Crônica sobre alienação e autoengano na esquerda

Governo insiste em entorpecer a si próprio com os “números da economia”. Não enxerga a regressão do país e o ressentimento que ela produz. Por isso, isola-se das maiorias. Um recomeço, mesmo modesto, é possível. Mas exige novas políticas – e outro tipo de diálogo com as maiorias

Imagem: Cristiano Mariz
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Por Bruno Resck

tulo original:
Crescimento para quem? O dilema entre indicadores positivos e a realidade do trabalhador

Ao conversar com um trabalhador terceirizado da zeladoria do prédio onde trabalho, fui confrontado com uma realidade que muitos preferem ignorar: o abismo entre os números da economia e a vida real dos trabalhadores.

Nesses papos informais em que não ultrapassamos os limites do senso comum, a conversa chegou a uma conclusão unânime: como os preços dos alimentos estavam altos no supermercado. Neste momento, um dos terceirizados mencionou que recebe algo em torno de R$ 1.200 mensais e relatou a dificuldade em fazer esse valor durar até o fim do mês. A conversa acabou, cada um seguiu seu caminho.

No entanto, fiquei refletindo sobre aquela troca de palavras. Toda vez que passo por um ponto de ônibus lotado ou vejo longas filas de espera em hospitais públicos, aquele breve bate-papo retorna à minha memória. Essa realidade me fez refletir sobre uma aparente contradição: os números positivos da economia apresentados pelo governo contrastam com a queda de popularidade do presidente Lula.

Quando aquele trabalhador terceirizado recebe seu contracheque no fim do mês, com um valor abaixo do salário-mínimo, ele realmente sente os efeitos do crescimento do PIB? Ou do suposto aumento do emprego? Para ele, o que pesa é o preço do arroz, do aluguel e da conta de luz – e não as estatísticas oficiais. Será que, em 2026, ele se sentirá motivado a votar pensando na defesa da democracia contra a extrema direita, ou sua escolha será guiada pela frustração cotidiana?

Os números oficiais mostram um desemprego baixo, mas escondem um mercado de trabalho precário. O CAGED revela alta rotatividade e salários iniciais baixos, o que significa que muitos trabalhadores não conseguem estabilidade financeira. Além disso, é necessário considerar a alta informalidade e a preocupante taxa de desemprego entre jovens de 18 a 24 anos, que gira em torno de 15%. A informalidade, por sua vez, fomenta a ilusão do empreendedorismo, que, na prática, muitas vezes se traduz em precarização e superexploração do trabalho.

Nos dois primeiros anos do governo Lula 3, algumas categorias de trabalhadores obtiveram ganhos reais em seus salários. No entanto, a inflação dos combustíveis, dos planos de saúde, do aluguel e, principalmente, dos alimentos corrói esse aumento, tornando-o quase imperceptível para a população.

Outro fator alarmante, que contrasta com os indicadores positivos do governo, é o grau de endividamento das famílias. Segundo a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), 2024 terminou com 77% das famílias brasileiras endividadas. Esse cenário de endividamento é acompanhado pelos sucessivos recordes de lucro dos bancos, que continuam drenando a renda dos trabalhadores.

Diante desse cenário, percebe-se uma sociedade dividida, tomada por um certo ar de desconfiança e desalento. Mesmo com os esforços do governo para melhorar sua comunicação, quem convive com o “chão de fábrica” nota a ausência de entusiasmo em relação à atual gestão. No fim das contas, para se comunicar melhor, é preciso ter o que comunicar.

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Lula venceu em 2022 ao unir diferentes forças políticas contra a extrema direita. Agora, essa mesma aliança limita suas ações, pois depende de um Congresso majoritariamente conservador e de um setor financeiro que pressiona por austeridade. Ainda assim, há espaço para medidas progressistas que não dependem exclusivamente do Legislativo, como o fortalecimento de bancos públicos, Petrobras e políticas de valorização salarial.

Essa insatisfação difusa na sociedade pode ser explicada apenas como um problema de comunicação ou pelos limites da governabilidade? Ou há algo mais profundo?

Desde 2003, os governos petistas não romperam com os dogmas neoliberais do Consenso de Washington – câmbio flutuante, meta de inflação e superávit primário. Pelo contrário, a gestão petista reafirma sua fé na sustentabilidade do Novo Arcabouço Fiscal (NAF) e na manutenção da independência do Banco Central. Em quase quinze anos de governo, o Partido dos Trabalhadores não alterou as estruturas do capitalismo rentista brasileiro e o nosso papel na divisão internacional do trabalho.

A austeridade imposta pelo NAF, sob a gestão do ministro Fernando Haddad, impede investimentos na melhoria e expansão dos serviços públicos. Em contrapartida, a lógica neoliberal viabiliza a transferência desses serviços ao setor privado. O BNDES do governo Lula 3 dá continuidade ao programa “Ponte para o Futuro” inaugurado no governo Michel Temer. Uma das políticas desse programa são as Parcerias Público-Privadas (PPPs), que destinam dinheiro público para concessões de estradas, portos, parques, escolas e creches. Assim, o grande capital ganha duplamente: primeiro, pela captura de recursos do orçamento público por meio da dívida pública; segundo, pela apropriação de bens e serviços estatais via concessões e privatizações.

Apesar do discurso progressista, não houve, por parte do atual governo, esforços para reverter o avanço da terceirização no serviço público e privado. Pelo contrário, a precarização do trabalho tem se intensificado dia após dia. Um agravante: a terceirização no serviço público não garante, necessariamente, a redução dos gastos do governo. Em muitos casos, o custo com contratos de empresas terceirizadas pode ser até maior do que a manutenção de servidores efetivos, sem contar a perda de qualidade e estabilidade nos serviços prestados.

