Harvey, 90: Cidades entre o capital e a rebelião
Geógrafo marxista que transformou os estudos urbanos continua a provocar. Sempre ao lado dos ativistas, mostrou que a cidade tornou-se – mais que a fábrica – o centro das disputas com o capital e palco das rebeldias de nossos tempos
Publicado 02/12/2025 às 16:58 - Atualizado 02/12/2025 às 17:01

Por Desiree Fields, no Verso Books | Tradução: Rôney Rodrigues
Este texto integra uma série em homenagem ao geógrafo David Harvey, que completa 90 anos. Livro a livro do autor, esta homenagem mostra a evolução de suas teorias e como Harvey contribui para desvendarmos as formas como o capitalismo molda cidades e territórios para acumular lucro, criando crises e desigualdades.
Cidades Rebeldes é um livro que se baseia no longo compromisso de David Harvey em teorizar o urbano como um locus central da acumulação de capital e de suas inevitáveis contradições. Esse compromisso remonta a Social Justice and the City, o texto de 1973 que anunciou a guinada radical de Harvey – e da geografia – para o pensamento marxista, e continua ao longo das décadas seguintes com obras como The Urbanization of Capital, The Urban Experience e Paris, Capital of Modernity. Esses textos anteriores oferecem insights poderosos sobre as dinâmicas urbanas do capitalismo, fornecendo quadros analíticos posteriormente adotados por inúmeros estudiosos do urbanismo. A contribuição seminal de Harvey aqui é a fixação espacial, um conceito que nos ajuda a entender como os consideráveis custos irrecuperáveis do processo urbano, tão críticos para a produção capitalista, oferecem uma válvula de escape atraente para o capital superacumulado, ajudando assim a adiar ou deslocar (‘fixar’) a crise capitalista. Mas, assim como um vício só é temporariamente curado por uma dose, a superacumulação só pode ser contida provisoriamente por um ajuste espacial urbano. Ensino regularmente essas ideias aos meus alunos de geografia econômica, ideias que Harvey investiga há mais de cinco décadas, desde seu artigo publicado em de 1975 na Antipode, A Geografia da Acumulação Capitalista. Onde Cidades Rebeldes intervém é na análise de Harvey sobre o que torna os levantes urbanos anticapitalistas.
Em uma série de capítulos amplamente adaptados de trabalhos publicados anteriormente, Harvey afirma que a centralidade das cidades para a acumulação de capital e a reprodução do capitalismo torna o próprio processo urbano um locus de luta de classes e um motor de rebeliões. Publicado na esteira do Occupy Wall Street e de uma onda global de levantes urbanos na primeira década do século XXI, Cidades Rebeldes também mostra Harvey se reconectando com a obra de Henri Lefebvre, cuja tese da “revolução urbana” fundamenta seu artigo de 1974 na Regional Studies, “Aluguel de Monopólio de Classe, Capital Financeiro e a Revolução Urbana”. Em Cidades Rebeldes, é a noção de Lefebvre do direito à cidade que inspira Harvey. Enquanto em 1974 Harvey considerou “surpreendente” a proposição de Lefebvre de que a urbanização estava suplantando a produção como a principal fonte de mais-valia global (Harvey, 1974, p. 239), em 2012 ele parece ter se reconciliado com essa ideia e recorre ao direito à cidade para fundamentar seu pensamento sobre como os movimentos urbanos de esquerda confrontam suas realidades materiais.
