A quem interessa a “Reforma” Administrativa?
Ressurge no cenário brasileiro um mito: o de que o serviço público é perdulário, ineficiente e “inchado”. O que dizem os dados reais acerca destas ideias? E onde está o verdadeiro desperdício dos recursos do Estado?
Publicado 19/08/2025 às 16:14

Ela surge e ressurge com frequência. Tal qual a fênix da mitologia grega, mesmo não chegando a morrer e virar cinzas. Quando não mais se esperava, olha ela ai de novo, a proposta de Reforma Administrativa do serviço público. Em geral embrulhada em argumentos que “adoçam a boca” da sociedade, ou seja, em prol da maior eficiência do setor público e da redução dos desperdícios e da “gastança”. Argumentos que de tão repetidos terminam ecoando e sendo aceitos como verdade. Alçam assim a tal “Reforma” ao nível de necessária e imprescindível, ou quase.
Diante de tais “verdades”, cabe examinar com um pouco de cuidado se há mesmo necessidade e premência de reformar a constituição para acomodar as propostas de mudanças na esfera administrativa do setor público.
Antes de especular sobre os dados dos gastos públicos com os servidores, cabe tentar entender os contornos gerais onde a proposta de reforma administrativa se insere. E ai se destaca outra cantilena repetida ad nauseam: a pretensa necessidade de ajuste fiscal. É nesse preceito do neoliberalismo que as questões ligadas ao Estado se enquadram. Ou seja, a ideia é que o Estado deve cortar gastos em todas as instâncias possíveis, inclusive na prestação de serviços públicos. Entende-se que o Estado deve encolher ao nível mínimo e deixar o mercado fluir e ocupar todos os espaços possíveis. Com isso os capitalistas ficam, no limite, livres de amarras regulatórias e da concorrência do Estado na prestação de serviços de saúde, educação, infraestrutura etc. Excetuam-se as atividades de administração da justiça, que garante a propriedade privada, e com isso mantém-se a base da sociedade capitalista.
O ajuste fiscal é então a peça chave dos que professam o neoliberalismo e isso tem também um outro contexto. O ajuste fiscal, ou seja, o equilíbrio do orçamento público, pode ser feito com o aumento da receita fiscal, com o corte de gastos ou fazendo as duas coisas. Só que o alvo preferido, quase único, dos capitalistas rentistas é o corte de gastos. Por não aceitar a via do aumento de receitas, difunde-se a ideia, no mínimo discutível, de que a carga tributária está “insuportavelmente no limite”. Assim, aumentar a arrecadação de impostos para ajustar o orçamento seria uma via descartável.
Será mesmo excessiva a nossa carga tributária? Vale aqui recorrer aos dados oficiais da arrecadação de impostos no Brasil. De acordo com o Ministério da Fazenda:
“Em 2024, a carga tributária bruta (CTB) do Governo Geral (governo central, governos estaduais e municipais) foi de 32,32% do PIB, o que representa um aumento de 2,06 p.p. do PIB em relação a 2023. Os dados estão no Boletim de Estimativa da Carga Tributária Bruta do Governo Geral de 2024, publicado nesta sexta-feira (28/3) pelo Tesouro Nacional.”
Essa carga foi apropriada, de forma mais ou menos estável desde 2010, entre a União (21,4%), Estados (8,5%) e Municípios (2,4%), sendo que ao longo de cada ano uma parte significativa da fatia da União é transferida aos demais entes federados. Em 2022, de acordo com a mesma fonte, a carga total foi de 31% do PIB, portanto apenas pouco mais de 1% do PIB a menos. O fato é que os dados do Tesouro Nacional desde 2010 mostram pequenas variações em torno disso.
Esse patamar de carga é excessivo? Tendo em conta a média de carga tributária dos países da OCDE, a do Brasil está abaixo dos 34,3% em média que lá é praticada. Caso o padrão de comparação seja a Suécia, por exemplo, está muito abaixo dos 43% por lá cobrado da população em impostos e taxas. Portanto, nada extraordinário o que nos é arrecadado no Brasil e até teria espaço para um pouco mais, ou seja, chegar à média de 34,3% dos países da OCDE, por exemplo.
