Quem está no banco dos réus: Arthur do Val ou a intimidade?

Que bom! – o deputado está a um passo da cassação. Mas algo não fecha. Por que só agora um político brasileiro será condenado com seriedade? Bolsonaro e Fernando Cury – que escancaram suas boçalidades – não mereciam destino semelhante?

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Por Eduardo Guimarães

Título original: A intimidade no banco dos réus

Vamos recordar os fatos. Em matéria de 4 de março, o colunista do jornal Metrópoles Igor Gadelha tornou público o vazamento de áudios do deputado Arthur do Val, gravados durante sua permanência na Ucrânia, sob a justificativa de combater ao lado dos ucranianos contra os russos. Nesses áudios, o deputado fazia uma série de comentários machistas e sexistas sobre as mulheres ucranianas, alegando serem fáceis demais. A repercussão desse vazamento de áudios foi extremamente negativa e amplamente noticiada. Em consequência, o deputado declarou desistir da pré-candidatura ao governo do estado de São Paulo em 5 de março e, em 8 de março, pediu a desfiliação de seu partido (Podemos) e também desistiu da reeleição para deputado estadual.

O repúdio da classe política diante do vazamento dos áudios foi praticamente unânime. Em 4 de março, a deputada estadual Isa Penna (PCdoB) protocolou um pedido de cassação contra o deputado Arthur do Val. A importante iniciativa da deputada Isa Penna foi apoiada por críticas dirigidas contra o deputado Arthur do Val por outros parlamentares, como o deputado estadual Paulo Fiorilo (PT), as deputadas federais Sâmia Bomfim (Psol) e Jandira Feghali (PCdoB). Entretanto, as críticas ao deputado não partiram somente de políticos da esquerda, mas também da direita, como a deputada federal Carla Zambelli (PL), o deputado estadual Gil Diniz (PL), o senador Alvaro Dias (Podemos) e o presidente Bolsonaro (PL).

Em 18 de março, foi aberto o processo que pode levar à cassação do mandato do deputado Arthur do Val. Isso representa uma vitória política sobre o discurso machista pronunciado pelo deputado, podendo servir de exemplo e modelo para a continuidade do combate à desigualdade de gênero e à opressão exercida pelo machismo. Não é para menos: os áudios do deputado Arthur do Val interpretam determinado estado de vulnerabilidade feminina, marcado pela situação de guerra e por sua condição de pobreza, como instrumentos que facilitam o acesso do homem ao seu próprio gozo obtido junto a uma mulher. Ao desconsiderar os horrores da guerra e as penúrias impostas pela pobreza, Arthur do Val queria acreditar que havia viajado para uma colônia de férias.

A possível vitória de uma batalha nessa guerra contra o machismo, contudo, é acompanhada de algumas peças que parecem não se encaixar nesse enorme puzzle. Em 2020, Arthur do Val já havia feito duros ataques ao padre Júlio Lancellotti, chegando a chamá-lo de “cafetão da miséria”. A condenação do deputado foi feita pela Justiça Eleitoral, menos por conta dos ataques, e mais por configurar propaganda eleitoral antecipada. Apesar de ser uma difamação pública e de conhecimento de todos, o deputado foi condenado a apenas apagar todos os seus vídeos e a não fazer nenhuma referência ao padre.

As peças se tornam mais estranhas ao tabuleiro quando nos referimos a um dos críticos dos áudios do deputado Arthur do Val: o presidente Bolsonaro. Em 2014, Bolsonaro, então deputado federal (PP), atacou a então deputada federal Maria do Rosário (PT) no plenário da Câmara, dizendo a ela que “não estupraria você porque você não merece”. Bolsonaro foi condenado a pagar uma indenização de R$ 10 mil a Maria do Rosário, mas seu mandato não foi cassado. Em 2016, novamente o então deputado Bolsonaro, durante o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff (PT), ao justificar seu voto, dedicou-o à “memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff”. Conhecido como Dr. Tibiriçá, Ustra foi torturador durante a ditadura militar. Bolsonaro não foi sequer condenado.