Harvey trabalhou em Cidades Rebeldes na esteira da crise financeira de 2008 e durante a ocupação de 2011 do Zuccotti Park, no baixo Manhattan, pelo movimento Occupy Wall Street. Naquela época, eu estava realizando o trabalho de campo para minha tese, que examinava uma onda de investimentos predatórios de private equity (que passou a ser conhecida como predatory equity) no estoque de habitações de aluguel regulado de Nova York. Investidores que pagaram preços exorbitantemente inflados por carteiras de imóveis durante o boom de gentrificação da cidade em meados dos anos 2000 viram sua estratégia de revender os imóveis ou reformá-los até que as proteções de aluguel não mais se aplicassem tornar-se inviável quando os mercados de crédito congelaram durante a crise financeira. Em um paralelo marcante com o fenômeno do negative equity que então afetava proprietários em todo o país, muitos proprietários de private equity ficaram com dívidas hipotecárias que superavam em muito o valor (e a receita de aluguel) de seus imóveis. Sua resposta ao estarem com patrimônio líquido negativo (e, em vários casos, em processo de execução hipotecária) foi efetivamente abandonar os edifícios que haviam comprado. Os inquilinos arcaram com os custos desses investimentos financeiramente insustentáveis, vivendo em condições cada vez mais deterioradas e inabitáveis. Nos escombros dos esforços dos investidores para transformar a habitação com aluguéis controlados em um novo veículo para a acumulação de capital, os inquilinos lutavam para manter as atividades da vida cotidiana e se sentiam impotentes e despojados de sua dignidade.
No outono de 2011, frequentemente me via indo e voltando de metrô entre o local do Occupy Wall Street e meus locais de trabalho de campo no noroeste do Bronx e no centro do Brooklyn. Apesar de viverem a apenas alguns quilômetros do Zuccotti Park, poucos dos inquilinos da classe trabalhadora participantes do meu projeto mencionaram, muito menos participaram da ocupação. No entanto, eles não eram complacentes com o papel destrutivo que o capital financeiro havia desempenhado no processo de tentar absorver lucrativamente o excedente. Os inquilinos diagnosticaram com precisão a dinâmica extrativista de investidores oportunistas que buscavam lucrar com suas comunidades sem melhorar o estoque habitacional. Eles também insistiam que lutariam coletivamente para permanecer em suas casas. Em suma, os ocupantes do Zuccotti Park e os inquilinos afetados pela predatory equity podem não ter se cruzado fisicamente, mas ambos os grupos estavam desafiando a guerra de classes travada pelo que Harvey chama de “o Partido de Wall Street”. O que ele faz de forma tão eficaz em Cidades Rebeldes é demonstrar como tais movimentos estão enraizados na exploração no âmbito da reprodução social via mercados imobiliários urbanos (por exemplo, as casas das pessoas se tornando mera munição para uma estratégia de investimento altamente alavancada), e não no ponto de produção.
No capítulo “As raízes urbanas das crises capitalistas”, Harvey insiste na centralidade do urbano para a teorização marxista, observando que tanto a “economia burguesa” quanto o “marxismo em geral” (p. 35) marginalizam os urbanistas, apesar da relação bem documentada entre os booms imobiliários e as crises capitalistas. A teoria burguesa é facilmente descartada por ser cega à conexão entre o desenvolvimento urbano e as crises macroeconômicas. Mas e o pensamento marxista? Aqui, Harvey se volta para o status do sistema de crédito na obra de Marx, destacando como o foco de Marx na “generalidade da produção de mais-valia” (p. 36) reconheceu, mas não integrou adequadamente o sistema de crédito (e, portanto, a urbanização e a produção do ambiente construído) em suas leis gerais do movimento do capital, limitando assim nossa capacidade de usar esse aparato teórico para explicar a relação entre desenvolvimento urbano e crise capitalista. O problema do crédito dentro do capitalismo é espinhoso, pois distinguir entre o crédito “necessário ao funcionamento do capital”, “necessariamente fictício” e “puro excesso” (p. 39) é difícil e exige uma compreensão clara do capital fictício e de seu papel nos mercados de terra e propriedade.
O capital fictício é real, mas obscurece algo das relações sociais subjacentes, a saber, que na maioria dos casos o capital portador de juros emprestado ou alavancado para comprar ou construir imóveis não produz valor — exceto quando o imóvel se torna capital produtivo fixo, tornando o crédito de fato necessário ao funcionamento do capital.[1] Caso contrário, os fluxos de renda e os pagamentos de juros gerados pelo valor criado na produção são necessariamente fictícios, e sua integração em “canais fictícios” possibilita toda uma série de movimentos especulativos puramente excessivos com base no valor subjacente (flutuante) dos ativos. A circulação do capital fictício é ao mesmo tempo vital para sustentar o capitalismo e uma alavanca-chave em seus ciclos periódicos de expansão e recessão.
