Quem poderá salvar Veneza?

Meio século após inundação devastadora, cidade reduziu-se a parque temático — gentrificado e turistificado. Agora tudo se repete, agravado pelos cruzeiros. Escritora saúda resignação e fleuma dos habitantes. Não parecem suficientes

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Por Ricardo Cavanlcanti-Schiel, em tradução e diálogo com Eugenia Rico | Imagem: Stefano Mazzola/Awakening

No dia 14 de novembro, a cidade de Veneza sofreu aquela que é considerada sua segunda maior inundação já registrada. A primeira foi a de 1966, que marcou o ponto de partida de um crescente despovoamento da cidade.

A região do centro histórico, aquela que não compreende as ilhas do entorno nem a cidade satélite de Mestre, perdeu 70% da população local em 70 anos. Primeiro passou por um processo de “gentrificação”, em que o aumento dos preços foi expulsando os moradores menos ricos. Como Mônaco, Menton, Amalfi, Portofino e outro lugares da riviera mediterrânea, Veneza começou a se tornar endereço de verão dos super-ricos, que aí encontravam o plus de um certo esnobismo cultural (freneticamente retratado em um romance recente de Geoff Dyer ― Jeff em Veneza, morte em Varanasi); esnobismo que não é muito mais que uma caricatura largamente fútil do aristocratismo da Veneza de Thomas Mann.

Depois, a cidade passou por um processo de “turistificação” (que também acomete hoje cidades como Barcelona e Ibiza, e ao qual Brugges, na Bélgica, resiste ferozmente, sustentada por decididas políticas públicas); processo que, em honra da cidade, recebe também o nome de “síndrome de Veneza”. Nesse último caso, a cidade vai progressivamente deixando de funcionar para os seus habitantes (inclusive no que diz respeito à residência), perdendo equipamentos urbanos a eles destinados, para passar a funcionar como um parque temático, voltado quase exclusivamente para os turistas.

Se a projeção é de que em 2030 já não haja mais nenhum veneziano morando no centro de Veneza, o verão de 2017, por seu turno, pela intensidade chocante do fenômeno da turistificação, foi considerado o ponto de inflexão e de exasperação diante dele. Com quase 30 milhões de turistas anuais, uma queda-de-braço aparentemente infindável sobre permitir ou não que os grandes navios de cruzeiro cruzem o Canal de la Giudecca, arrastando uma enorme carga de poluição e outros transtornos hídricos, o sinal de alarme acabou soando em mídias internacionais tão distantes quanto o Guardian e o New York Times.

Dois anos depois, veio a grande acqua alta, a supermaré, que pôs sob suspeita o projeto faraônico do sistema de diques móveis de 78 comportas submersas, que começou a ser construído em 2003, com o custo inicial projetado de 5,4 bilhões de euros, e que agora mostra-se insuficiente diante do colapso climático. A partir das constatações do oceanógrafo Georg Umgiesser, pesquisador sênior do Consiglio Nazionale delle Ricerche (Conselho Nacional de Pesquisa, da Itália), a intensidade da demanda de contenção tornará os custos operacionais e de manutenção do projeto, que já estão em 100 milhões de euros anuais, simplesmente inviáveis.

O Projeto MOSE sugere, em italiano, a evocação do homônimo “Moisés”, aquele que foi salvo das águas (no mundo dos faraós), mas seu nome técnico, na verdade, é Modulo Sperimentale Elettromeccanico, o que não deixa de evocar a imagem tecnomágica da “supercapsula dell’escapellamento a destro”, reiteradamente mobilizada como blefe pelo personagem de Ugo Tognazzi na comédia “Meus caros amigos” (1975), de Mario Monicelli. O projeto, tocado a partir do segundo mandato de Silvio Berlusconi, já foi o responsável pela condenação a quatro anos de prisão por corrupção do seu ex-ministro Altero Matteoli.