O discurso da classe dominante e de seus representantes no Congresso e na grande mídia é o mantra do “ninguém aguenta mais imposto” nem a “gastança” do Estado. E argumentam com o discurso chinfrim de que não se pode gastar mais do que se ganha, como se o Estado se adequasse a um orçamento familiar. E sacam de pronto a tal parábola da dona de casa, sempre disponível para dar suporte ao clamor pelo equilíbrio fiscal. Propositalmente, ou não, esquecem, ou não querem admitir, que o Estado tem mais amplitude e mais flexibilidade para arrecadar. Ele pode, por exemplo, emitir títulos da dívida pública e tomar empréstimos com alguma facilidade; pode emitir moeda e pagar suas dívidas, sem necessariamente causar inflação, além de se beneficiar dos efeitos positivos dos gastos públicos sobre o crescimento econômico, que geram aumento de receita de impostos.
Assim, ao contrário do que é dito e redito na mídia, gasto público não é necessariamente “gastança” e pode contribuir para o crescimento econômico e melhoria o emprego, da renda e dos salários. Na verdade, o afã pelo equilíbrio fiscal é coisa que interessa muito de perto aos rentistas, que se sentem mais seguros com o equilíbrio fiscal, preferencialmente com superávit primário, e com uma trajetória mais contida da dívida pública, tendo também um contexto ideológico de enxugar o papel do Estado. Ao que se sabe, os tais rentistas não cobram contenção da taxa Selic pelo Banco Central, mesmo que seu patamar obsceno implique em aumento da dívida, cujo custo ultrapassa metade dos gastos públicos no Brasil e atinge quase R$ 1,0 trilhão por ano. Curioso que logo esse custo tão elevado seja tão esquecido. Pois é, o fiscalismo tão austero é também caolho ao só enxergar os gastos primários. Dai se pode concluir que a condenação a gastos públicos depende de onde se gasta, já que as despesas com juros não sofrem o olhar inquisidor e austero do mercado financeiro e dos rentistas. Caso a taxa Selic e a meta de inflação estivessem em patamares mais realistas, a trajetória da expansão da dívida pública seria bem mais suave, pois a conta com juros seria menor.
Um outro aspecto a considerar é o valor dos gastos com os servidores públicos, apontados como excessivos e pouco úteis, dada a alegada ineficiência do Estado e de seus servidores (em geral descritos como “parasitas matando o hospedeiro”). Aqui também há muito o que observar. Em 2018, conforme a Profa. Laura Carvalho em seu livro Curto Circuito, metade dos servidores ganhava menos de R$ 2,7 mil e apenas 3% do total de servidores ganhava acima de 20 s.m. Pouco deve ter mudando desde então em termos reais e assim tratar servidores públicos como privilegiados de forma generalizada é até perverso. No mínimo um equívoco.
Na verdade, os gastos com pessoal no Brasil apresentam em proporção do PIB uma leve tendência decrescente, passando de 2,6% em 2002 para 1,79% do PIB em 2024, segundo o Atlas do Estado Brasileiro do IPEA. Em 2024, os gastos com pessoal da União representaram 23% da Receita Corrente Líquida, bem abaixo do limite de 37% indicados na Lei de Responsabilidade Fiscal. Ademais, a participação do total de servidores na força de trabalho no Brasil, de acordo com a plataforma de estatísticas da Organização Internacional do Trabalho (OIT ILOSTAT), é de 12,3%, bem abaixo da média dos países da OCDE, que chega a 23,5%. Diante desses dados fica difícil endossar o discurso da “gastança” e do desperdício de recursos com o pretenso excesso de pessoal e elevada remuneração no serviço público.
Dito isso, cabe então a pergunta: está tudo muito bem ajustado e funcionando no quesito serviço público no Brasil? Não podemos dizer peremptoriamente que sim, embora o quadro não seja caótico. Sempre há coisas a melhorar e a corrigir. Algumas delas já estão inclusive sendo implantadas pelo Ministério da Gestão e Inovação desde 2023.
