Cidades para crianças

Outra urbanização possível valorizaria calçadas e brincadeiras. Permitiria admitir novos ritmos, contemplação e conversão do espaço público em espaço lúdico

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Por Lais Fontenelle Pereira | Imagem de Fernanda Camarim

“As crianças precisam de um local perto de casa,

ao ar livre, sem um fim específico,

onde possam brincar, movimentar-se

e adquirir noções de mundo.”

Jane Jacobs

Lançado há alguns meses no Brasil, Cidades para pessoas, do arquiteto e urbanista dinamarquês Jan Gehl, é interessante pela reflexão que propõe e merece leitura. Mas confesso que senti falta de um capítulo que incluísse a criança.

As cidades cresceram vertiginosamente e, segundo estatísticas assustadoras, tão cedo não vão parar de crescer e se adensar. Sabe-se que, desde a virada do milênio, a maior parte da população global é urbana, não mais rural – e aí se inclui também a infância. Por isso a necessidade urgente de refletirmos sobre cidades mais sustentáveis, sem deixarmos de fora a relação das crianças com o espaço urbano.

Ao contrário do que afirmam certas expressões, tais como “rua não é lugar de criança”, ou “lugar de criança é na escola”, a cidade deveria ser, sim, um espaço de encontro com a infância. Contudo, isso não é vivenciado pela maioria das crianças. Elas hoje experimentam uma invisibilidade citadina. Por quê?

Muitos responderiam que por medo da violência, e claro que têm alguma razão. As ruas não são, na maioria das vezes, espaços seguros para crianças. Mas vale lembrar a ativista Jane Jacobs, autora de Morte e Vida nas Grandes Cidades, de 1961 – considerado um clássico do planejamento urbano –, quando diz que as cidades, baseadas em ideais modernistas, passaram a ser organizadas não mais como espaços públicos de encontro social e sim como conglomerados individuais, com a construção de edifícios ou condomínios fechados autossuficientes e indiferentes, e de avenidas criadas para permitir a invasão dos automóveis.

Por isso, não é somente a falta de espaços públicos seguros e convidativos que impede as crianças de se expressar através do brincar. Elas estão confinadas em espaços privados – supostamente protegidos da violência urbana. Permanecem em casa sob o cuidado de terceiros ou na escola, por muito tempo, o que dificulta o acesso à experiência da vida na pólis. Sua relação com as cidades restringe-se aos intervalos em que transitam entre casa e escola. Suas mochilas e vozes infantis são vistas e ouvidas apenas pela manhã, na hora do almoço e no fim do dia.

A cidade é viva e só pode ser “explicada” ao ser explorada. Viver em metrópoles é presenciar acontecimentos inesperados e insubstituíveis, que falam sobre signos, códigos e descobertas. Ao experimentar uma vida citadina real, as crianças podem exercitar cidadania e aprender concretamente sobre a cultura e história local.

E se a cidade é lugar de aprendizagem, por que a escola não se integra ao espaço público, promovendo maior participação infantil no urbano? Uma proposta pedagógica que usasse o meio social urbano como espaço de difusão de conhecimento seria a resposta. Levar crianças a museus, parques, monumentos, feiras. Mostrar que têm direito à cidade – e principalmente às calçadas.

Aliás, essa é uma das ousadas propostas de Jane Jacobs: outra urbanização, na qual as calçadas sejam planejadas para receber as crianças e suas brincadeiras. Ao contrário de lugares pensados com o propósito específico de receber, porém limitar, como parques e praças, a calçada pode ser viva e diversificada, espaço onde vizinhos são responsáveis coletivos pela recreação informal das crianças, criando a noção de cuidado e comunidade.

As cidades não podem prescindir das crianças, inclusive porque elas são capazes de transformar o espaço público em espaço lúdico. O trânsito infantil contribui para o resgate de relações humanas. As crianças convidam a outro ritmo, a parar, a contemplar o entorno.

A criança precisa ser homenageada e protegida por toda a comunidade – ou o planejamento urbano será aborrecido e falso. Uma cidade é composta não só por carros e edifícios, mas por pessoas que sentem e se afetam. Já existem ações que apontam para isso. O Dia Mundial Sem Carro, que espalha pelas ruas múltiplas atividades de lazer convidativas ao encontro, é um exemplo de mobilização social. Cidades para pessoas e para crianças: o direito à cidade e à vida urbana é, antes de tudo, condição de humanismo e democracia.

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8 comentários para "Cidades para crianças"

  1. ideiasdelais disse:

    Obrigada pela dica! Adorei.

  2. ideiasdelais disse:

    Super Obrigada Tais. Vou mergulhar mais nesse tema.

  3. sergio cota disse:

    que orgulho filha
    eta

  4. Nogueira Júnior disse:

    O individualismo de hoje se dar a partir do ambiente em que vivemos…o coletivo não inspira mas atenção.Cada vez mais somos obrigados a viver e conviver em ambientes isolados, seja para morar ou para o lazer (condomínios fechados etc ) , sem a integração social. Os espaços públicos (praças, calçadas ) poderiam ser utilizados como ambiente de socialização, mas não recebem atenção devida por parte do poder público.

  5. Ronaldo disse:

    Lais, muito bom! Conheces?
    The 8-80 Philosophy
    8-80 Cities is based on a simple philosophy:
    If you create a city that’s good for an 8 year old and good for an 80 year old, you will create a successful city for everyone. This is an 8-80 City.
    http://www.8-80cities.org/about-us/the-8-80-philosophy.html

  6. Sandra Saraiva disse:

    Essa é uma discussão importantíssima, quando se fala tanto em cidades acessíveis, urbanização sustentável e apropriação dos espaços públicos pela população. Lembro que a minha infancia foi marcada por brincadeiras pela vizinhança inteira, onde ocupavamos a rua e usufruíamos da liberdade de brincar. Enquanto isso aprendiamos sobre viver e usar as ruas, as praças e exercer plenamente a nossa cidadania. Bela reflexão nos traz o texto.

  7. Tais disse:

    Olá Lais. Muito bom!!
    Você deve conhecer o trabalho de Francesco Tonucci sobre este assunto. Sou fã: http://www.youtube.com/watch?v=zAccDbrXUh0
    Um abraço!
    Tais

  8. Fabiano disse:

    Muito bom!

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