A PEC da Bandidagem e a erosão da democracia

União entre Centrão e extrema-direita pela blindagem judicial dos parlamentares não visa apenas protegê-los. É também uma estratégia para retomar o controle da pauta política e pavimentar o caminho da direita para as próximas eleições

Imagem: Marina Ramos / Câmara dos Deputados
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A Câmara dos Deputados aprovou na madrugada desta quarta-feira (17) a chamada PEC das Prerrogativas, também apelidada na mídia e nas redes sociais de PEC da Blindagem ou PEC da Bandidagem, pelo fato de dificultar a punição de parlamentares pelo cometimento de crimes, mesmo aqueles considerados comuns. A proposta estabelece que deputados e senadores só poderão ser processados após autorização das respectivas Casas Legislativas.

Na prática, significa quase um retorno ao que vigorava até 2001, quando foi aprovada a Emenda Constitucional nº 35. Um caso que foi essencial para a aprovação do texto que modificava a Constituição àquela época foi o do deputado Hildebrando Pascoal que ficou conhecido depois como “Deputado da Motosserra”. Ele estava envolvido com uma série de crimes brutais ocorridos no estado do Acre na década de 1990, liderando um grupo de extermínio quando exercia a função de coronel da Polícia Militar.

O crime de maior notoriedade foi o assassinato do mecânico Agilson Firmino dos Santos, conhecido como “Baiano”, em 1996, já em seu mandato de deputado estadual. Agilson foi sequestrado, brutalmente torturado e teve seus membros amputados com uma motosserra enquanto ainda estava vivo. Seu filho de 13 anos também foi assassinado.

Eleito deputado federal em 1998, as denúncias sobre o envolvimento de Hildebrando com o esquadrão da morte vieram à tona durante seu mandato, mas a Câmara precisava autorizar que a ação penal fosse aberta. Em vez disso, os deputados preferiram cassar seu mandato para que ele fosse julgado pela justiça comum. Segundo o ministro do STF Luís Roberto Barroso, no julgamento da Questão de Ordem na Ação Penal nº 937, entre os anos de 1988 e 2001, quando entrou em vigor a emenda constitucional nº 35, nenhum parlamentar havia sido processado perante o Supremo.

A ofensiva pela aprovação da PEC da Blindagem uniu bolsonaristas e o chamado Centrão, com uma articulação feita por lideranças como o presidente do União Brasil, Antônio Rueda, e o líder do PL na Câmara, Sóstenes Cavalcante. Na tarde esta quarta-feira, líderes do PP, União Brasil, Republicanos, MDB, PL, PSDB, Avante e Podemos, e o relator do texto na Câmara, deputado Cláudio Cajado (PP-BA), conseguiram ainda apresentar uma emenda aglutinativa que retomava o texto original, restabelecendo o voto secreto, derrubado em um destaque votado na madrugada.

Segundo a proposta, também passam a ser protegidos os presidentes dos partidos políticos, que passam a contar com a prerrogativa de foro no Supremo Tribunal Federal, mas só poderão ser processados com autorização do Senado. Uma proteção que vai obviamente além do campo parlamentar.

Disfuncionalidade institucional

Talvez o corporativismo da Câmara hoje seja ainda pior que o do período de Hildebrando Pascoal. No caso de Chiquinho Brazão, preso preventivamente desde março de 2024 sob a acusação de ser um dos mandantes do assassinato da vereadora carioca Marielle Franco (PSOL), mesmo com um parecer favorável do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar à cassação do deputado, o presidente da Casa, Hugo Motta (Republicanos-PB), não colocou em votação no plenário a questão. Brazão acabou sendo cassado com base em faltas às sessões parlamentares.

À época, o Instituto Marielle Franco já alertava para o significado daquela decisão. “Ao não levar o caso ao plenário, mesmo após parecer favorável do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar pela cassação do deputado desde setembro de 2024, a Câmara dos Deputados adota uma postura institucional de blindagem. Essa decisão preserva os direitos políticos de Brazão e envia à sociedade um sinal perigoso: de que crimes políticos podem seguir sem a devida responsabilização”, dizia a nota do Instituto.

Com a PEC aprovada na Câmara, a blindagem citada na nota da entidade ganha um novo patamar. É mais um sintoma da disfuncionalidade institucional que tem aprisionado o Brasil em uma crise permanente, na qual um dos Poderes, o Legislativo, avança sobre prerrogativas dos outros dois, como fica evidente no abocanhamento cada vez maior do orçamento público, com a transparência contestada por entidades da sociedade civil, pelo Ministério Público e pelo próprio Judiciário, que reconhece as distorções, irregularidades e falta de transparência no direcionamento desses recursos.

