E se o SUS fosse modelo para o Direito à Cidade?

Uma proposta arrojada para políticas urbanas no Brasil, a partir de três pilares do sistema de saúde. A urbe seria entendida como extensão real da cidadania. Haveria políticas específicas para os territórios e populações vulneráveis – além de articulação intersetorial

Movimento dos Trabalhadores Sem Teto. (Foto: Pedro Biava)
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O Sistema Único de Saúde (SUS), instituído pela Constituição Federal de 1988 [1], representa uma das mais significativas conquistas sociais do Brasil, fundamentado em três princípios doutrinários que revolucionaram o acesso à saúde: a universalidade, a equidade e a integralidade.

Esses pilares não apenas orientam a política de saúde, mas oferecem um robusto arcabouço ético e metodológico para se pensar outras políticas públicas de caráter social. Mesmo assim, a inspiração que o SUS pode permitir a outras políticas públicas se preenche de dificuldades concretas.

O SUS possui fontes de financiamento constitucionalmente garantidas e uma estrutura de governança tripartite, enquanto a política urbana é majoritariamente de responsabilidade municipal, com enormes disparidades de capacidade técnica e financeira.

Mesmo assim, diante do desafio histórico de construir cidades mais justas, inclusivas e democráticas, a compreensão e o uso desses conceitos no campo do urbanismo emergem como uma oportunidade oferecida por um sistema que poderia cumprir o papel de um irmão mais velho, posto que a Saúde Pública e o Urbanismo são áreas irmãs.

O presente artigo se propõe a refletir, de forma introdutória, sem desejar fazer analogias automáticas e rasas, sobre os conceitos de Universalidade de Acesso ao Direito à Cidade, à Equidade Urbana e à Integralidade Urbana, dialogando diretamente com os princípios do SUS e com o acervo de conhecimentos sobre direito à cidade, planejamento territorial e políticas urbanas.

O objetivo é contribuir para a consolidação de um novo paradigma para o urbanismo brasileiro, no qual a cidade não seja vista como um produto ou uma mercadoria, mas como espaço estratégico de realização plena da cidadania, conjugando poderosamente o conceito de direito à cidade de Henri Lefebvre com o do “Espaço do Cidadão” do geógrafo Milton Santos, que nele via o cenário histórico no qual a cidadania se completaria.

1. Universalidade de Acesso ao Direito à Cidade

No âmbito do SUS, o princípio da universalidade estabelece que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado, garantindo o acesso de qualquer cidadão aos serviços de saúde em todos os níveis de atenção, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie. Trata-se do reconhecimento de que a condição de cidadania, por si só, confere direito à saúde.

Dificultador maior, a legislação não assegura no urbanismo o princípio da Universalidade de Acesso ao Direito à Cidade como o SUS estabelece para a Saúde, o que se configura como um horizonte legal ainda por ser conquistado.

De fato, o direito à cidade deveria ser interpretado como o direito de cada indivíduo, independentemente de sua condição socioeconômica, raça, gênero ou local de moradia, de acessar, utilizar e se apropriar de todas as dimensões que constituem a vida urbana.

Conforme preconiza o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001), isso se materializa na garantia do “direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho, à cultura e ao lazer, para as presentes e futuras gerações” [2], dentre outros direitos que podem ainda ser agregados ao escopo pela dinâmica da exclusão social sempre presente no Brasil, como os que são cotidianamente negados às populações em situação de rua ou à pessoa idosa em situação de risco e vulnerabilidade.

Essa universalidade urbana se opõe diretamente à lógica da cidade-mercadoria, onde o acesso aos bens e serviços é mediado pelo poder de compra, lógica, portanto, dinheirista, não territorial e extra-territorial que torna estratégica a mobilidade fácil dos privilegiados para o acesso a um direito à cidade que eles consideram fundamental, embora minimizem a necessidade humana dos mais pobres a eles e a sabotem como podem, seja pela oposição feroz, seja pelo silêncio.

Essa universalidade deve buscar concretizar o que Milton Santos define como o “espaço do cidadão”, um espaço de existência e coexistência, em contraposição ao espaço alienante do consumo, no qual o processo de emancipação da nossa cidadania incompleta terá a oportunidade de ser completado [3].

Enquanto o consumidor acessa apenas fragmentos da cidade que pode pagar, o cidadão tem o direito de fruir da cidade em sua totalidade, incluindo aí a cidade futura que ainda está por ser construída. A Nova Agenda Urbana (NUA), adotada na Habitat III, reforça essa visão ao propor uma visão compartilhada de “cidades e assentamentos humanos para todos”, onde todas as pessoas tenham direitos e acesso iguais aos benefícios e oportunidades que a elas podem oferecer [4].

