Por uma revolução no Direito à Cidade

Enorme atraso urbanístico do Brasil exige resposta inovadora. Como na Espanha pós-franquista, é preciso criar equipamentos múltiplos, em especial nas periferias. Somarão cultura, esporte e fruição da vida. Promoverão intensa participação popular

Imagem: Keila Vieira
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Por Ion de Andrade

Um dos maiores gargalos no processo de desenvolvimento social do Brasil é a não oferta crônica de equipamentos coletivos capazes de responder às necessidades de toda sorte situadas fora da esfera da Saúde e da Educação, áreas em que tal oferta ocorre tão somente em decorrência de conquistas sociais que as tornaram obrigatórias por lei.

A superação desse processo de exclusão social, que se opera por meio do não atendimento às necessidades urbanas, foi objeto na França dos estudos de Henri Lefèbvre, que não somente enunciou o princípio do Direito à Cidade, mas elaborou também os elementos da Revolução Urbana. As mudanças relacionadas a essa problemática se iniciaram na Europa a partir do pós-guerra, por influência de um ideário de esquerda então politicamente fortalecido em decorrência da resistência ao nazifascismo.

A Espanha, que viveu a guerra com um regime fascista, o franquismo, não evoluiu da mesma forma e acumulou nessa área atrasos colossais em relação ao restante da Europa Ocidental. A estratégia espanhola de atualização da oferta desses serviços ao povo se deu através dos “Centros Cívicos” que reagrupam equipamentos coletivos os mais diversos, indo desde a piscina pública, às bibliotecas e passando pelos auditórios, espaços de lazer e culturais num ambiente institucional que poderia ser assimilado a um Campus da Cidadania.

Na Colômbia ferida por uma história ainda mais semelhante à nossa, a estratégia de superação da violência em Medellín e também em Bogotá foi precisamente a oferta maciça de equipamentos coletivos de qualidade, sobretudo às populações mais vulneráveis (as maiorias), o que obviamente produziu resultados extraordinários e muito além dos esperados.

A experiência espanhola parece mais semelhante ao que é necessário ao Brasil, pois se constitui de equipamentos menos monumentais do que os de Medellín e que foram dimensionados numa rede nacional, com atributos de territorialidade e de gestão bem definidos.

As redes de equipamentos coletivos que propomos são essencialmente intervenções urbanísticas que iniciam um novo ciclo de políticas públicas que vão além da estrutura física para a eficiência do “funcionamento orgânico” da cidade, o que pode beneficiar o povo, mas age sobretudo em benefício do capital, passando a focar o processo de emancipação e cidadania do próprio povo como alvo explicitamente principal. Elas não se contrapõem ou visam substituir essas iniciativas tradicionais das políticas urbanas que podem ter outro desenho, inclusive não territorial, de abordagem, o que se faz através dos recortes que enxergam os pequenos, médios e grandes municípios e as suas regiões metropolitanas.

A sua implantação, como no SUS, deve seguir um dimensionamento populacional/territorial de financiamento dos dispositivos ou equipamentos coletivos e políticas públicas para que a sua distribuição e acesso sejam universais, o que é o âmago da proposta da Rede de Inclusão e Direito à Cidade (RIDC).

A rede SUS se faz representar sempre por imagens integradas territorialmente, o que ajuda a produzir sentido de conjunto e de sistema.

Vale destacar que o financiamento das estruturas da Rede SUS, com raras e honrosas exceções, como a da rede de Policlínicas do Ceará, é essencialmente federal. Esse financiamento é dimensionado em função de parâmetros populacionais e, perante eles, o acesso figurou, e deve voltar a figurar, como uma disponibilidade dada desde que estejam cumpridos os requisitos de sua obtenção, o que envolve também a adesão e acordo dos municípios que estão formalmente na área adscrita.

As intervenções urbanísticas a iniciar um novo ciclo de políticas públicas ainda não galgaram o mesmo grau de consenso e de materialidade. Porém persistem no imaginário coletivo do povo como necessidades cronicamente não atendidas.

A Rede de Inclusão e Direito à Cidade é a tentativa de elaboração da síntese universal do diálogo de quase 40 anos entre uma instituição local na cidade de Natal (RN) (o Centro Sócio-Pastoral Nossa Senhora da Conceição) e a comunidade de um dos bairros mais pobres da periferia de Natal (Mãe Luiza). O seu documento base ilustra as ideias centrais ali contidas com algumas das seguintes imagens, igualmente territoriais, de uma lista de necessidades que emergiram de Seminários Populares organizados no bairro ao longo desse período e é um fruto de longa maturação.

A equipe que sintetizou os princípios da RIDC também elaborou, no seu exercício de viabilidade, os custos dessa política perante o orçamento das capitais, caso viesse a ser adotada como Política Pública, com base na oferta de um equipamento coletivo com 750 m² por ano e por comunidade, considerando o alto padrão construtivo comercial, o que atualmente poderia alcançar algo como R$1,75 milhão, alto padrão esse que pode variar um pouco conforme a região.

