Brasil: A transição energética sabotada

Num países com matriz elétrica limpa e barata, energia é caríssima, geração oprime comunidades e risco de apagão persiste. Causa: rentismo e interesses privados dominam, como diriam os clássicos do socialismo e o irreverente Belchior

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Por Cássio Cardoso Carvalho

Título original:
Entre o tudo e o nada – uma provocação à esquerda brasileira sobre a transição energética

Há mais de um século, na Rússia revolucionária, Lênin defendia, no VIII Congresso dos Sovietes1, em 1920, que “o socialismo significa os sovietes mais a eletricidade”. A afirmação expressava a convicção de que, uma vez conquistado o poder político pelos sovietes, era fundamental qualificar o projeto produtivo e as formas de vida que o proletariado buscava construir no socialismo. Tratava-se de superar a herança feudal do antigo regime czarista, resistir ao intervencionismo estrangeiro liderado por Estados Unidos, Grã-Bretanha e França, além de enfrentar os contra-revolucionários internos. Em outras palavras, Lênin destacava a centralidade da transformação econômica ancorada no avanço técnico-científico.

Poucas décadas depois, em condições sociais e econômicas que de certa maneira lembravam a Rússia pré-revolucionária — nesse caso, o chamado “século da humilhação”, imposto por Japão e potências européias —, os chineses, liderados por Mao Tse-Tung, mostravam que após uma ampla reforma agrária, a industrialização da China seria condição imprescindível para garantir o “Grande Salto Adiante” e para a envergadura política, econômica e social que a China apresenta nos dias atuais. Esse processo exigiu a ampliação da oferta de energia elétrica, sustentada por mecanismos de controle, coordenação e volumosos investimentos estatais.

O materialismo histórico soviético e chinês oferece assim — guardadas as diferenças de contexto econômico e social da época —, importantes elementos para refletir sobre os desafios contemporâneos enfrentados pelo Brasil e, em especial, pela esquerda brasileira, no que se refere às oportunidades e dilemas da transição energética. Essa reflexão se insere em um cenário global marcado por incertezas, pela ascensão da extrema direita, pelo acirramento de conflitos e, sobretudo, pela emergência climática, que evidencia os limites estruturais e as tensões internas do sistema capitalista.

Desde o marco da Revolução Industrial, o planeta nunca esteve tão quente. Em 2024, pela primeira vez, a temperatura média global elevou-se mais de 1,5ºC acima dos níveis pré-industriais. Esse resultado é consequência direta do acúmulo de gases de efeito estufa na atmosfera, principalmente o dióxido de carbono (CO₂), que pode ficar lá por mais de mil anos, e que é proveniente da queima de combustíveis fósseis para gerar energia. Esse processo foi o pilar central que viabilizou o crescimento econômico dos países capitalistas avançados ao longo dos últimos séculos. Estados Unidos e União Europeia juntos são responsáveis por cerca de 41% das emissões acumuladas de CO₂ desde 1850, ao passo que, comparativamente, a América Latina e Caribe respondem por apenas 4,14%2. A curva exponencial desse quadro se intensificou a partir da segunda metade do século XX.

Para enfrentar o desafio do aquecimento global, a transição energética apresenta-se como a solução mais viável, na medida em que busca reduzir a dependência dos combustíveis fósseis. Esse processo torna-se ainda mais urgente diante da tendência de crescimento da demanda energética mundial nas próximas décadas, impulsionada sobretudo pelo aumento demográfico da África Subsaariana, pela ampliação do acesso à energia em países em desenvolvimento, como a Índia, e pelos desdobramentos da Iniciativa Cinturão e Rota.

Nesse cenário global, o Brasil se apresenta como um ator de destaque. É verdade que dizer isso pode soar um tanto quanto generalista, já que existem muitos fatores a levar em conta. Mas, para efeito de análise, vamos focar aqui no setor elétrico brasileiro.

Em primeiro lugar, porque, ao longo de sua trajetória, o Brasil consolidou uma matriz energética relativamente renovável em comparação à média mundial, seja por meio das hidrelétricas, mas também por conta do etanol, viabilizada no pós Choque do Petróleo, de 1973. Além disso, possui significativa capacidade de expansão em fontes renováveis, seja pela abundância de irradiação solar, pela intensidade dos ventos — que possibilitam, por exemplo, a produção de vetores energéticos como o hidrogênio verde (H₂V) — ou ainda pela disponibilidade de minerais estratégicos indispensáveis à transição energética. Contudo, coloca-se uma disputa central no caso brasileiro: qual deve ser o papel do Estado diante dessa janela de oportunidades e quais serão os impactos políticos, econômicos e sociais desse momento histórico? Alguns elementos podem contribuir para compreender essas questões e fomentar o debate necessário sobre o tema.

Em primeiro lugar, é preciso considerar que o setor elétrico — que pode ser considerado a espinha dorsal da transição energética — foi majoritariamente entregue ao setor privado Este movimento, iniciado na década de 1990, ao longo dos governos de Fernando Henrique Cardoso, foi concretizado nos últimos anos, por Michel Temer, que se incubiu de vender as últimas estatais de distribuição de distribuição, e por Bolsonaro, que sancionou a privatização da maior empresa de energia elétrica da América Latina, a Eletrobras. Esse é o primeiro indicativo de que, mesmo com a expansão e o potencial das fontes renováveis na nossa matriz elétrica, não é o Estado brasileiro que vem conduzindo ou puxando esse braço da transição energética no país – mas sim o setor privado, guiado pelos interesses do grande capital.