A proposta da Rede de Inclusão e Direito à Cidade (RIDC), por grupo que coordenei e que sistematizou o itinerário de 30 anos de uma comunidade de Natal, oferece um caminho prático para a efetivação desse princípio, ao sugerir a distribuição capilar e territorial de equipamentos coletivos (cultura, esporte, lazer) nas periferias, garantindo que os “serviços urbanos” essenciais à dignidade e ao desenvolvimento humano não sejam um privilégio das áreas centrais e consolidadas [5].

Universalidade de Acesso à Cidade: É o princípio que garante a todos os cidadãos o direito de acessar e fruir de forma plena e irrestrita o conjunto de infraestruturas, equipamentos, serviços públicos, espaços livres, oportunidades de trabalho e lazer que a cidade oferece, efetivando o direito à cidade como uma extensão fundamental dos direitos de cidadania com o papel também de continuar a construir e completar a sua emancipação…

2. Equidade Urbana

O princípio da equidade no SUS reconhece que, embora todos tenham direito à saúde, as necessidades não são as mesmas para todos. Portanto, ele orienta a política de saúde a tratar os desiguais de forma desigual, na medida de suas desigualdades, investindo mais onde a carência é maior. É um princípio de justiça social que visa reduzir as disparidades e garantir que todos tenham a mesma oportunidade de ter saúde.

Recentemente, a Prefeitura de São Paulo divulgou um plano de investimento voltado para melhorias para o centro da cidade, que prevê recursos de 6,3 bilhões de reais. Esses recursos estão voltados para melhorias de mobilidade (como o prolongamento da Avenida Marquês de São Vicente e o potencial fim do Minhocão), habitação, áreas verdes e projetos de parceria público-privada (PPP) até 2028.

Antes da crítica, podemos reconhecer a validade em si do projeto, que na sua análise intrínseca poderia até merecer elogios.

O exercício mais interessante que os urbanistas poderiam propor a São Paulo é a análise da relativização do projeto municipal, ante o que os recursos deixarão de atender e responder em áreas muito mais problemáticas do que o centro da cidade e que não desfrutam (e em definitivo nunca desfrutarão) da visibilidade do centro que é a vitrine da capital.

Exercício de cidadania, essa reflexão que poderia ser assumida também pelo campo progressista e poderia levar às comunidades de São Paulo o debate sobre o que é que lhes é prioritário e não será atendido pela filosofia do atendimento em primeiro lugar ao centro…

Ora o direito à cidade é precisamente a garantia às periferias das vantagens do centro.

O bairro de Mãe Luiza em Natal, para ilustrar o que na realidade está subjacente a essa discussão de São Paulo, foi totalmente saneado, antes até dos investimentos mais maciços dos últimos anos. A metade que dá para a cidade foi saneada para evitar que a poluição do morro chegasse ao bairro do Tirol situado abaixo. E a que dá para a praia, por motivos ambientais.

Mãe Luiza se beneficiou por um efeito colateral de benefícios que estavam voltados para um bairro de elite da capital potiguar e pela emergência da questão ambiental reforçada pelo fato de que a praia, destino dos dejetos, era eventualmente também destino dos moradores de Areia Preta, outro bairro privilegiado da cidade.

É o caso do Centro de São Paulo. Sem querer desvalorizar possíveis avanços que podem acontecer aí, não podemos confundir aparência com realidade, já que as vantagens para o povo miram provavelmente o bem-estar e o paisagismo de outrem. Se mirassem as “periferias” que não são um conceito apenas geográfico, mas também socioeconômico, as populações deserdadas do Centro poderiam também ser beneficiadas por uma abordagem descentralizada do uso dos recursos…

Portanto, façamos o nosso cálculo simplista e apenas ilustrativo do que queremos exprimir, de uma distribuição alternativa desses recursos na cidade de São Paulo, cálculo que assumidamente reconhece que a realidade da exclusão social na metrópole é muito mais complexa e não se curvará às fórmulas que utilizaremos a seguir. Dito isso, um estudo mais aprofundado para uma distribuição mais equitativa é obviamente possível e estará preenchido dos mesmos valores éticos que pretendemos expor aqui no cálculo alegórico abaixo.

