprovação pelo parlamento.
No começo, Mussolini era o chefe de um governo conservador liberal. Era um fascista chefiando um governo de direita conservadora, e num regime de democracia liberal representativa, sob a forma de uma monarquia constitucional parlamentarista. Como chefe desse governo, ele foi transformando o próprio governo num governo fascista e, finalmente, o próprio regime em uma ditadura fascista.
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Em síntese, o fascismo histórico é um movimento de autoritarismo militarista; a serviço do grande capital e para reprimir as lutas do povo; antissocialista e anticomunista; que surge em momento de crise de hegemonia; liderado por um líder “Salvador da pátria”. Tem uma organização político-partidária e paramilitar na sociedade civil. Promove a repressão direta das massas; É conservador na pauta dos costumes e nas relações sociais, racista, xenófobo e misógino; é nacionalista e imperialista. Não tem limites morais. Age por dentro e por fora do Estado: legal e ilegalmente. Tem a cumplicidade do aparelho jurídico coercitivo. Pretende subverter a ordem;. Ao chegar no poder, instaura um regime de Estado centralizado, com tendência estatizante, de partido único, ditatorial e antipopular.
No caso italiano, a ascensão do fascismo esteve ligada a um contexto no qual havia um sentimento de derrota nacional na I Guerra Mundial; ascenso da luta dos operários e dos camponeses e avanço eleitoral do PSI; frustração da pequena burguesia; crise de hegemonia e do Bloco Histórico; aliança da burguesia industrial com os latifundiários; moderação, vacilação e crise do PSI; e um PCI revolucionário, porém ainda relativamente com menor força no movimento operário e camponês do que o PSI e que comete erros. Surgem problemas para a aliança operária e camponesa e a efetivação da Frente Única antifascista; o fascismo ocupa o espaço aberto pela crise e lidera uma alternativa. No governo, o fascismo mostra sua cara e instaura a ditadura. Segu-se uma dura construção da resistência e, finalmente, a derrota do fascismo ocorre na convergência da derrota da Itália na segunda da Guerra, a resistência e o rompimento da classe dominante e elite conservadora com Mussolini.
O neofascismo brasileiro
É, portanto, importante compreender esse processo e verificar que existem características semelhantes em relação àquilo que acontece no Brasil hoje. Por exemplo: o mundo viveu uma crise no pós-Primeira Guerra Mundial e agora também. Em ambos os momentos houve um enfraquecimento das democracias liberais. Mas, a atual, sendo uma crise estrutural do capitalismo (MÉSZÁROS, 2002; ALMEIDA, 2023.b), traz suas especificidades. Portanto, existem situações nacionais e históricas particulares bem diferentes que precisam ser reconhecidas para compreendermos nossa realidade sem cair num anacronismo. A utilização de fatos que aconteceram num determinado momento histórico e num outro espaço territorial-estatal, não deve ser empregada para interpretar dogmaticamente a realidade que vivemos hoje.
No Brasil, desenvolveu-se um movimento que tem características fascistas. Tem sido capitaneado por Jair Bolsonaro, que sempre foi um militar com perfil autoritário e anticomunista. Teve a intenção de dar um golpe, contando com a participação das Forças Armadas para constituir uma ditadura sob seu comando. Uma vontade que, provavelmente, ele não tirou da cabeça antes, durante e depois de sua passagem pela Presidência da República: a vontade de ser um “Duce”.
As concepções conservadoras, anti-esquerda, antissocialistas e anticomunistas estão presentes numa difusa organização e capacidade de mobilização de massas que, entretanto, não é exatamente um partido organizado de forma paramilitar, como Mussolini montou na Itália.
A visão conservadora dos costumes, o machismo e o racismo também estão presentes. A base social, que contribuiu para sua ascensão e até sua chegada ao governo pela via eleitoral, também tem um forte peso dentro da chamada classe média. Esses são elementos semelhantes ao que ocorreu na Itália.
Porém, existem algumas diferenças fundamentais. Em primeiro lugar, esse fascismo brasileiro atual, não é nacionalista, nem imperialista, nem estatizante. Ao contrário, o seu “patriotismo” é apenas retórico, pois seu governo foi, efetivamente, entreguista, privatista e neoliberal, submisso aos interesses imperialistas de vários países. No contexto mundial, o Brasil é um paraíso do grande capital, não só dos EUA, mas de diversos países, europeus e asiáticos (Japão e China) que, de fato, têm construído e reproduzido relações dependência do nosso país.
Esse fascismo brasileiro também não é estatizante. Ao contrário, ele é privatizante. É um fascismo neoliberal. Portanto, nesse aspecto, diferente daquele italiano.
Por isso, é um “neofascismo”. Um novo tipo de fascismo, que está adequado a uma nova realidade histórica, regional e nacional, na qual estamos cem anos depois do nascimento do fascismo na Itália.
Estamos num período em que já houve uma grande expansão e mudanças no capitalismo imperialista mundial. Por outro lado, existem também as características particulares da dependência de um país periférico que é o Brasil. Portanto, é um “neofascismo”.
