BC: O plano de captura total                                   

Após a “independência” do Banco Central, financismo quer a privatização “suave” do Banco Central. PEC pode facilitar o controle da política econômica e monetária, sob a justificativa de “neutralidade”. Galípolo, quem diria, endossa a ideia. Debate é feito sem qualquer transparência

Imagem: peacay em seu flickr
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O Banco Central do Brasil (BCB) tornou-se formalmente “independente” em 24 de fevereiro de 2021, na gestão de Jair Bolsonaro, data na qual foi estabelecida a autonomia operacional, administrativa e financeira do BCB. Já em uma etapa subsequente ao processo de controle das instituições públicas pelos banqueiros, está tramitando no Congresso Nacional a PEC 65/2023. Este projeto pretende, através de reforma constitucional, transformar o Banco Central em uma empresa pública, com personalidade jurídica de direito privado, que terá autonomia orçamentária e financeira. Se aprovada a emenda, o Banco poderá utilizar suas receitas próprias, como as provenientes da senhoriagem (lucro obtido com a emissão de moeda), para financiar suas despesas, sem a necessidade de repasses desses valores ao Tesouro Nacional.

A PEC prevê também a alteração do regime dos servidores do BCB do estatutário para o regido pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). A mudança significaria claramente uma etapa a mais no processo de precarização da instituição, já que os cerca de 3.600 servidores de carreira, dentre outros benefícios, perderiam a estabilidade no emprego, conforme previsto pelo Regime Jurídico Único dos servidores públicos federais. Estabilidade no emprego para esses trabalhadores não existe por acaso, mas é um pré-requisito para o exercício da função com maior independência e dedicação, sem a permanente preocupação com a demissão.

A PEC 65/2023 é um aprofundamento do processo de captura do BCB pelos rentistas. Apesar de ter sido apresentada pelo senador Vanderlan Cardoso (PSD-GO), a proposta é um legado de Roberto Campos Neto e uma encomenda do setor financeiro. A ideia que alicerça o projeto é livrar o Banco Central da influência “maligna” dos políticos. A partir da aprovação da PEC, haveria um grupo técnico no Banco que desenvolveria uma política econômica “neutra”, livre da “contaminação” dos políticos. Mas aqui tem um problema de saída: entre os economistas não há consenso teórico sobre como o Banco Central tem de atuar. Pelo contrário, existem visões até antagônicas sobre o assunto. Qualquer intervenção do Banco Central, em qualquer país do mundo, parte de premissas de natureza política. Tanto é verdade que, tirando os funcionários do BCB – que, comumente, integram a direção do Banco pela sua reconhecida competência técnica – boa parte dos diretores são originários do setor financeiro, com passagem em grandes bancos, e normalmente em cargos estratégicos.

Os diretores do BCB são profissionais, em boa parte, oriundos do sistema financeiro. Quando acaba seu mandato no banco, comumente retornam ao setor. Será coincidência que o Nubank tenha anunciado a criação de um cargo estratégico, o de Vice Chairman e Chefe Global de Políticas Públicas, especificamente para Roberto Campos Neto, ex-presidente do Banco Central? Campos Neto ficou seis meses de quarentena, remunerada, e irá assumir suas funções a partir de 1º de julho próximo, no Nubank. Pode haver dúvidas que a instituição ficou muito satisfeita com a gestão de Campos Neto à frente do BCB? A contratação de ex-secretários do Tesouro, presidentes de bancos centrais, ou altos funcionários de órgãos reguladores é uma prática dos grandes conglomerados financeiros, visando aproveitar o conhecimento e as informações privilegiadas destes profissionais sobre a complexa legislação regulatória e as dinâmicas de política econômica, além da rede de contatos no interior do governo.

Para uma grande corporação financeira, a capacidade de antecipar estratégias, possibilitadas por essas informações privilegiadas, simplesmente não tem preço. O diretor do Banco Central, que vem de um grande banco, poderá ter independência para supervisionar e regulamentar esse sistema, olhando para os interesses maiores do país? Parece muito difícil. Se conseguir manter a independência, inclusive, terá um problema para retornar a este mesmo sistema, através da famosa “porta giratória”.

No caso do Brasil, essa influência grande que o sistema financeiro exerce sobre o Banco Central é ainda mais grave, porque os bancos ganham, ou perdem, muito dinheiro com as decisões do Banco Central, especialmente no campo da política monetária. Como é conhecido, cada 1 ponto percentual a mais na taxa básica de juros, a Selic, significa um gasto anual com juros, por parte do Tesouro Nacional, de cerca de R$ 55 bilhões.

Sobre o mito da postura exclusivamente “técnica” dos membros do BCB, é relevante lembrar do diálogo entre o banqueiro André Esteves e o então presidente do Banco Central do Brasil, Roberto Campos Neto, que vazou para a imprensa em outubro de 2021. Em um dos trechos, divulgados por alguns órgãos de imprensa, relata o próprio André Esteves:

“Eu achei que caiu demais os juros na pandemia, para esses 2%. Eu me lembro que tem um conceito que chama lower bound, alguns aqui já devem ter ouvido falar, que é qual a taxa de juros mínima. E eu me lembro que os juros estavam assim em uns 3,5% e o Roberto me ligou para perguntar: ‘Pô, André, o que você está achando disso, onde você acha que está o lower bound?’. Eu falei assim: ‘olha, Roberto, eu não sei onde que está, mas eu estou vendo pelo retrovisor, porque a gente já passou por ele. A gente… acho que em algum momento a gente se achou inglês demais e levamos esses juros para 2%, o que eu acho que é um pouquinho fora de preço. Acho que a gente não comporta ainda esse juro”.