É a continuidade do processo aberrante de empoderamento do Congresso Nacional, cujos episódios de escalada muitas vezes foram ignorados pela mídia corporativa e por parte da elite econômico-financeira por ter como alvo o campo da esquerda/centro-esquerda, como foi o caso do impeachment, sem crime de responsabilidade, da então presidenta Dilma Rousseff. Ou, do lado oposto, quando o mesmo Legislativo não autorizou abertura de ações penais contra Michel Temer e deixou de analisar pedidos de impedimento, muito mais fundamentados, contra Jair Bolsonaro, também beneficiado pela omissão de seus pares quando era deputado. Sob as vestes de uma suposta legalidade, dentro de procedimentos formais, foi se corroendo o aparelho institucional brasileiro. Assim, arranjos democráticos têm erodido em todo o mundo.

A PEC não é uma proteção contra a alegada “perseguição jurídica” do STF, mas uma forma de usurpar a prerrogativa de outro Poder para garantir a impunidade dos seus. Contudo, também há outros objetivos.

A estratégia que une Centrão e extrema direita

A união de interesses entre o Centrão e os bolsonaristas também é uma prévia do que ambos os segmentos pretendem para as eleições de 2026. Primeiro, atende a uma estratégia conhecida e praticada continuamente pelos extremistas: o domínio da pauta política. Com isso, eles mobilizam seu principal ativo, as redes sociais, e fortalecem o discurso que reabilita moralmente Bolsonaro e amalgama sua base, da perseguição política e do grande inimigo, o STF, que representaria o “sistema”, na retórica distorcida do grupo.

Após a rejeição do projeto que aumentava as alíquotas do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), o governo finalmente conseguiu reagir diante da sanha do Legislativo, empunhando uma bandeira importante para a esquerda, a da justiça tributária, e conseguindo colocar parlamentares da direita na defensiva. Inclusive no habitat hostil ao Planalto, o ambiente digital, em um episódio raro da disputa política recente.

Embora as sanções de Donald Trump contra o Brasil tenham ofuscado esse momento mais propositivo e conectado às necessidades reais da população no Congresso Nacional, trouxe ainda outra oportunidade para o Executivo pautar a discussão política, desta vez tendo como mote a soberania e o debate de iniciativas que estivessem conectadas a esse conceito.

Agora, a extrema direita, que durante todo o tempo buscou na pauta da anistia uma forma de manter sua mobilização, se alia ao Centrão na PEC da Blindagem e também na possível discussão do próprio projeto que busca livrar condenados pelo 8 de Janeiro e Bolsonaro por extensão. Para o Centrão, é um modo de colocar a bola novamente em seu campo, com interesse duplo de prejudicar a pauta do Executivo que poderia dar ao governo maior capital político junto à boa parcela da sociedade, servindo também para aumentar seu poder de barganha, em especial na liberação de emendas, das negociações para que seus projetos sejam votados.

Assim, as ofensivas do Legislativo, ainda que barradas eventualmente por sua inconstitucionalidade no Supremo, garantiriam seu sucesso. Tanto na mobilização que pode render votos e cadeiras na Câmara e no Senado em 2026, como na execução de emendas que vão garantir o fortalecimento de articulações políticas locais e a reeleição de muitos no ano que vem.

Resistência e consequências

No Senado, o texto deve ter dificuldades de tramitação. O presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Casa, senador Otto Alencar (PSD-BA), já anunciou sua posição contrária ao projeto. Em entrevista à GloboNews, afirmou que se trata de um “desrespeito ao voto popular, uma falta de cerimônia”. “A PEC não pode ser modificada no Senado e retornar para a Câmara. Ela tem que ser enterrada no Senado, acabar lá, destruí-la lá. Na minha opinião, pelo que conheço do Senado, acho difícil ter 49 votos para aprovar”, avaliou.

A mobilização contra o texto já começa a se esboçar nas redes sociais, mas ela precisa ter grande escala para que parlamentares refaçam o cálculo do quanto vale a pena apoiar esta proposta. Também para trazer junto de si a parcela da sociedade que não é alinhada nem à esquerda e nem ao bolsonarismo (e talvez até mesmo parte deste grupo, já que o tema se relaciona à questão moral, ao gosto do segmento).

Nesse contexto, se torna necessário para o governo e a esquerda tomarem a iniciativa de pautar na dita opinião pública os temas de interesse da sociedade que estão no Congresso Nacional, como a isenção do Imposto de Renda, o que realça a atuação de um Legislativo voltado para os seus próprios interesses, sem transbordar para a linha da antipolítica que, paradoxalmente, serve de combustível para os extremistas de direita.

Sobre interesses, aliás, uma última observação. Se para os parlamentares bolsonaristas e do Centrão o apoio a esse projeto pode ter um custo reduzido, ainda que contrariando parte do seu eleitorado, para os deputados de esquerda que endossaram essa proposta o desgaste é muito maior. Não só por afrontar seus eleitores como também porque, geralmente, contam com o chamado voto de opinião, que agrega pessoas que não estão necessariamente no seu campo ideológico. Em um cenário no qual o Legislativo busca atingir e amarrar o Executivo, as aspirações individuais não poderiam se sobrepor às pautas que importam.

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