De uma maneira geral as distorções afloram ao se comparar a situação dos servidores nos três poderes. A distância do quadro salarial entre o Judiciário e o Executivo é uma delas. Segundo o estudo “Uma análise multidimensional da burocracia pública brasileira em duas décadas (1995-2016)”, com dados do Atlas do Estado Brasileiro: “Os servidores do Executivo federal receberam, em média, 50% das remunerações do Judiciário federal entre 2007 e 2016: R$ 8 mil contra R$ 16 mil, respectivamente. Já no Legislativo federal, os salários no período foram equivalentes a 90% da remuneração do Judiciário, em torno de R$ 14,3 mil.” Nessa média bem mais elevada do judiciário estão embutidos também os chamados “supersalários” de alguns servidores, notadamente no judiciário dos Estados, que conseguem se manter recebendo os chamados “penduricalhos” e salários muito superiores ao teto constitucional.
Outro aspecto merecedor de correções é a velocidade para a obtenção de promoções, que faz com que o servidor atinja o topo da carreira bem antes da idade de aposentadoria, o que impacta sobre a folha salarial e sobre o estímulo à prestação de bons serviços. Mudanças nesse quesito são bem vindas e os mecanismos de promoção deveriam estimular a maior eficiência do servidor, mesmo sendo esse um ponto um tanto complexo. Há aqui também que corrigir a leniência com aqueles servidores que se estribam na estabilidade e não cumprem suas tarefas com o compromisso mínimo desejável, contando com a complacência de administradores e com o longo caminho para o desligamento “a bem do serviço público”, quando é o caso. Aqui, porém, há que se ter cuidado com a generalização, que leva ao discurso do serviço público ineficiente, lento e descompromissado com as demandas da sociedade.
Assim, já que o quadro exposto não justifica tanta preocupação, o que motiva o “renascimento” frequente da proposta de reforma administrativa? O que pode estar por trás das reiteradas tentativas de reformar o serviço público? Dois pontos principais aí se destacam, além do objetivo de reduzir os gastos do Estado. São eles: o acesso via concurso público e a estabilidade no emprego. Por trás disso, por sua vez, os interesses clientelistas de ampliar os cargos comissionados, sem concurso, e de promover contratações sem estabilidade que permitiriam a demissão e a contratação de pessoas alinhadas com interesses políticos.
Pelo que já foi divulgado, o Grupo de Trabalho (GT) criado no Congresso para elaborar uma nova sugestão de Reforma Administrativa prepara o ataque à estabilidade e à entrada via concurso público, através de propostas de mudança que deixariam a estabilidade sujeita à revisão ou reavaliação após certo período. Também está na pauta do GT a contratação temporária de servidores por até dez anos. Isso é a porta de entrada para fragilizar o servidor, deixando-o à mercê do seu superior, seja ele servidor ou ocupante de cargo eletivo. Por sua vez, a entrada no serviço público via processos seletivos simplificados restringe o alcance da seleção e facilita a indicação de pessoas menos aptas a ocupar os cargos públicos. Defender tais expedientes, longe de soprar a favor da eficiência e de melhores serviços, é contribuir para a fragilização do retorno à sociedade das políticas públicas e dos serviços em geral.
Curioso é que os aspectos que merecem mudanças, como, por exemplo, os supersalários, os desníveis de remuneração entre os três poderes e a aposentadoria precoce dos militares não são mencionados como alvos do GT da Reforma. Diante das propostas divulgadas, que ameaçam o servidor e a qualidade dos serviços, há que se ter uma discussão ampla do tema e uma mobilização da sociedade para mudar os rumos propostos. Até aqui, a defesa da estabilidade e dos concursos feita pelas entidades representativas de servidores públicos tem resistido de diversas formas aos ataques e ameaças por parte dos interessados em reformas administrativas desse teor. Resta ver se a mobilização e o diálogo com a sociedade por parte das entidades dos servidores vão ser fortes o suficiente para mudar o rumo da prosa proposta, pois, do jeito que está posta, certamente não interessa ao conjunto da população brasileira.
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