Esse processo geral ajuda a explicar a proeminente ascensão dos títulos lastreados em hipotecas, que podem então ser incorporados a obrigações de dívida colateralizada e ter seu risco coberto por swaps de inadimplência de crédito, que por sua vez podem ser incorporados a obrigações de dívida colateralizada sintéticas. E como vimos na crise de 2008, a demanda por esses instrumentos financeiros derivativos pode passar a impulsionar a oferta de crédito para incorporadoras e compradores de imóveis e, assim, os padrões e qualidades da produção de habitação e espaço urbano de forma mais ampla. Nos EUA, uma forma como isso se manifestou, à medida que a bolha imobiliária se inflava cada vez mais, foi um rápido crescimento na oferta de novas casas, acompanhado por um declínio em sua qualidade devido aos construtores que cortavam custos. Em minha pesquisa sobre predatory equity na cidade de Nova York, o capital fictício fluía para investimentos de natureza cada vez mais oportunista, visando edifícios degradados nos bairros externos em um mercado cada vez mais aquecido, onde as oportunidades de circular capital através do ambiente construído estavam próximas do ponto de saturação. Em ambos os casos, as consequências da posterior crise foram profundamente marcadas por classe e raça e criaram novas condições para a acumulação de capital, já que os investidores compravam casas unifamiliares em execução hipotecária para alugar (e desenvolviam novos instrumentos financeiros lastreados em renda de aluguel) e especulavam com dívidas multifamiliares em dificuldades.
Se a urbanização é central para a sobrevivência e a reprodução do capitalismo, e as contradições e tendências de crise nesse processo regularmente desapossam “os pobres, os vulneráveis e os já desfavorecidos” (p. 56), por que não veríamos os movimentos sociais resultantes em termos de luta anticapitalista? Essa questão pode parecer forçada: quando inquilinos insistem em seu direito de permanecer em seus lares diante do que diagnosticaram como a dinâmica extrativista do capital financeiro, como poderíamos ver isso como outra coisa senão anticapitalista? Mas, como observa Harvey, essa visão exige uma interpretação mais flexível do trabalho do que tem sido frequentemente o caso tanto entre pensadores marxistas quanto nos movimentos da classe trabalhadora. Ambos tenderam a priorizar o trabalho produtivo (em grande parte industrial) em suas análises da revolução contra a dominação de classe. Nessa visão, a luta anticapitalista é propriamente “sobre a abolição dessa relação de classe entre trabalho e capital na produção que permite a produção e a apropriação do trabalho excedente pelo capital” (p. 121).
O que é obscurecido em tal relato é, é claro, a exploração secundária que define a experiência da vida cotidiana. Ou seja, “a perpetuação do poder de classe é organizada em torno do viver, bem como do trabalhar” (p. 129). A observação de Harvey aqui destaca como o capital produtivo, o capital mercadoria e o capital monetário dependem uns dos outros para sua própria sobrevivência e existência. Levar essa realidade a sério requer reconhecer que os descontentamentos no ponto da reprodução social são tão propriamente anticapitalistas quanto os descontentamentos no ponto de produção. Tal posição não seria novidade para teóricas feministas ou estudiosos do capitalismo racial, que há muito destacam como as hierarquias de diferença servem aos imperativos do capital através e entre a produção e a reprodução social. Outra forma de expressar essa ideia é sugerir que a teoria marxista é sempre mais flexível e seus retornos analíticos são maiores quando atenta para como as lógicas da diferença animam os movimentos do capital. Enquanto celebramos o aniversário de David, agradeçamos a ele por seu projeto vitalício de explorar os limites e as possibilidades da análise geográfica marxista, um projeto que sempre esteve atento à sua própria incompletude.
Nota:
[1] É claro que a produção de imóveis gera empregos na construção civil e em áreas auxiliares e estimula a demanda por produtos e serviços, contribuindo de formas reais para a atividade econômica.
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