Vejamos: com cerca de 12 milhões de habitantes, a cidade de São Paulo terá obrigatoriamente 4 milhões no seu terço mais vulnerável, representando 200 territórios com 20 mil habitantes. Esses territórios, que são espaços de cidadãos, como conceituaria Milton Santos, e que, não tendo acesso à contemporaneidade, produzem exclusão social, poderiam também incluir populações vulneráveis vivendo no centro da cidade, que devem ser incluídas, ainda que seu território tenha limites geograficamente menos claros do que os que marcam as periferias, para materializar, com investimentos no que lhes fosse prioritário, o princípio da equidade.

Se dividirmos esses 6,3 bilhões previstos para o Centro de São Paulo pelos 200 territórios vulneráveis existentes na capital, onde moram esses 4 milhões de habitantes mais vulneráveis, encontraremos “inacreditáveis” trinta e um milhões e quinhentos mil reais por território!

Essa quantia é compatível com o que o Programa Periferia Viva destinou para o PAC Periferia em algumas favelas e comunidades do Brasil em 2024/2025, tratando-se, portanto, de recursos vultuosos e capazes de produzir um impacto extraordinariamente positivo na vida desse terço mais pobre da capital paulista.

O que fazer com esses recursos? As comunidades poderiam escolher!

Esse montante permitiria, quando fosse o caso, minimizar os problemas de moradia para as populações em situação de rua, realizar a regularização fundiária para milhares de famílias, construir centros para idosos ou equipamentos públicos comunitários, como bibliotecas, centros poliesportivos, piscinas públicas, pistas de skate, dentre outras iniciativas que pudessem ser, objetiva ou subjetivamente, prioritárias para cada comunidade, respeitando o processo de construção social do território que é a parte visível da construção de uma cidadania menos fácil de ser vista, mas garantidora da democracia.

De fato, a aplicação de políticas urbanas uniformes em territórios desiguais tende a perpetuar e aprofundar a exclusão. A equidade urbana, portanto, exige que o poder público atue de forma a corrigir esses desequilíbrios, promovendo uma justa distribuição dos ônus e benefícios da urbanização, como previsto no Estatuto da Cidade [2], o que só poderá ser feito com a participação social das comunidades na definição do que fazer com os orçamentos públicos disponíveis para isso (e, em São Paulo, mais uma vez, não haverá orçamentos) para planejar e executar o que for prioritário em primeiro lugar para o binômio do cidadão no seu espaço.

Isso implica direcionar, de forma prioritária e qualificada, os investimentos públicos, a infraestrutura e os serviços para as áreas mais precarizadas, como as periferias, favelas e assentamentos informais.

Trata-se de uma política de discriminação positiva do território. Instrumentos como as Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), a regularização fundiária de assentamentos ocupados por população de baixa renda e o IPTU progressivo no tempo para imóveis ociosos são ferramentas de equidade, ao buscarem reverter a lógica especulativa e garantir a função social da propriedade.

Da mesma forma, atendendo a necessidades subjetivas mas não menos legítimas, das comunidades, são também ferramentas de equidade a distribuição territorial dos equipamentos públicos comunitários, como os já citados.

A metodologia da RIDC, aliás, ao focar sua ação no “terço mais pobre da população” [5], e a própria estratégia de territorialização da saúde, que organiza os serviços a partir das necessidades epidemiológicas e sociais de cada região [6], são exemplos concretos de aplicação do princípio da equidade.

A organização do espaço é, portanto, uma condição para a efetivação do direito [7].

Equidade urbana, nesse sentido, só pode ser alcançada por meio de um planejamento territorial sensível às particularidades de cada lugar, com a devida alocação de recursos públicos de forma a reduzir a segregação e promover a inclusão, o bem-estar e a emancipação da cidadania.

Equidade Urbana: É o princípio que orienta o planejamento e a gestão urbana a reconhecer as desigualdades socioespaciais existentes e a atuar ativamente para reduzi-las, por meio da participação social para o diagnóstico das prioridades locais, da alocação prioritária de recursos e da implementação de políticas específicas para os territórios e populações mais vulneráveis, garantindo uma distribuição justa das oportunidades e qualidades da vida urbana.

3. Integralidade Urbana

No SUS, a integralidade possui uma dupla dimensão. Por um lado, refere-se à concepção do ser humano na totalidade indivisível, considerando suas dimensões biológica, psicológica e social. Isso se traduz em ações de saúde que articulam promoção, prevenção, tratamento e reabilitação. Por outro lado, implica na integração do sistema de saúde, articulando os diferentes níveis de atenção e as diversas políticas que impactam a saúde da população.