A Lega Norte, de extrema-direita, de Berlusconi, ainda tem na região do Vêneto seu segundo maior curral eleitoral (só superado pela Lombardia). Coincidentemente, o seu Conselho Regional, o parlamento local, controlado pela Lega e sediado no Palazzo Ferro Fini, na margem esquerda do Canal Grande de Veneza, rechaçara as emendas orçamentárias que promoviam o financiamento de fontes de energia renovável, a substituição de combustíveis fósseis e outros dispositivos de amenização do colapso climático. Exatamente dois minutos depois dessa decisão, o prédio do Conselho foi tomado pelas águas.

O artigo que se segue, da escritora espanhola radicada em Veneza Eugenia Rico (ironicamente autora de um romance intitulado Só a água me espera), destaca o empenho individual dos venezianos em salvar sua cidade: o empenho agonístico dos indivíduos, alçado a um estatuto heroico que, no fim das contas, acaba obliterando o reconhecimento da falência do público. Um belo discurso, mas ainda assim mistificador, típico dos surtos recentes de moralismo individualista do capitalismo neoliberal. Mesmo com tal heroísmo, não se deve esquecer que são também esses indivíduos que elegem a Lega Norte para seu governo, e depois vão tomar um prosecco no Harry’s, onde, afinal de contas, foi inventado o bellini. (Ricardo Cavalcanti-Schiel)

Nunca amo tanto Veneza e seus habitantes como no momento em que a maré sobe e a cidade se inunda. E nunca amo tanto, então, os que construíram esta cidade e os que nela vivem.

Depois de vários dias de acqua alta [N. do T.: maré de outono particularmente pronunciada], os supermercados continuam fechados, sem comida. As pessoas trabalham dia e noite para consertar seus comércios, sem qualquer queixa, todos ao mesmo tempo. A maré recua e volta a subir uma e outra vez, e os habitantes se levantam de manhã, uma e outra vez, para ligar as bombas que bombeiam a água para fora das casas. Os residentes salvam Veneza todos os dias.

É importante lembrar disso, porque uma inundação como essa foi o começo da depopulação de Veneza. Os residentes patrulham a cidade com suas botinas de pesca de cano alto, que vão até a cintura, reparando fios elétricos e sufocando os incêndios produzidos por curto-circuitos.

Se ninguém morreu, se ninguém se afogou, é porque esses são os residentes de Veneza. Seus antepassados levantaram uma cidade sobre a névoa e a água, e eles agora levantam as toneladas de lixo e troncos caídos, uma vez e outra, incansáveis como a maré. É importante lembrar disso, porque em Veneza há um prefeito que proclama que todos devem abandonar a cidade e entregá-la aos hotéis e aos turistas. Sem residentes/resistentes, a cidade não tem esperança.

Mais de 500 estudantes universitários de menos de vinte anos se ofereceram voluntariamente para ajudar nas tarefas de remoção de detritos. De toda a região estão chegando encanadores, eletricistas e mecânicos voluntários para consertar as conexões de água e luz que deixaram a cidade às escuras.

A Lagoa [N. do T.: a parte do litoral parcialmente separada do Adriático por restingas, onde ficam as ilhas que compõem Veneza] acaba de sofrer a maior acqua alta desde 1966. A Basílica de São Marcos foi inundada pela segunda vez em mais de 1.200 anos.

E aqui está a cidade, de novo, de pé, tal como a maré.

Uma das mais belas livrarias do mundo, que ironicamente se chama Acqua Alta, perdeu quase todos os seus volumes, convertidos em uma massa de barro onde as palavras já não podem ser lidas, quando muito adivinhadas. Muitos manuscritos preciosos de Vivaldi se perderam no Conservatório. E os venezianos, a pesar de tudo, continuam cantando e lendo. Entre as rajadas de vento se escuta alguém tocar piano.