Assim sendo, também não é correto chamar Bolsonaro e o movimento que ele ainda lidera de “protofascista”. Porque ele não é “proto”, não é algo anterior ao fascismo. Ele já é fascista, mesmo sendo um fascista remodelado pelas circunstâncias históricas e políticas. Ou seja, ele não vai se transformar num movimento típico do fascismo histórico.
Além disso, temos aqui um contexto histórico, uma correlação de forças entre as classes e frações de classes e um processo diferente do que ocorreu na Itália.
Como vimos, Mussolini chegou ao governo como primeiro ministro indicado pelo rei e apoiado pelo parlamento. Ele formou o ministério e passou a ser o chefe de governo. Depois, foi controlando o governo e, finalmente, deu o golpe completo, transformando o próprio Estado num regime de ditadura fascista.
No Brasil, isso não aconteceu. O que tivemos foi um presidente neofascista num governo de direita e extrema-direita, de composição com liberais, conservadores e políticos oportunistas de direita que já tinham participado de outros governos, inclusive os do Partido dos Trabalhadores (PT). Alguns participando, ao mesmo tempo, do governo federal de Bolsonaro e de governos estaduais da direita liberal ou governados por partidos considerados de “centro-esquerda”, como o PT.
Um governo onde alguns dos mais notoriamente neofascistas acabaram sendo afastados, por Bolsonaro, de espaços-chave que foram entregues a outras forças da direita tradicional. Inclusive os dois ministros portadores do discurso neofascista mais enfático, como o da Educação (Abraham Weintraub) e o das Relações Exteriores (Ernesto Araújo), que foram exonerados. Ou seja, Bolsonaro é um neofascista, mas seu governo não chegou a ser “neofascista” (ALMEIDA, 2023.c).
Além disso, o regime continuou sendo uma democracia liberal representativa, apesar de mais carregada de autoritarismo e arbitrariedades do que normalmente é a democracia com “as características brasileiras”. Arbitrariedades que foram se intensificando desde o processo da Lava Jato, do golpe do impeachment de Dilma Rousseff e das condenações e prisão de Lula da Silva para afastá-lo da disputa presidencial em 2018.
A tutela militar civil burguesa
Finalmente, Bolsonaro não contou com um cheque em branco das classes dominantes nem da maioria dos comandantes militares para chefiar uma ditadura. Não contou com um judiciário absolutamente submisso. Não teve o parlamento a seus pés. Nem uma grande mídia em seu favor pessoal. Ao contrário, houve um processo de tutela do seu governo. Uma tutela militar, civil burguesa (ALMEIDA, 2023.c).
Apesar de seus desejos de ser um Mussolini ou um Napoleão Bonaparte não havia condições políticas para isso. Queria ser um “Duce”, mas foi tutelado.
As classes dominantes não aceitaram suas ambições pessoais e nem precisavam disso porque, no Brasil, não houve uma crise de hegemonia. Não havia a ascensão de um movimento popular em condições de chegar ao poder político por uma via revolucionária, nem tampouco a um governo popular reformista radical por uma via eleitoral. Não ao ponto de as frações burguesas hegemônicas abrirem mão de um regime de democracia liberal por um regime de ditadura fascista comandada pelo “Duce” Bolsonaro.
Isso porque as chamadas “esquerda” e “centro-esquerda” predominantes no Brasil, que poderiam chegar (e realmente chegaram ao governo pela via eleitoral), não têm uma perspectiva que vá além dos limites da ordem social burguesa e de um programa social-liberal e da manutenção da dependência ao capital imperialista.
Enfim, a grande burguesia já tinha dado o golpe que era do seu interesse num determinado momento (o impeachment de Dilma Rousseff). E não queria nem precisava ser governada ditatorialmente por um aventureiro.
O fundamental, para o grande capital, já estava sendo feito sem precisar um golpe militar para continuar o serviço.
Assim, um golpe militar propriamente dito não foi um projeto que unificasse as frações hegemônicas da burguesia brasileira e internacional, nem as elites políticas, do Judiciário, das Forças Armadas e, muito menos, da grande mídia empresarial.
Essa mídia – especialmente seus órgãos mais tradicionais e orgânicos do grande capital — colocou-se em sua maioria em oposição a Bolsonaro. Mas, como regra geral, apoiou sua política econômica, procurando diferenciar os que considerava “bons” e os “maus” dentro do governo.
Desde sempre, o governo Bolsonaro foi tutelado: uma tutela militar civil, burguesa, por dentro do próprio governo e de fora para dentro. Uma parte dos militares, que participavam da tutela militar nos cargos do governo, romperam e passaram a agir por fora (ALMEIDA, 2023.c). O grande capital, na medida em que foi conseguindo seus objetivos estruturais (como as reformas neoliberais, privatizações etc), passou a focar na melhora do clima político-institucional, para enfrentar a prolongada crise econômica.
