Rosa Kliass, 90: A paisagista rebelde

Pioneira na arquitetura paisagística no Brasil, ela rejeitou intervenções autoritárias, imaginadas na frieza de gabinetes. Apostou no olhar generoso e coletivo sobre o espaço — e reconectou o social ao natural. Exposição virtual celebra sua trajetória

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Exposição virtual “Revelando paisagens brasileiras: Rosa Kliass”. Integra o ciclo de seminários online “Paisagens de aquém e além-mar. Ensaios sobre a paisagem: Portugal e Brasil”.

A exposição virtual “Revelando paisagens brasileiras: Rosa Kliass” traz o registro de mais de 30 anos do pensamento da mulher que impulsionou a arquitetura paisagística no Brasil. O olhar incomum de Rosa levou-a a criar um modelo de intervenção na paisagem urbana – não uma intervenção autoritária, imaginada nos gabinetes, mas pensada numa relação generosa com a identidade local, as paisagens humana, histórica e natural, clima, vegetação, topografia, características socioculturais.

Rosa Grena Kliass completa 90 anos em outubro. A paisagista rebelde, título que lhe foi atribuído por uma jornalista chilena na revista El Mercurio, no final dos anos 2000, é também a poeta da paisagem e a dama da arquitetura paisagística brasileira. Será sempre Rosinha em São Roque, a 62 quilômetros de São Paulo, onde nasceu. Uma mulher extraordinária, à frente do seu tempo, que transformou profunda e definitivamente a arquitetura paisagística no Brasil.

Kliass foi uma das três únicas mulheres da turma de 1955 na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Em 1956 casou-se com seu colega de faculdade Wlademir Kliass, falecido em 1985. Tiveram dois filhos, Paulo e Sônia. Pós-graduou-se em 1989, na FAU. Já nessa década, trabalhando com a Secretaria Municipal de Planejamento de São Paulo, levantou questões até então inexistentes, tais como a discussão participativa e a presença do geólogo no projeto.

Rosa Kliass fundou a cadeira de paisagismo do curso de Arquitetura e Urbanismo do Mackenzie e foi a primeira mulher a dirigir um escritório de arquitetura paisagística em São Paulo. Fundou e presidiu a Associação Brasileira de Arquitetos Paisagistas, a ABAP, e dá nome a um concurso nacional de arquitetura da paisagem. Teve sala especial na VI Bienal Internacional de Arquitetura, de 2005, e, em 2019, foi a primeira mulher premiada com o Colar de Ouro do Instituto de Arquitetos do Brasil. Foi consultora de órgãos estatais e autora de trabalhos publicados no país e no exterior. Reconhecida pela Universidade de Harvard, EUA, como uma das três arquitetas paisagistas mais importantes das Américas. Seu currículo não cabe aqui.

A descoberta de sua vocação foi obra de um encontro no último minuto e de um amor à primeira vista: “um grande mistério”, conta. “No último ano da Faculdade de Arquitetura, entrou uma cadeira que se chamava Paisagismo. Assim, baixou aqui o Roberto Coelho Cardoso. Um americano de família portuguesa, que veio de Berkeley e foi ser o nosso professor. Eu e Miranda [Magnoli] fomos alunas dele e imediatamente entendemos que aquilo era a nossa missão.”

Casa das Lavadeiras

A exposição apresenta 11 de seus projetos realizados no Norte e Nordeste brasileiros, em cinco cidades, entre 1976 e 2007 – um lado pouco conhecido de sua extensa produção. Com abundância de materiais de grande interesse – fotos, mapas, plantas, croquis, vídeos –, a mostra revela a transformação criada pelo trabalho de Rosa nas cidades de Belém do Pará, Salvador, São Luís, Macapá e Porto Velho, esta a única destas cidades que não implementou o projeto produzido por Rosa. São projetos que qualificaram a paisagem desses locais, recuperando espaços cívicos, de recreação e de convívio social.

O Parque da Lagoa do Abaeté, realizado em 1992 em Salvador da Bahia, é um deles. Conhecida nos quatro cantos do país na voz grave de Dorival Caymmi, a Lagoa do Abaeté está localizada na área dos últimos remanescentes de dunas litorâneas do município. Sua degradação ambiental levou a prefeitura do município a contratar o projeto. Uma fonte de poluição da Lagoa era que as mulheres da região, acompanhadas pelos filhos menores, lavavam em suas águas as roupas da família.