Os valores encontrados foram normalmente inferiores a 1% dos orçamentos dessas cidades e de 0,2% do orçamento da União, considerando, no exercício, a estratégia de dimensionamento dos investimentos pelo agrupamento do terço mais pobre de suas populações em unidades populacionais de 20 mil habitantes, como o faz com outros parâmetros populacionais a Saúde Pública para os seus dispositivos.

Seu documento original enunciou também uma estimativa de custos em Recursos Humanos e Custeio que demonstram que a nova Rede é sustentável, sobretudo enquanto projeto interfederativo, sendo o seu principal obstáculo a nossa cultura política excludente que não enxerga urgência ou prioridade na implementação dos referidos equipamentos coletivos e políticas de novo ciclo nas comunidades pobres.

O documento original da RIDC elencou também uma lista exaustiva de necessidades cuja solução exige a implantação de novas políticas públicas e equipamentos coletivos específicos e costumeiramente ausentes:

Equipamentos sociais e urbanos

Edifícios de cultura e lazer, tais como:

(a) bibliotecas comunitárias (localizadas em prédio próprio nos bairros, em escolas ou em presídios);

(b) centro esportivo;

(c) piscinas públicas, pistas de skate e outros equipamentos desportivos;

(d) centros culturais, escolas de música, dança ou artes plásticas;

(e) salões de eventos familiares, com cozinha comunitária;

(f) espaços para atividades associativas devidamente equipados;

(g) auditórios comunitários para a apresentação de peças e eventos escolares ou de entidades locais, espetáculos culturais, teatro ou cinema;

(h) museu de memória da comunidade;

(i) brinquedotecas comunitárias;

(j) espaços livres públicos, como anfiteatros; alamedas pedestres; conchas acústicas; áreas de lazer; parques infantis; mirantes; calçadões e espaços abertos multifuncionais,

(l) equipamentos de utilidade pública (ou para geração de renda) como pias públicas e lavanderias para os munícipes, incluindo oferta de banheiros públicos para populações em situação de rua;

(m) centros de velório;

(n) hortas comunitárias; cozinhas comunitárias; ateliês para artesanato e artes plásticas; ateliês para costura;

(o) apoio para a aquisição e manutenção dos instrumentos de trabalho dos trabalhadores informais;

(p) mercados públicos (agroecologia, pesca, agricultura familiar, artesanato e outros produtos locais);

(q) unidades de apoio a feiras livres; e

(r) outros, por sugestão da comunidade alvo ou em decorrência de outra prioridade identificada.

Equipamentos e ações de interesse ambiental

(a) parques em áreas de interesse ambiental;

(b) praças e espaços com potencial cênico-paisagístico;

(c) arborização pública;

(d) paisagismo urbano;

(e) despoluição de corpos d’água;

(f) ecoposto de educação ambiental;

(g) museu ecológico.

Infraestrutura pública

(a) dispositivos de drenagem urbana sustentável:

(i) pavimentos permeáveis;

(ii) canais vegetados abertos;

(iii) reservatórios de acumulação, lagoas de infi ltração, faixas vegetadas e jardins de chuva;

(b) escadarias públicas;

(c) pavimentação de vias de pedestres e veículos;

(d) contenção de encostas (taludes, arrimos etc.);

(e) saneamento básico;

(f) iluminação pública;

(g) intervenções em habitações precárias, insalubres ou em situação de risco (ATHIS).

Considerações políticas

A consolidação da democracia deve ser feita com base na ampliação da cidadania em número e qualidade o que pressupõe também, como recurso incontornável dessa construção cidadã, a oferta às maiorias da experiência de um Projeto de Sociedade que é o nosso, o que por si só é politizador na medida em que o povo perceba que esse projeto é, antes de tudo, o seu.

Noutro momento histórico, num Brasil incomparavelmente mais pobre, a oferta da experiência do projeto progressista de sociedade no Nordeste – através de programas como o Bolsa Família, Luz para Todos, Cisternas no semiárido, apoios à agricultura familiar, etc. – produziu uma lealdade de longo prazo dos nordestinos em relação ao governo Lula, o que revela também a politização como ela pode se dar no meio do povo, que se politiza pela inteligibilidade de um projeto que responde a suas necessidades, reconhecendo-o, portanto, como o seu projeto.

Também sobre esse prisma, essas iniciativas são estratégicas.

Referências

  1. A Rede de Inclusão e Direito à Cidade (disponível em (https://issuu.com/caddiversosm/docs/rede_de_inclus_o_e_direito___cidade_03)
  2. A Carta de Natal dos movimentos sociais (disponível em https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/desenvolvimento-local-e-direito-cidade-carta-de-natal/)
  3. A potência sufocada das periferias brasileiras (disponível em (https://outraspalavras.net/cidadesemtranse/a-potencia-sufocada-das-periferias-brasileiras/)
  4. Sobre a necessidade de construir a Cidade e a Democracia (disponível em https://www.cartacapital.com.br/blogs/br-cidades/sobre-a-necessidade-de-construir-a-cidade-e-a-democracia/)
  5. A inacreditável situação da Chácara Santa Luzia no DF e o que isso significa (disponível em https://jornalggn.com.br/artigos/o-abandono-da-chacara-santa-luzia/)
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