Esse ponto inicial permite trazer uma outra contribuição de Lênin, em sua obra ‘Imperialismo, estágio superior do capitalismo’, na qual ele ressalta que o modelo econômico se apropria de toda e qualquer oportunidade viável para manter seu domínio. Neste caso, a apropriação se dá por meio da transição energética.

Um segundo ponto, ligado ao primeiro, é a falta de planejamento do setor elétrico, motivada principalmente pelos interesses próprios do segmento de geração, nas mãos do setor privado — desde as fontes renováveis até os combustíveis fósseis. As empreas disputam espaço na matriz, mais pela participação no mercado do que por estudos de demanda, características técnicas, ou necessidades econômicas e sociais. Exemplos disso são a expansão desordenada da geração distribuída de energia solar fotovoltaica – a que provém de instalações residenciais – e a construção compulsória de termelétricas a gás natural, viabilizada pela privatização da Eletrobras. Essas decisões acabam criando barreiras para outras fontes e desconsideram qualquer planejamento de curto, médio ou longo prazo.

Ademais, há inúmeros relatos, denúncias e estudos mostrando que o modelo energético brasileiro tem se mostrado predatório para as comunidades, especialmente os pequenos agricultores, que convivem com os empreendimentos de geração de energia, o qual apontamos aqui como um terceiro elemento. Nessas áreas, há relações abusivas, pagamentos irrisórios, conflitos agrários e até impactos na saúde da população. Isso evidencia que a transição energética no país está sendo conduzida pelo setor privado, enquanto o Estado fecha os olhos e, muitas vezes, legitima esses processos, inclusive pela falta de legislação específica. Ao mesmo tempo, quando há avanços pontuais, como salvaguardas, taxonomia ou contrapartidas, são, como observa Marx em O 18 Brumário de Luís Bonaparte, apenas instrumentos usados pelo sistema para consolidar e perpetuar seu domínio econômico; em outras palavras, o cerne da questão permanece intocado.

É nesse terceiro ponto que vale retomar a experiência chinesa: lá, a base para o desenvolvimento industrial passou necessariamente pela reforma agrária e pelo fortalecimento do setor primário, que forneceria tanto matérias-primas para a indústria quanto alimentos para os trabalhadores urbanos.

Um quarto elemento são os beneficiários do potencial renovável do Brasil, e a quem ele poderá atender no médio prazo. Isso fica evidente na forma como a energia gerada pelas fontes renováveis, sustentada por volumosos subsídios, é comercializada. Grande parte dela, embora injetada no Sistema Interligado Nacional — um monopólio natural —, é comprada por grandes consumidores, que a utilizam como insumo para viabilizar produtos primários destinados à exportação ou para abastecer grandes consumidores de energia, como data centers. Por outro lado, o aproveitamento da energia renovável para o médio prazo — por exemplo, na produção de vetores energéticos como o hidrogênio verde — ainda é uma grande incógnita, tanto pela viabilidade técnica deconhecida quanto pela falta de uma visão estratégica, que parece não considerar qualquer alternativa além de transformar mais um produto primário em insumo para exportação às grandes potências globais.

Diante desses elementos, percebe-se a ausência de uma visão estratégica consolidada pelo Estado brasileiro, visão esta que deve ser puxada e ancorada pela esquerda. É preciso um debate profundo sobre industrialização — mas não no modelo de simplesmente instalar grandes empresas multinacionais no país. Pelo contrário, trata-se de pensar estrategicamente em como fortalecer a indústria nacional, reduzindo a dependência externa e aproveitando o potencial das fontes renováveis de energia.

Ao mesmo tempo, devemos considerar que, para enfrentar a hegemonia do sistema capitalista, o imperialismo e o avanço do fascismo, nosso país precisa se tornar um polo industrial com forte investimento em ciência e tecnologia. Para isso, antes mesmo de falar em socialismo, é necessário construir uma visão estratégica sólida; caso contrário, a palavra socialismo se torna isolada e, por vezes, cada vez mais distante do nosso campo político.

Só com essa perspectiva estratégica poderemos, de fato, viabilizar que a classe trabalhadora detenha o poder no país, reorientando a economia, melhorando as condições de vida da nossa população e garantindo segurança e soberania nacionais.

Como canta Belchior em Clamor no Deserto: “Eh! Meus amigos / Um novo momento precisa chegar / Eu sei que é difícil começar tudo de novo / Mas eu quero tentar”. É nesse contexto, aproveitando a janela de oportunidades aberta pela transição energética, que podemos buscar o “tudo”: colocar o Brasil em condições de questionar o sistema e propor o caminho para uma nova sociedade. Caso contrário, a perpetuação do que está posto fará com que o que hoje se apresenta não passe de ‘nada’.

1 Discurso completo de Lênin no XIII Congresso, que ocorreu entre 22 e 29 de dezembro de 1920. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/lenin/1920/12/29.htm.

2 Dados extraídos da plataforma Climate Watch, considerando a métrica PIK, o setor de energia e as emissões de dióxido de carbono.

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