Conjuntura: Há motivos para otimismo no Brasil?

Ameaças golpistas do presidente não devem ser subestimadas. Há uma escalada militar e policial no país, com motins da PM, “libera geral” de armas, generais sedentos por mais poder e explosão de milícias. O bolsonarismo (ainda) não está morto

Imagem: Venes Caitano
.

É compreensível que uma campanha eleitoral assuma uma postura otimista. De fato, no convencimento do eleitorado, as perspectivas de uma chance real de vitória são mais do que essenciais e precisam ser demonstradas com um discurso positivo. Mas os rumos políticos de um país não dependem apenas de resultados eleitorais, e o Brasil vem sendo prova disso nos últimos 10 anos.

Dito isto, é claro que a possibilidade grande de uma vitória de Lula nas urnas em outubro empolga boa parte das parcelas mais progressistas da população. Porém, este clima de entusiasmo parece ter encurtado a memória de muitas pessoas. Por vezes, com muito do que se lê e ouve por aí, nem parece que, há cerca de apenas 8 meses, os governadores do país tiveram de se reunir para discutir formas de travar um movimento golpista que se iniciava nas Polícias Militares.

Esta lembrança simbólica traz uma pergunta que deveria ser central para compreender a atual situação brasileira: hoje, estamos mais próximos ou mais distantes de um novo golpe, possivelmente (para)militarizado, do que estávamos até 2018?

Principalmente nestes tempos de intensidade das redes sociais, é claro que a chamada “guerra de narrativas” acaba por tomar a maior parte do espaço do debate político. E, nesta guerra, uma parcela da oposição colou na narrativa de que Bolsonaro seria uma figura política enfraquecida que constantemente tem de recuar de seus arroubos autoritários.

Ora, mas em que área o bolsonarismo teve, de fato, que recuar?

Tomemos como exemplo a questão armamentista: somente entre os CACs (caçadores, atiradores e colecionadores), os novos registros de armas subiram 333% nos três primeiros anos de governo Bolsonaro. O número de pessoas que integram este grupo específico saltou, nesse período, de 255.402 para 1.085.888.

Ao mesmo tempo, o discurso destes grupos também avançou na área política: no lugar da defesa do armamento para “defesa contra bandidos”, começou-se a espalhar um discurso inspirado naquele das milícias paramilitares típicas dos EUA, em que a posse e o porte de armas são defendidos para fins declaradamente políticos.

Em 2020, aliás, fomos surpreendidos pelo escandaloso vídeo da reunião ministerial em que Bolsonaro falava abertamente destes objetivos espúrios de sua política de armas. Após isso, houve alguma intensificação da fiscalização sobre clubes de tiro e armamentos? Ao contrário, o país foi ainda mais inundado por armas como os números acima demonstraram.

De igual forma, podemos analisar a questão policial. A eleição de 2018 já havia quadruplicado o número de policiais e militares eleitos para o Congresso Nacional, de 18 para 73. Nos anos seguintes, nas ruas, pudemos observar alguns reflexos desta politização. Em 2020, por exemplo, tivemos o caso da seletividade da PM de São Paulo, que atacou manifestantes de esquerda para defender um protesto bolsonarista na Paulista, além dos protestos de policiais no Ceará, que aterrorizaram a população de Sobral.

Em 2021, este barril de pólvora policial chegou perto de explodir. Em maio, a repressão a um protesto contra Bolsonaro em Recife gerou suspeitas de que a PM pernambucana teria agido de forma autônoma. Aumentava o temor de que as polícias estaduais poderiam estar fugindo do controle de seus governadores em um processo de politização bolsonarista. Processo esse que chegou ao ápice às vésperas do feriado da Independência, com associações das PMs e até policiais militares da ativa passando a se manifestar a favor de Bolsonaro.

Os casos geraram a reunião emergencial de governadores aqui já citada e o temor de que um golpe policialesco era realmente possível tomou o país. A temperatura de todo este conflito acabou esfriando, mas será que, de fato, este movimento recuou? Bem, em dezembro de 2021, a bancada da bala conseguiu aprovar na Câmara dos Deputados a urgência de um projeto que, entre outros absurdos, reduz o poder de controle dos Governos Estaduais sobre as suas Polícias Militares.

E por falar em militares…

Quando o Clube Militar celebrava os tempos da ditadura e soltava notas ameaçadoras à época do governo Dilma, muitos minimizavam dizendo tratar-se apenas de “generais de pijama”. Pois bem, os anos passaram e os militares se multiplicaram em cargos do Poder Executivo. No geral, um já alto número de 2.765 militares das Forças Armadas ocupantes destas posições em 2018 saltou para 6.157 em 2020.

Também se multiplicaram as declarações golpistas no seio das Forças Armadas. Como esquecer a nota do então comandante do Exército, General Villas Bôas, às vésperas do julgamento do habeas corpus de Lula, em 2018, que poderia ter mudado os rumos das eleições presidenciais daquele ano? Apenas um entre tantos outros exemplos.

