A segunda privatização da Vale do Rio Doce

Até 2017, Estado influenciava as decisões da empresa. Mas tudo ruiu. Hoje, megafundos financeiros como a BlackRock controlam mineradora estratégica ao Brasil – e impõem reprimarização selvagem, sem investimento em tecnologia ou respeito às leis ambientais

Foto: Getty Images
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A história da Vale do Rio Doce é um espelho das transformações econômicas e políticas do Brasil. Fundada em 1942, a empresa nasceu como um instrumento estratégico para a industrialização do país e sua inserção no capitalismo global como produtor de minério de ferro e aço. Junto a outras estatais como Petrobras, Eletrobras e a Companhia Siderúrgica Nacional, a Vale foi parte de um projeto de desenvolvimento nacional, impulsionando infraestrutura, tecnologia e soberania econômica.  

Mas esse projeto foi interrompido nos anos 1990, quando o governo Fernando Henrique Cardoso, sob a égide do neoliberalismo, vendeu a empresa por míseros R$ 3,3 bilhões — um valor irrisório diante de um patrimônio que ultrapassava R$ 70 bilhões. A privatização, no entanto, não significou uma ruptura completa com o Estado. Por meio de um complexo arranjo societário, bancos e fundos de pensão de estatais formaram a Valepar, um consórcio que manteve certo controle nacional sobre a empresa. 

A entrega da Vale se inseriu, então, no contexto de reformas neoliberais e reestruturação do Estado do governo FHC. De início, o controlador da empresa seria Benjamin Steinbruch, também controlador da Companhia Siderúrgica Nacional, mas que logo se retirou da composição societária. Ao longo do período entra 1997 e 2017 um conjunto bancos e de fundos de pensão de empresas estatais controlaram a empresa formando aquilo que se denominou Valepar.

A estrutura era engenhosa: enquanto investidores privados, nacionais e internacionais, detinham a maioria das ações, o poder de decisão permanecia nas mãos da Valepar, que concentrava as ações ordinárias (com direito a voto). Dentro desse grupo, fundos de pensão como Previ e Petros tinham participação majoritária, assegurando que a política da Vale não escapasse totalmente ao interesse público. 

A lógica de controle por fundos se estabeleceu a partir de composição societária que se desdobrava em ações ordinárias e preferenciais: enquanto as primeiras teriam direito ao voto na política da empresa, as últimas somente teriam direito aos dividendos. Tal estruturação fazia com que apesar de receber aporte de capital financeiro, o controle sobre a política empresarial seria fundamentalmente desempenhado por capital nacional e com forte relação com o Estado. O acordo estabelecido após a privatização firmou que as partes detentoras das ações ordinárias não poderiam vender, ceder, ou transferi-las pelo prazo de 20 anos.

No ano de 2017, a Valepar detinha 33,7% das ações da Vale, investidores privados nacionais 12,36% e investidores privados internacionais 48,65%, ao passo que a União detinha 5,29% das ações. Enquanto no que se refere às ações ordinárias a Valepar detinha 53,88% das ações, o que fazia com o que assumisse posição majoritária na definição dos rumos da empresa. No interior da Valepar a Litel Participações mantinha 49% das ações, o Bradesco 21%, a Mitsui 18%, o BNDES 11,5%, e a Eletron 0,03%. A Litel Participações, por sua vez, então era composta pelos quatro fundos de pensão de trabalhadores de estatais: Previ, dos funcionários do Banco do Brasil; Petros, dos funcionários da Petrobrás; Funcef, dos funcionários da Caixa e Funcesp, dos trabalhadores das companhias elétricas paulistas.

Esse equilíbrio frágil começou a ruir com a crise econômica de 2015-2016. A queda brutal no preço das commodities — o minério de ferro despencou de US$ 87 para US$ 39 a tonelada entre 2012 e 2015 — abalou os lucros da Vale e pressionou os fundos de pensão a buscarem liquidez. Com a crise econômica, a queda dos preços internacionais dos minérios, a relação do Estado com as empresas estatais flexiona para que ocorra desinvestimento, o que se desdobra também na política desempenhada pelos fundos de pensão. Ao fundo da política de desinvestimento, em essência, está a pressão por se manter os lucros decorrentes dos dividendos. Quando o acordo de 20 anos que impedia a venda das ações ordinárias expirou, em 2017, o consórcio se dissolveu. Os fundos venderam suas participações, e o controle da empresa se dispersou no mercado. 

O que aconteceu em 2017 não foi apenas uma mudança acionária: foi uma segunda privatização. Desta vez, sem sequer a mediação dos fundos de pensão, que, apesar de suas contradições, ainda vinculavam a Vale a um mínimo de interesse coletivo. Agora, a empresa está ainda mais refém dos humores do capital financeiro global, onde decisões são tomadas com um único objetivo: o lucro imediato, sem qualquer compromisso com desenvolvimento nacional, soberania ou sustentabilidade.  

O quadro atual da composição acionário da empresa é substancialmente diferente daquele encontrado em 2017. Ingressa no controle da empresa fundos de investimento internacionais trilionários tais como a Blackrock, a Vanguard e a Capital Research Global investors. Por outro lado, mantêm-se a participação da Mitsui, empresa japonesa, enquanto controladora mais antiga. O cenário de participação desses grandes conglomerados no controle interno da empresa é de pulverização, com nenhum dos acionistas concentrando mais do que 10% da empresa em suas mãos.

Esses acionistas, majoritariamente sediados em países do Norte Global, utilizam seu controle acionário para influenciar as estratégias da empresa, priorizando a maximização de lucros em detrimento do desenvolvimento sustentável do Brasil. A BlackRock, por exemplo, pressiona por políticas de dividendos agressivas e cortes de custos, o que frequentemente resulta em menos investimentos em segurança e meio ambiente no Brasil, enquanto os lucros são repatriados para investidores estrangeiros. Essa dinâmica reforça a posição do Brasil como exportador de commodities com baixo valor agregado, perpetuando sua dependência econômica.  

Já a Capital Group, outro grande acionista, atua de forma semelhante, defendendo a expansão acelerada da produção de minério de ferro e outros recursos, mesmo quando isso implica em violações socioambientais, como as ocorridas em Mariana e Brumadinho. A Vale, sob influência desses acionistas, prioriza a extração em larga escala para atender à demanda global, especialmente da China, sem garantir que os lucros sejam reinvestidos em infraestrutura ou tecnologia no Brasil. Dessa forma, o país permanece como um mero fornecedor de matéria-prima, enquanto as grandes corporações e fundos internacionais capturam a maior parte do valor gerado, aprofundando as desigualdades estruturais do Sul Global.  

A Mitsui & Co., por sua vez, representa os interesses estratégicos do Japão e de outras economias avançadas, assegurando o suprimento de minérios a preços competitivos para suas indústrias. A atuação desses acionistas evidencia como o controle estrangeiro sobre a Vale consolida um modelo neocolonial de exploração, no qual o Brasil assume os riscos ambientais e sociais, enquanto o capital internacional se beneficia dos recursos naturais a baixo custo. Essa relação desigual não só esgota o patrimônio natural do país, mas também limita sua capacidade de ascender na cadeia global de valor, mantendo-o em uma posição periférica e dependente.

Portanto, a história da Vale é a história de um Brasil que já tentou planejar seu futuro — e de um Brasil que, desde os anos 1990, insiste em abrir mão de suas riquezas em nome de uma falsa modernidade. A segunda privatização não é um capítulo isolado: é mais um passo na entrega de um patrimônio que deveria ser dos Brasileiros.

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