Convenhamos: só num país em que o poder público é muito esculhambado, poderia vazar uma conversa deste tipo, e o presidente do Banco Central se manter normalmente no cargo, e ainda continuar posando de “técnico”. Roberto Campos Neto não só não era neutro politicamente (o que seria impossível, para qualquer presidente), como, em algumas ocasiões, deixou de operar a política cambial, com consequências sobre a inflação. Além disso, ao fazer alertas constantes sobre o risco fiscal, na condição de presidente da principal autoridade monetária do país, gerava expectativas desfavoráveis em relação ao controle de preços e contas públicas, o que justificava a elevação dos juros, ou a sua manutenção na estratosfera. Caso típico de profecia auto cumprida: uma previsão pessimista da autoridade monetária influencia fortemente a ação dos agentes econômicos, o que concretiza a previsão realizada.

Para acabar com qualquer fantasia sobre a desejada independência do Banco Central em relação ao sistema financeiro privado, se mantida a atual estrutura do sistema, o atual presidente do Banco Central, Gabriel Galípolo, vem defendendo a PEC 65/2023. O economista, nomeado pelo presidente Lula, como uma esperança de redução dos juros básicos da economia, não só continuou com a política de juros extorsivos, como vem elogiando a tal PEC.

Um dos aspectos fundamentais nesse debate provocado pela PEC 65/2023 é a questão da meta de inflação. Durante 14 anos, desde 2005, a meta de inflação no Brasil estava fixada em 4,5%, com banda para cima e para baixo, de 1,5%. Em 2017, o Conselho Monetário Nacional (CMN) iniciou um processo de redução gradual da meta. Ela foi diminuída para 4,25%, para vigorar a partir de 2019 e para 4% a partir de 2020. Um dos argumentos em defesa da meta era o “alinhamento com as expectativas de mercado”, ou seja, a nova meta definida estaria em sintonia com as projeções do mercado financeiro, conforme indicavam os relatórios do Banco Central à época. Eram também argumentos, o estímulo que significaria uma inflação mais baixa, para o crescimento econômico e para o equilíbrio fiscal da economia. Em junho de 2023, o CMN confirmou a meta de 3% para 2025 e passou a praticar um regime de meta contínua a partir deste ano. Ou seja, a partir de 2025, a meta de inflação passa a ser considerada em um horizonte móvel, e não mais necessariamente restrita a um ano-calendário específico, com o objetivo de maior flexibilidade.

Como vimos, a meta definida para o país para este ano é de 3%, com uma margem de tolerância de 1,5 ponto percentual para cima ou para baixo. Ou seja, a inflação pode variar entre 1,5% e 4,5% sem que a meta seja considerada descumprida. O problema principal da meta atual é que ela está fora da realidade econômica brasileira. Historicamente, a inflação no Brasil tem se mantido em patamares mais elevados. A média do INPC-IBGE, para o período 2000 a 2024, 25 anos, foi de 5,60%, quase o dobro da meta atual. Levar a meta inflacionária para 3% requer políticas monetárias bastante restritivas, com juros muito altos, o que compromete o nível de crescimento econômico, o que gera prejuízos em cadeia no emprego e na arrecadação pública.

Com a meta muito baixa, criou-se no país uma aversão pelo crescimento em função da inflação que possa advir do aquecimento da economia. Uma meta mais alta, entre 4% e 4,5%, seria muito mais realista, permitindo uma política monetária menos restritiva, que possa viabilizar o crescimento. Uma meta mais elevada facilitaria manter a taxa de juros em patamares mais baixos, estimulando investimentos e consumo.

Mudar a meta de inflação, tecnicamente, é possível para o governo, porque hoje o CMN é composto por três membros: ministro da Fazenda (que atua como presidente do Conselho); ministra do Planejamento e Orçamento; presidente do Banco Central. Mas o governo não tem utilizado essa maioria no CMN. Na prática, quem dá as cartas é o presidente do Banco Central, o que acaba levando a uma distorção, que é a do BCB estabelecer as metas para ele mesmo cumprir.

O BCB que a PEC 65/2023 pretende tornar uma empresa não é responsável apenas por definir a taxa de juros e controlar a inflação. Ele possui várias outras atribuições: tem o monopólio da emissão de papel-moeda e moeda metálica no Brasil; regula a quantidade de moeda em circulação; supervisiona o funcionamento do sistema financeiro; administra as reservas cambiais e atua no mercado de câmbio para manter a estabilidade da moeda nacional; controla o volume de crédito na economia e gerencia as contas do Tesouro Nacional.

O debate em torno da PEC 65/2023, por vários motivos, está confinado aos especialistas. Um dos motivos principais disso é que para o sistema financeiro não interessa nem um pouco a transparência no debate em relação ao assunto. Essa PEC surge em uma conjuntura na qual o governo Lula e sua equipe econômica estão sob forte pressão de uma coalizão de interesses que limita muito as políticas econômicas alternativas. Essa coalização tem muito dinheiro e muito poder de pressão, sobre os órgãos governamentais que decidem a grande política e sobre os grandes meios de comunicação, muitos deles inclusive financiados pelos bancos. Essa teia de poder e influência impede medidas que favoreçam o desenvolvimento do país e que sejam benéficas a grande maioria da população. Os juros gastos com a dívida pública nos últimos 12 meses (que beiram R$ 1 trilhão) são um fator chave para compreender porque o debate sobre a PEC 65/2023 é fundamental.

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