No campo do urbanismo, o conceito de Integralidade Urbana a ser construído corresponderia a uma visão holística e integrada tanto do cidadão quanto da própria cidade. Ela deveria reconhecer que a qualidade de vida urbana e o bem-estar dos habitantes dependem de um conjunto articulado e indissociável de fatores. Viver bem na cidade não se resume a ter uma moradia, mas envolve também o acesso a saneamento, mobilidade, educação, saúde, cultura, esporte, lazer, segurança num ambiente ecologicamente equilibrado.

O princípio da integralidade se opõe ao planejamento urbano fragmentado e setorial, que trata a habitação, o transporte e o saneamento como caixas isoladas. Ele exige a articulação intersetorial das políticas públicas no território.

O Plano Diretor, definido pelo Estatuto da Cidade como o “instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana” [2], é, em sua essência, uma ferramenta para a integralidade, pois deve ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade de forma integrada e poderia partir do planejamento de bairro ou de território para a construção da peça municipal.

A proposta da RIDC, ao elencar um leque diversificado de equipamentos e políticas (infraestrutura, social, cultural, ambiental, geração de renda) a serem pactuados com cada comunidade [5], materializa a busca pela integralidade no desenvolvimento local. Da mesma forma, a NAU salienta a correlação entre a boa urbanização e a criação de empregos, a melhoria da qualidade de vida e o desenvolvimento social e cultural [4].

A integralidade urbana significa, portanto, planejar e gerir o território considerando a complexa teia de necessidades e aspirações humanas, promovendo um desenvolvimento que seja, ao mesmo tempo, socialmente inclusivo, economicamente viável e ambientalmente sustentável.

Integralidade Urbana: É o princípio que concebe o cidadão em sua multidimensionalidade e a cidade como um sistema complexo e interconectado, orientando o planejamento e a gestão a promoverem a articulação intersetorial das políticas públicas no território, de modo a garantir uma resposta completa e integrada às necessidades habitacionais, ambientais, sociais, econômicas e culturais da população.

Conclusão

A transposição dos princípios da universalidade, equidade e integralidade do SUS para o urbanismo não é um mero exercício retórico. É a proposição de uma chave de leitura que poderia dar mais clareza aos alicerces ético e político que já caracterizam as lutas urbanas. Tal clareza teria permitido, por exemplo, aos urbanistas de São Paulo levantarem a bandeira da Equidade para se contrapor aos investimentos multibilionários da prefeitura no centro da cidade. Mas ainda há tempo.

Assim como o SUS representou um pacto civilizatório pelo direito à saúde, a adoção destes princípios no planejamento urbano pode catalisar um novo pacto pelo direito à cidade, conjugando o protagonismo das comunidades, que se constroem na produção social do espaço nos seus territórios, aos planejadores urbanos e às universidades, numa nova totalidade dinâmica.

A Universalidade nos desafia a romper com a cidade da segregação e do consumo, para construir a cidade do encontro e da cidadania, norteados pela utopia de que, sim, o direito à cidade deve estar lastreado no acesso universal;

A Equidade nos impõe o dever de reparar as injustiças históricas inscritas em nossos territórios, direcionando o olhar e a ação do Estado para onde eles são mais necessários;

E a Integralidade nos convoca a superar a fragmentação das políticas públicas, para enxergar e cuidar da cidade e de seus habitantes em sua totalidade complexa;

Fundamentar o urbanismo nestes três pilares é um caminho possível para transformar o direito à cidade, hoje uma bandeira de luta, em uma realidade concreta, planejada, gerida e garantida pelo Estado e desdobrada a cada território onde nasce, vive e morre o povo brasileiro.

Referências


[1] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

[2] BRASIL. Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. (Estatuto da Cidade). Brasília, DF: Presidência da República, 2001. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm

[3] SANTOS, Milton. O Espaço do Cidadão. 7. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2007.

[4] NAÇÕES UNIDAS. Nova Agenda Urbana. Quito: ONU-Habitat, 2017. (Tradução para o português)

[5] REDE DE INCLUSÃO E DIREITO À CIDADE. A Vida dos Excluídos Importa! A Centralidade das Periferias nas Eleições Municipais de 2020. 2. ed. Natal: CSPNSC, 2020.

[6] ALMEIDA, E. S. de; CASTRO, C. G. J. de; VIEIRA, C. A. L. Distritos Sanitários: Concepção e Organização. São Paulo: FSP-USP, 1998. (Série Saúde & Cidadania, v. 1).

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