Uma materialização artística da morte na pandemia
Em Insuflação de Uma Morte Crônica, quatro mulheres enchem bexigas e convivem com elas — isoladas num apartamento, com transmissão ao vivo. No trabalho, um convite à reflexão sobre a necropolítica, que transforma perdas em números
Publicado 06/08/2020 às 18:09 - Atualizado 07/08/2020 às 11:21
Por Simone Paz e Mulheres em Quarentena | Imagens: Cacá Bernardes
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Tudo começou em março de 2020, na cabeça de Bruna Lessa, cineasta e artista visual que assina a concepção da obra e que também performa em Insuflação de Uma Morte Crônica.
A performance, que teve início na primeira segunda-feira de agosto (e vai até dia 16/8), nasceu de uma conversa entre Bruna e Eliana Monteiro (Teatro da Vertigem) lá no início da pandemia, pensando nas questões femininas que a quarentena acarreta: além de muitas mulheres do audiovisual e de backstage estarem desempregadas, sem perspectiva nenhuma de trabalhos no horizonte próximo, todo o peso do trabalho do lar, dos cuidados, do afeto e dos filhos, recai sobre seus ombros.
Como relacionar, então, a morte, a violência do vírus e da necropolítica brasileira, com a violência feminina e o desemprego? O resultado é o trabalho que pode ser acompanhado ao vivo, por YouTube, 24h por dia, aqui.
“A gente dá ar exatamente às pessoas que estão morrendo sem ar”
São quatro performers, Cacá Bernardes, Carina Iglecias e Joanna Coutinho, além da própria Bruna, enchendo bexigas pretas — e convivendo com elas em suas atividades cotidianas — pelo tempo de uma quarentena: 14 dias.
A inquietação que move o projeto é aquela de dar corpo e visibilidade a essas vidas que se foram, como Bruna Lessa explica num áudio de WhatsApp para a jornalista Juliana Pithon: “O Insuflação parte de uma inquietação minha de parar de pensar número e começar a pensar em volume. Que volume que ocupa? O projeto começou quando a gente estava lá em 5 mil mortes. A gente não pensava em chegar a 100 mil como a gente está agora. Óbvio que tinha um monte de estudos que já diziam que chegaríamos até aqui. Mas 5 mil já me assustava muito. Qual era o volume de 5 mil mortos? Naquele momento, que espaço que ele ocupa? Como que dentro da minha casa eu consigo dimensionar essa espacialidade?”
Bruna ainda acrescenta que, na performance, lida-se fortemente com a materialização da morte: “Escolhemos, como material, as bexigas pretas […] A gente dá ar exatamente às pessoas que estão morrendo sem ar”.
Mas, no meio de tudo isso, foram surgindo novas perspectivas, porque também se fala da vida: “cada bexiga dessas é uma pessoa, que tem família e amigos, que tem uma história”. E, assim, vai ganhando dimensão o que mais ecoa: que as vidas importam. “O Mulheres em Quarentena nasce um pouco disso, de privilegiar a vida, de produzir trabalhos que pensem a vida”
Ao final dos 14 dias, as bexigas serão esvaziadas e doadas para um coletivo de mães da periferia de São Paulo, que transformarão os resíduos num grande manto-tela.
Após o fim de Insuflação, no dia 16 de agosto, tem início mais um espetáculo do Mulheres em Quarentena, “E o que restou do barro silenciou a mulher”, que traz à tona a recusa ao silêncio imposto às mulheres, tanto no âmbito público e regulamentado como nos ambientes mais privados, por exemplo, o das relações familiares.