Para trazer apenas mais uma estranha peça, podemos recordar um caso ocorrido com a própria deputada Isa Penna. Em 2020, o deputado estadual Fernando Cury (sem partido) foi denunciado pela deputada por ter apalpado seus seios durante sessão da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. O assédio foi público e gravado. O deputado Fernando Cury foi condenado a um afastamento de 180 dias de suas atividades políticas e, em 2021, foi expulso de seu então partido Cidadania, mas seu mandato não foi cassado.

O deputado Arthur do Val, em sua defesa, argumentou que o deputado Fernando Cury não havia sido cassado por ter assediado a deputada Isa Penna, o que não adiantou muita coisa. Aparentemente, equiparar o caso de Arthur do Val com o caso de Fernando Cury poderia conduzir a uma condenação menos severa ao primeiro, correto? Penso que não. Os casos apresentados anteriormente não servem para reduzir a gravidade do caso de Arthur do Val, mas nos levanta uma importante questão: por que somente agora um político brasileiro está prestes a ser condenado com seriedade? Bolsonaro e Fernando Cury não mereciam destinos semelhantes?

Dizem que Deus está nos detalhes – e é nos detalhes que podemos encontrar alguma indicação para condenações tão díspares. Com exceção dos áudios vazados de Arthur do Val, todos os outros casos mencionados nessa coluna foram públicos e conhecidos por todos. Não havia nada a ser revelado e exposto, nada escondido que precisasse ser descoberto. Tudo aconteceu sob a clara luz do dia. Já o recente caso de Arthur do Val se diferencia do restante dos casos porque se trata da revelação de um encontro ocorrido nos becos, da exposição de conversas de um grupo de Whatsapp. Esse grupo de Whatsapp é formado por amigos ou colegas que jogam futebol, ou seja, um grupo privado. Por esse motivo, seus integrantes esperavam que suas conversas permanecessem no âmbito daquele grupo. Com o vazamento dos áudios, não somente a privacidade, mas também a intimidade estabelecida entre os integrantes daquele grupo foi rompida.

O vazamento de conversas íntimas não é uma novidade na política brasileira. Em 2016, o diálogo entre Lula e a então presidenta Dilma foi grampeado e vazado pelo então juiz Sérgio Moro. Esse vazamento não foi o principal motivo, mas desencadeou uma série de manifestações que conduziram ao impeachment de Dilma. Assim como no caso de Arthur do Val, uma grande movimentação política foi feita com base no vazamento de conversas privadas, com base na exposição pública da intimidade. E talvez isso nos ensine muito sobre os caminhos da política brasileira: não tem havido disposição para se escandalizar com aquilo que ocorre no espaço público, mas somente com a exposição pública da intimidade. É necessário expor a vida privada para que a vida pública se movimente.

Um presidente como Bolsonaro, reconhecidamente homofóbico e sexista, está praticamente imune a qualquer abertura de processo. Muito provavelmente, isso ocorre porque Bolsonaro não mede o que diz no espaço público – assim como se faz em um banheiro: aquele que não mede o que diz, fala como quem defeca ou como quem vomita (nesses dois casos, nunca medimos o que vai ser de nós mesmos). Não há o que revelar de sua intimidade, pois sua intimidade medíocre se tornou moeda política há já alguns anos.

Esse caminho pode trazer graves consequências. Quando as transformações políticas, sejam elas em nome de um golpe ou em nome da justiça, são realmente mobilizadas somente pela exposição da vida privada, corremos o risco de perder os limites que separam, de um lado, a intimidade e, de outro, a vida pública. A intimidade, estruturada por meio do diálogo e lugar da experimentação e da constituição da subjetividade, pode se tornar alvo de monitoramento moral e político – curiosamente, é justamente nessa época em que nos encontramos que a intimidade sexual tem se tornado alvo cada vez maior de ataques e perseguições políticas.

Arthur do Val deve ser punido, mas sua punição deve ser entendida em um contexto de negligência do que é dito e feito no espaço público. Se o seu mandato for cassado, poderemos comemorar a vitória de uma batalha, mas não da guerra. Nessa guerra, como temos visto, vence quem estiver disposto a expor publicamente seus pensamentos mais excrementícios, vence aquele que não tem o que esconder de sua intimidade ou que diz o que todo mundo quer falar (mas fala somente em sua vida privada): vence alguém como Bolsonaro.

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