Não há qualquer sinal de que privatizações de empresas estratégicas serão revertidas para que estas atuem no desenvolvimento do país. Em vez disso, o governo segue apresentando pacotes de ajuste fiscal que impactam diretamente as camadas mais vulneráveis da população, beneficiários de programas como Bolsa Família e Benefício de Prestação Continuada (BPC). São as eternas “reformas” neoliberais.

Pois bem, um espectro ronda a política brasileira: o espectro das jornadas de junho de 2013. Naquele momento, as lideranças petistas falharam em perceber que, mais do que um reflexo do patrimonialismo ou da influência das redes sociais, o que levou milhares de manifestantes às ruas foi a insatisfação com a baixa qualidade dos serviços públicos. Os grandes centros urbanos eram verdadeiros barris de pólvora prestes a explodir.

Apesar dos avanços sociais como políticas de combate à fome, a expansão da rede federal de ensino e um período de crescimento econômico em decorrência do boom de comodities que possibilitou a ampliação do investimento público, existia uma crescente insatisfação entre diferentes extratos da população.

Embora o país tenha experimentado um sentimento de euforia e otimismo ao longo do segundo mandato do presidente Lula, existia um déficit de políticas urbanas de transporte, segurança, educação e saúde públicas. Esse conjunto de insatisfações veio à tona em junho de 2013. O então prefeito da capital paulista, Fernado Haddad, anunciara um reajuste nas tarifas de ônibus. Tal medida era considerada importantíssima para o equilíbrio das contas da prefeitura, porém serviu como estopim para a eclosão de grandes manifestações que, em menos de vinte dias, se expandiram pelas cidades do país e tomando a Esplanada dos Ministérios em Brasília.

Como explicar que avanços econômicos e sociais “nunca antes vistos na história desse país“ se desmancharam pelo ar em questão de meses? Ou num arco temporal mais amplo, até o golpe de 2016? Existe uma visão míope que atribui os acontecimentos de 2013 e 2016 a uma revolta da classe média e ao fenômeno das redes sociais. São explicações que buscam um fator externo para ofuscar as críticas ao modelo econômico do lulopetismo, que manteve intactas as estruturas de dominação, acumulação do capital e superexploração da força de trabalho.

O trabalhador sabe fazer contas. O trabalhador não precisa ser tutelado. Explicações do tipo “pobre de direita” depositam nos ombros do trabalhador a responsabilidade por suas mazelas. Criam uma espécie de vínculo moral ou um certo ar de ingratidão por parte do eleitor que não vota no Partido dos Trabalhadores – ou nos partidos progressistas. É certo que o mundo do século XXI tem se mostrado complexo e é notável o avanço da extrema direita, embalado pela ideologia do empreendedorismo e pela fé da teologia da prosperidade. Por outro lado, também é certo que a extrema direita encontrou terreno fértil nas últimas quatro décadas de consolidação do neoliberalismo.

Se há algo que os governos petistas deveriam ter aprendido com as manifestações de 2013 é que promessas de crescimento econômico não são suficientes para garantir apoio popular. O trabalhador comum não vive de indicadores, mas da realidade concreta do seu cotidiano. Esse erro se repetiu em 2015, quando a então presidente Dilma Rousseff, sob forte pressão do mercado, nomeou Joaquim Levy como ministro da Fazenda.

Com um viés ortodoxo, Levy adotou uma agenda de austeridade que incluiu cortes em investimentos públicos e restrições orçamentárias, resultando em uma queda brusca da economia. O desemprego disparou, o consumo despencou e o governo perdeu apoio popular, criando um cenário de insatisfação que facilitou o processo de impeachment em 2016. Estes episódios reforçam a lição de que números positivos na economia não bastam—é preciso que o crescimento se traduza em melhorias concretas na vida das pessoas.

Se o governo Lula 3 deseja reverter o cenário de apatia e desconfiança, precisará ir além da comunicação e enfrentar, de fato, os entraves estruturais do país. Para isso, é fundamental romper com o Arcabouço Fiscal, que impõe uma lógica de “austeridade” permanente e sufoca a capacidade do Estado de investir em infraestrutura, serviços públicos e geração de empregos. O crescimento econômico sustentável depende de um Estado forte, capaz de impulsionar a indústria nacional, reduzir desigualdades e garantir que o desenvolvimento chegue a todos.

A ampliação da CONAB e de políticas de reforma agrária poderiam contribuir para a estabilidade dos preços dos alimentos, enquanto o fortalecimento dos bancos públicos e a ampliação do crédito produtivo permitiriam que pequenos e médios empresários não ficassem reféns das altas taxas de juros do setor financeiro privado. Acabar com o Arcabouço Fiscal não significa irresponsabilidade fiscal, mas sim a substituição de um modelo que estrangula o investimento público por uma política econômica que priorize o bem-estar social e o fortalecimento do setor produtivo.

Além disso, é essencial que o governo reconstrua seu vínculo com as bases populares e escute aqueles que vivenciam diariamente os impactos da política econômica. O distanciamento entre a gestão federal e o povo trabalhador gera um vácuo que pode ser explorado por discursos oportunistas da extrema direita.

Se a insatisfação cresce mesmo diante de indicadores positivos, é porque esses números não se traduzem em melhorias concretas no cotidiano da maioria. O governo precisa abrir canais reais de participação popular, fortalecer conselhos e movimentos sociais, e garantir que suas decisões sejam moldadas pelas necessidades da população. Mais do que anunciar medidas, é preciso que as pessoas se sintam parte do projeto de reconstrução do país. Caso contrário, o descontentamento continuará crescendo – e poderá ser capturado por forças políticas que oferecem respostas ainda mais regressivas.

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