Chamada, Rosa propôs à prefeitura – peremptoriamente, como diz –, a inclusão social e o resgate cultural antropológico da Lagoa, com a criação da Casa das Lavadeiras. Escolheu o local com a melhor vista para a Lagoa e pensou num espaço de recreação para as crianças. “Além da gente estar preservando a lagoa escura e as areias brancas, nós também preservamos os aspectos culturais, do religioso, do mítico, do afro, e da cultura urbana, mesmo, que são as lavadeiras”, conta.

O Livro da Rosa

Um dos excelentes conteúdos extras oferecidos pela exposição é O livro da Rosa Vivência e Paisagens. Escrito em primeira pessoa, o livro traz as experiências pessoais e profissionais da arquiteta narradas por ela própria, em suas memórias, retratos de família, fotografias, desenhos, projetos, e pontuadas por depoimentos de amigos e familiares. É também um importante registro da imigração judaica ao interior de São Paulo – seu pai, José Alembick, chegou no Brasil ao final dos anos 1920, fugindo de uma Polônia antissemita, e fixou residência em São Roque, onde se casou com a judia russa Sônia, conhecida como Dona Shura. Hoje dá nome a uma das ruas centrais da cidade. Ali nasceu Rosa, em 15 de outubro de 1932. Seu artigo Meu São Roque, de março de 2008, nos conduz amorosamente pela cidade.

Criado a partir de um longo processo de entrevistas gravadas pelas organizadoras, Lucia Maria Sá Antunes Costa e Maria Cecília Barbieri Gorski, O livro da Rosa recebeu da Editora Romano Guerra uma edição cuidadosa e foi lançado no Instituto Tomie Ohtake em fevereiro de 2020, em São Paulo.

Ciça, como é conhecida Cecília, foi aluna de Rosa no Mackenzie e, a seu convite, trabalharam juntas entre 1977 e 1980. Seguiram amigas e parceiras pela vida afora. Ciça foi professora de paisagismo na PUC Campinas e presidente da ABAP. Casou-se com um sobrinho de Rosa, Michel Gorski. Lúcia Costa, coorganizadora do livro, arquiteta e paisagista carioca, é doutora em Paisagismo pela University College de Londres e uma das fundadoras do mestrado em Arquitetura Paisagística na UFRJ, onde também dá aulas.

“Nesse longo convívio que tive com ela, destaco sua atitude destemida, um interesse muito despido de preconceito que a faz desvendar tudo o que tem para ser compreendido e enfrentado no projeto. Essa sua atitude destemida abre portas”, observa Ciça.

“Uma de suas características é a generosidade, o fato de compartilhar conhecimento e dar crédito a quem coopera com ela. Tem uma maneira de trabalhar compartilhando, não só ideias, mas a própria casa, a mesa de jantar. Isso teve um impacto muito grande na minha vida”, lembra Lúcia.

Mulheres na Arquitetura

O nome das mulheres no campo da arquitetura e do paisagismo tem sofrido um apagamento na nossa história, como de resto em outras áreas profissionais. Na verdade, sua contribuição é notável desde meados do século passado, no Brasil e América Latina.

A presença de três delas, contudo, é inescapável quando se pensa em São Paulo: a arquiteta Lina Bo Bardi, a artista plástica Tomie Ohtake e a urbanista Rosa Kliass deixaram suas generosas marcas na cidade. Curiosamente, as três são imigrantes: Lina nascida em Roma, Tomie, em Quioto, e Rosa, pertencente à comunidade judaica. Expressam o valor da imigração na diversidade cultural de São Paulo.

São mulheres excepcionais, como afirma Laís Modelli, em artigo de 2017. Lina Bo Bardi criou o Museu de Arte de SP, o Masp, cartão-postal da cidade; seu conjunto arquitetônico do Sesc Pompeia foi eleito a sexta melhor construção do mundo pelo jornal britânico The Guardian. As esculturas gigantes e o Instituto de Tomie Ohtake marcam a grande participação dos imigrantes japoneses na formação e cultura da cidade. Entre as mais importantes obras de Rosa Kliass estão a Reurbanização do Vale do Anhangabaú e o Parque da Juventude, que transformou num dos principais parques públicos paulistanos a área que abrigava o Complexo Penitenciário do Carandiru.

O Ciclo de Seminários online “Paisagens de aquém e além-mar. Ensaios sobre a paisagem: Portugal e Brasil” contou com a organização de várias instituições de ensino portuguesas e brasileiras, com coordenação do Observatório de Paisagem da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto e Universidade Federal de Goiás, com apoio do Instituto Camões, UIA (27º Congresso Mundial dos Arquitectos), Câmara Municipal de Lisboa e APAP (Associação Portuguesa dos Arquitetos Paisagistas) e ABAP (Associação Brasileira de Arquitetos Paisagistas).

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