Arquitetura, a dura poesia concreta das metrópoles

Toda construção expressa um conflito e uma forma de resolvê-lo. Para criar cidades menos alienadas é preciso um outro olhar sobre os espaços públicos

170401-SP

Na imagem, São Paulo. “A Arquitetura imprime no meio físico um discurso, e levanta o questionamento a respeito de como, e com qual intenção, estão sendo contornados nossos espaços”

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Toda construção expressa um conflito e uma forma – às vezes oculta – de resolvê-lo. Para criar cidades menos alienadas é preciso um outro olhar sobre os espaços públicos

Por Mariany Araújo

As grandes cidades se veem na tentativa de equilibrar um complexo jogo formado por tensões de naturezas bastante antagônicas: interesses coletivos e individuais, públicos, privados, históricos, vanguardistas, filosóficos e morais que, de tão constantes e aparentemente indissolúveis, se tornaram quase premissas para a convivência – ou ao menos a tentativa de convivência – na metrópole. Este jogo normalmente exige uma escolha individual, uma tomada de posição que não vem acompanhada da clareza necessária sobre qual caminho leva, de fato, à construção de um lugar melhor para todos.

Diante da dúvida, a virtualidade dos encontros parece um escape tangencial: o homem moderno acreditou que a ciência e a tecnologia o libertariam da dependência direta dos lugares pelas vivências virtuais. Distâncias diminuídas, noção de tempo e espaço completamente alterada, neste lugar meio não-lugar se chega tão rápido quanto se parte, e sem necessariamente levar a cabo o motivo que te fez ir até lá. Mas, quando até o virtual tornou-se objeto concreto de análise, o caos ambiental é que ironicamente devolveu à questão espacial sua devida relevância. Não houve escapatória: lidar com os lugares que ocupamos e seus limites se coloca também como mais uma condição inerente da vida em sociedade.

O espaço público é palco de múltiplas manifestações, numa espécie de descompressão coletiva do estresse cotidiano; onde da rua se assiste ao surgimento de religiões, dietas, festas, obras de arte, apropriações e reapropriações, saraus e manifestos políticos. A grande beleza do espaço público se revela em, justamente, ser público; de todos, e por isso conformado por limites um tanto, digamos, enevoados. O virtual e o físico encontram-se e se permeiam, confundem-se. Torna-se difícil ter certeza de onde estamos, quais são os contornos, onde eles nos cercam, onde nos permitem e onde nos proíbem. O limite se instala entre realidades, não pertencendo a nenhuma delas mas, ao mesmo tempo, pertencendo às duas; é um jogo duplo que marca a ruptura mas também a união, inícios e finais, portas e transições, como duas faces que olham em sentidos opostos. E é muito importante não perder a dimensão de que neste jogo existem sempre os dois lados separados-unidos pela fronteira, e que por mais confortável que seja o lado de dentro – onde estamos -, também tem o lado de fora, ou seja, o outro, que se colocando a uma distância razoável de nós, se faz visível. É imprescindível para a cidadania enxergar esse outro, mas para isso é preciso sair da centralidade de si mesmo, é necessário olhar em volta.

Em meio a tanto vizinhos, vêm se criando os chamados “condomínios virtuais”, com muros quase invisíveis. Bem, os muros na arquitetura nada mais são do que limites virtuais trazidos à materialidade e que impõem a ruptura a um espaço antes contínuo; tal limite sempre é pensado antes de ser construído, e justamente por ser princípio de qualquer construção é que o pensamento rígido e intolerante pode segregar tanto e até mais do que qualquer fronteira física.

De qualquer maneira, a arquitetura exerce um papel social essencial enquanto conformadora dos limites concretos e simbólicos que tratamos aqui: ela imprime no meio físico um discurso, e levanta o questionamento a respeito de como, e com qual intenção, estão sendo contornados nossos espaços. Praças, condomínios, escolas e cortiços: nenhum deles existe sem estar inserido em um amplo contexto que abarca todos nós, e como a existência de um fato arquitetônico não confere automaticamente uma licença ética para que ele exista, é preciso perceber o alcance destes projetos para além de suas paredes; pois este é o alcance do espaço na arquitetura.

Construir é inevitável, e construir é sempre uma decisão política. Qualquer obra, mais que decisão técnica, é sempre política, e há de se questionar a respeito desta intervenção do espaço que, tantas vezes, é feita maneira violenta e deixa cicatrizes não só no tecido urbano como na vida e história das pessoas que vivenciam esse lugar, que construíram suas vidas tendo este cenário, e neles desenvolveram uma relação de troca, de identidade e conformação mútua.

A busca de um outro olhar sobre nossos espaços construídos pode criar uma cidade melhor, mais inclusiva e civilizada; que nos proporcione a humanização das relações, que reverta esse cenário urbano de hoje, tão cheio de coisas e vazio de significados, e que, por fim, nos ofereça também o acolhedor conforto da estabilidade do lugar – a tão helênica stabilitas loci – na era do efêmero e da mudança.

 

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