Parte da tutela parlamentar entrou no governo, via Centrão. Por outro lado, as frações principais da classe dominante, da elite política, da grande mídia e do judiciário preferiam uma candidatura da chamada “terceira via” para 2022. Mas Bolsonaro foi um empecilho a uma “terceira via” com força eleitoral e a disputa acabou levando à vitória apertada de Lula no segundo turno (ALMEIDA, 2023.c). Houve a fracassada aventura golpista de 8 de Janeiro de 2023 (ALMEIDA, 2023.a) com a digitais de Bolsonaro. Devido aos crimes que cometeu, ele recebeu duas condenações à inelegibilidade pelo TSE. E está, provavelmente, a caminho da cadeia por seu papel dirigente na tentativa de golpe de Estado.
Enfim, o Estado é burguês e, apesar da escalada autoritária, continuou sendo liberal democrático representativo, não sendo um ente monolítico que obedece a um comando único e sem contradições. Não houve uma ditadura política, estrito senso. Houve uma tutela com conflitos, negociações e acordos – alguns dos quais não transparentes. E funcionou – no sentido de garantir os interesses comuns das frações hegemônicas da classe dominante, é claro.
Naquilo que é essencial à hegemonia burguesa, governo, parlamento, judiciário, polícias, Ministério Público, Forças Armadas e grande mídia agiram no mesmo sentido. E, apesar da grave crise, a hegemonia burguesa continuou forte.
Mas, um movimento neofascista passou a ter vida própria no Brasil, independente de Bolsonaro e de sua liderança pessoal direta.
Síntese do neofascismo brasileiro
Como vimos, o neofascismo brasileiro tem características do fascismo histórico assim como particularidades. Como o histórico, é um movimento de autoritarismo militarista; a serviço do grande capital e para reprimir as lutas do povo; antissocialista e anticomunista; liderado por um líder “Salvador da pátria”; conservador na pauta dos costumes e nas relações sociais, racista, xenófobo e misógino; tem uma organização política difusa e articulada, com ações abertas na sociedade civil e conspirativas que cumpre, de certo modo, um papel de partido; e tem embriões de uma estrutura paramilitar. Mas, não tem uma organização partidária nem uma organização paramilitar própria; pontualmente, promove a repressão direta das massas; não tem limites morais; age por dentro e por fora do Estado, legal e ilegalmente; tem a cumplicidade de uma parte do aparelho jurídico coercitivo; pretende subverter a ordem.
Entretanto, surgiu num momento de crise econômica, política e institucional, mas não de crise de hegemonia. Ao contrário, a hegemonia burguesa estava (está) forte e não corria nem corre riscos conjunturais. Não é estatizante – ao contrário, sua política econômica é radicalmente neoliberal; seu nacionalismo é retórico e manipulativo dos símbolos nacionais, como o verde e amarelo. Porém, de fato, é um movimento entreguista aberto a todo tipo de presença econômica de capitais estrangeiros. Tem uma política externa oposta a uma soberania nacional e ampliou a presença de capitais imperialistas de várias origens. Finalmente, apesar dos desejos do seu líder, não conseguiu um domínio do neofascismo no governo nem, muito menos, transformar o regime político numa ditadura fascista.
Considerações finais
Portanto, não há uma incompatibilidade entre fascismo em geral e liberalismo econômico. Isso se expressa no neofascismo neoliberal.
Tampouco há um impedimento para uma aproximação entre setores do neofascismo e uma direita liberal e/ou conservadora tradicional que atenue os elementos mais toscos e delirantes do bolsonarismo e crie condições para uma alternativa mais consensual entre as diversas frações da classe dominante e de suas elites políticas e militares. E que possa ter força política e demonstrar viabilidade eleitoral. Essa é, hoje, a vontade política da chamada “terceira via”.
Referências bibliográficas
ALMEIDA, Jorge. 2022: ano da consolidação da bipolarização imperialista. In: Turbulências e Desafios: o Brasil e o mundo na crise do capitalismo. In: ALMEIDA, Jorge; ANDRADE, Eliziário, 251-259. São Paulo: Editora Dialética, 2023.b.
ALMEIDA, Jorge. 8 de janeiro: ameaças e oportunidades. Outras Palavras, 2023.a. Disponível em: https://outraspalavras.net/crise-brasileira/8-de-janeiro-ameacas-e-oportunidades/
ALMEIDA, Jorge; ANDRADE, Eliziário. Turbulências e Desafios: o Brasil e o mundo na crise do capitalismo. São Paulo: Editora Dialética, 2023.c.
MÉSZÁROS, István. Para além do capital. São Paulo, Boitempo Editorial, 2002.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000.
GRAMSCI, Antonio. Escritos políticos, vol 2. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2004.
MAESTRI, Mario e CANDREVA, Luigi. Antonio Gramsci: Vida e Obra de um comunista revolucionário. Ed. Expressão Popular, São Paulo, 2001.
1 Seguimos nesta seção com base nos vários artigos publicados por Gramsci durante a ascensão do fascismo na Itália, que estão reunidos na coletânea, Escritos Políticos, Volume 2, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira (2004). Especialmente: O povo dos macacos; Socialistas e fascistas; Subversivismo reacionário; Os líderes e as massas; Os arditi del Popolo; Golpe de estado; Os dois Fascismos; Legalidade; Lições: As origens do gabinete Mussolini.
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