No mês passado eu fiquei assombrada quando me contaram que Thomas Mann lançava seus romances sob os bombardeios [N. do T.: seguramente um exagero (ou licença poética) da autora: na Primeira Guerra não houve bombardeios, e na Segunda, Thomas Mann, já francamente próximo à esquerda e até simpatizante do marxismo, exilou-se nos Estados Unidos, onde se alistou no exército americano como celebridade, para fins de propaganda. O que, sim, se tem como confirmado, é que o manuscrito de A montanha mágica, deixado por Mann na Alemanha, foi destruído em um bombardeio a Munique, em 1944]. Agora, acabo de lançar meu romance La morte bianca [A morte branca] com mais de cem pessoas reunidas em um palácio veneziano, enquanto as sirenes da Segunda Guerra Mundial anunciavam a acqua alta: um apito, mais de 110 centímetros; dois apitos, 120; três apitos, 130; mais de quatro apitos, o apocalipse. Soaram mais de quatro apitos, e todos os sinos de Veneza repicaram freneticamente.

Lá fora a tempestade e os helicópteros rugiam. Do lado de dentro, os venezianos sabiam que só se pode lutar contra o temporal com o som doce das taças de prosecco ao se chocarem. Carpe diem.

Carpe Venetia. A galhardia está em seguir dia após dia, como se nada tivesse acontecido. Invencíveis como o mar. E de onde vem a acqua alta? Não se deve à crise climática, mesmo que ela intensifique seus efeitos, mas à avareza e à corrupção dos seres humanos.

No século XV os engenheiros venezianos conceberam um sistema perfeito de respiração, no qual a água do mar entrava duas vezes por dia [na Lagoa], arrastando, ao sair, a sujeira, e voltava outras duas vezes, trazendo água limpa e vida. O equilíbrio era perfeito.

As inundações começaram mesmo nos anos 50, quando se escavou na Lagoa um canal profundo para que os navios petroleiros pudessem chegar até Marghera [N. do T.: a cidade industrial no continente, vizinha à cidade satélite Mestre]. Com esse canal aumenta muitíssimo o volume de água salgada na Lagoa. É dele que vêm as grandes acquas altas e a acqua grande de 1966, que dá início à depopulação de Veneza.

Também é importante lembrar disso, porque agora se fala em escavar um novo canal, para levar os grandes navios de cruzeiro a Marghera, o que vai aumentar ainda mais o volume de água do mar que entra na Lagoa, e o problema da acqua alta vai se agravar, tornando a vida em Veneza impossível.

Apesar disso, o prefeito e os políticos advogam por esse canal, que custaria milhões de euros, e que, na Itália, lembra o desastre do MOSE, o sistema multimilionário que deveria ter acabado com o problema da acqua alta, más que só serviu para enriquecer sucessivos governantes venezianos. Alguns deles estão agora na cadeia, pelo escândalo das propinas milionárias que embolsaram, em troca de um sistema que não ajudou a nada além de suas próprias contas na Suíça.

Enquanto os grandes barcos de cruzeiro agravam a erosão dos fundamentos de uma cidade que, literalmente, flutua sobre troncos fincados, a acqua alta mais perigosa não é mesmo outra que não essa da avareza e da corrupção. A maré que pode salvar, e que está salvando Veneza, são seus habitantes, que levantam barricadas contra o mar e contra a indiferença dos políticos.

Salvar Veneza é lutar contra os grandes navios de cruzeiro (mais de vinte por dia), que contaminam mais que todas as cidades europeias e que aprofundam esse canal que faz agora entrar água aos borbotões. Salvar Veneza é dizer a verdade. E a verdade é que uma cidade ou se afunda sem seus habitantes ou se salva por causa deles. Ajudar Veneza hoje, mais que nunca, é ajudar os venezianos.

[N. do T.: E daí?…]

Eugenia Rico, escritora espanhola, residente em Veneza. Tem traduzidos para o português os romances: A idade secreta (Rocco, Rio de Janeiro, e Casa das Letras, Lisboa), Os amantes tristes (Parsifal, Lisboa), No país das vacas sem olhos (Casa das Letras, Lisboa) e Só a água me espera (Casa das Letras, Lisboa).

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