Novamente, pergunto: de lá para cá, foi feito algo para frear o ímpeto golpista destes militares? Ao contrário, vimos Bolsonaro rearranjar o comando das Forças Armadas no início de 2021 e, no Sete de Setembro daquele ano, utilizar uma parada militar para ameaçar as instituições e o povo brasileiro. Agora, em pleno 2022, sofremos com um alto escalão militar alinhado ao discurso bolsonarista ocupando posições estratégicas no controle das novas eleições presidenciais que se aproximam.

Fato é que a militarização do Estado brasileiro não deu um só passo para trás desde que se iniciou com o golpe de 2016. Ao mesmo tempo, as demais instituições, que poderiam colocar freios democráticos neste avanço, ou são capituladas pelo bolsonarismo ou desmoronam com a desmoralização promovida pelo Governo Federal contra elas.

O Congresso Nacional não move um dedo para punir os absurdos cometidos por seus pares bolsonaristas. O caso de Daniel Silveira refugiando-se na Câmara dos Deputados, nesse sentido, é emblemático. O STF e o TSE já têm tantos generais em seus cangotes que fica até difícil entender se o Judiciário é cúmplice ou apenas refém do bolsonarismo militarizado.

Para piorar, Legislativo e Judiciário gozam de cada vez menos legitimidade frente ao povo brasileiro, em parte pelas desmoralizações promovidas pelo Governo, em parte pelas desmoralizações a que eles mesmos se submeteram nos últimos anos.

Nesse cenário, o autoritarismo bolsonarista apenas avança, e as atitudes das burguesias brasileiras refletem bem isso. A burguesia rural, por exemplo, parece já agir em clima de ditadura. Não que a violência no campo seja algo novo no Brasil, mas assusta o nível a que ela tem chegado. Garimpos avançam sobre terras indígenas sem qualquer pudor. O Pantanal, a Amazônia e o Cerrado queimam em ritmo frenético. O sangue e o fogo correm soltos no interior do Brasil, enquanto a “boiada” dos ruralistas vai passando sem ninguém para fechar a porteira.

Já a burguesia “urbana”, essencialmente financeira, começa a dar mostras de que, mais uma vez, pode acabar escolhendo o lado da barbárie nas eleições mesmo com toda a crise econômica causada pelo governo Bolsonaro. A pressão da grande mídia para tentar fazer Lula desistir de seus planos de revogar as impopulares reformas liberais, como a trabalhista, a da Previdência e o Teto de Gastos, mostra que editoriais de “uma escolha muito difícil” devem ter uma segunda edição em 2022.

Com todos estes avanços autoritários, assusta que haja quem acredite na tese de que o bolsonarismo viva de recuos. Assusta que haja quem pense que ignorar seus ataques à democracia e focar apenas no futuro eleitoral possa ser o melhor remédio. Não estamos a tratar de um youtuber falando bobagens, mas de um presidente da República, com seus militares, seus juízes, seus promotores, seus policiais e toda a força que uma pessoa que controla a máquina pública de um país pode ter.

Bolsonaro pode até ter perdido apoio popular desde 2018, mas isso não necessariamente o torna mais fraco. Ele pode ter recuado em número de votos, mas avançou em seu poder sobre todos os mecanismos capazes de subjugar a vontade popular. Não é preciso ter maioria para um golpe.

Confesso que, nesse cenário, as opiniões otimistas têm me assustado mais até mesmo do que as pessimistas. Elas me fazem lembrar um importante trecho do livro O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, onde Karl Marx escreve sobre a situação pré-golpe na França do século 19:

O golpe de Estado sempre foi a ideia fixa de Bonaparte. Com ela, tornou a pisar em território francês. Era a tal ponto possuído por essa ideia que a traía e a divulgava continuamente. Era tão fraco que também renunciava a ela com frequência. A sombra do golpe de Estado tinha se tornado tão familiar aos parisienses como fantasma que eles não quiseram acreditar nela quando finalmente apareceu em carne e osso”.

Bolsonaro só recua um passo depois de já ter avançado outros dez rumo a um precipício de autoritarismo e violência. Narrativas políticas propagadas por redes sociais podem ter sua importância, mas não são capazes de frear a marcha do nosso país em direção a este abismo.

Devemos lembrar que vivemos em um país que, há 6 anos, destituiu uma presidenta legítima. Que, há 4 anos, prendeu o líder das pesquisas presidenciais para eleger o 2º colocado. Que, há menos de um ano, realizou uma parada militar em tom de ameaça enquanto governadores se reuniam para discutir freios ao golpismo policial. Neste país, liderar uma pesquisa eleitoral é mesmo motivo suficiente para alguma narrativa otimista?

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *