Uma chance para debater os Mil Foucaults
Hoje, às 20h, Moysés Pinto Neto dialoga com Leomir Hilário e Aline Passos sobre filósofo que marcou a segunda metade do século XX, cuja obra ganha ainda mais importância em tempos de crise da democracia, vigilância e risco de fascismo
Publicado 16/07/2020 às 17:53 - Atualizado 16/07/2020 às 17:54
Mil Fucôs: cartografias do pensamento de Michel Foucault, no canal TranseHub. Bate-papo com Moysés Pinto Neto, Leomir Hilário e Aline Passos
Apresentação de Moysés Pinto Neto
Michel Foucault é, sem dúvida alguma, um dos principais filósofos do século XX. Talvez seu grau de influência sobre as humanidades seja tão intenso que nos resta apenas o declarar como o mais importante da segunda metade do século passado. Pensador que penetrou não apenas em diferentes tradições, mas cruzou áreas e consolidou um campo que se tornou não-classificável para o universo clássico e burocrático da divisão disciplinar.
Não bastasse isso, Foucault também tornou-se relevante para todas as lutas que se consolidaram nos já-não-tão-novos movimentos sociais, em que a micropolítica se torna um componente decisivo. O ataque frontal ao Estado, ou mesmo a uma classe, como fonte concentrada de todo poder passa a ser substituído por um emaranhado distribuído de relações moduladas que dão forma ao agir, pensar, ser.
Lendo o texto do Leomir Hilário [reproduzido abaixo], Aline Passos sugeriu que fizéssemos uma live sobre estes muitos Foucaults, o que aceitamos com muito prazer, em um gesto que pode ser tanto teórico quanto político.
Apesar das centenas de milhares de escritos sobre Foucault, há ainda muita energia a ser potencializada em torno ao seu pensamento para além da repetição.
Foucault múltiplo: uma cartografia introdutória
Por Leomir Hilário, em suas redes sociais
Ontem durante a fala sobre “Crise e necropolítica no Brasil contemporâneo”, eu sugeri algo como uma “cartografia do pensamento de Foucault” para defender como a noção de necropolítica não pode ser vista como vindo de uma “má leitura” de Foucault, mas sim como marca de uma interpretação específica. Embora fazer uma cartografia assim tenha esse sentido estratégico para mim, entendo que também pode servir como um mapa de localização para quem quer se introduzir em Michel Foucault, que para mim não é exatamente mais um intelectual francês, mas sim um campo de discussão, debates e pesquisas sobre o nosso mundo atual.
Eu comentei que há pelo menos sete Foucault: o americano, o francês, o alemão, o italiano, o inglês, o brasileiro e o sul-africano. Evidentemente, isso funciona apenas como apresentação didática.
1. Nos Estados Unidos, Foucault é marcado por uma proximidade esquisita com o neoliberalismo, uma espécie do possível entusiasta da governamentalidade neoliberal e próximo dos novos filósofos franceses. O livro mais emblemático dessa posição é o livro chamado “Criticar Foucault: os anos 1980 e a tentação neoliberal” (título francês), cujo título em inglês é: “Foucault e o neoliberalismo”.
Foi M. S. Christofferson (professor da Columbia University) que lançou uma das linhas-mestras dessa discussão ao focalizar a relação entre Foucault e os novos filósofos franceses num livro chamado “Intelectuais franceses contra a esquerda: o momento antitotalitário dos anos 70”. Nesse livro, ainda inédito em português, ele recupera a esquisita resenha de Foucault ao livro “Os mestres pensadores” de Glucksmann. Essa proximidade vai gerar rusgas com Gilles Deleuze, bem como o problema envolvendo o Klaus Croissant, então advogado da “Red Army Faction” (o leitor brasileiro tem a sua disposição o livro “Televisionários” para conhecer esse movimento). Também o M. Behrent endossa muito essa leitura.
Exceção: a Wendy Brown, professora de Ciência Política da Universidade da Califórnia, não endossa essa leitura. O seu livro “Nas ruínas do neoliberalismo” é excelente.
2. Na França, ao contrário, Foucault ressurge como crítico radical do neoliberalismo e da governamentalidade neoliberal (do sujeito empresário de si mesmo). Grande expoente disso é o “A Nova Razão do Mundo”, do C. Laval e P. Dardot. É também um Foucault crítico do capitalismo, que ajusta suas contas com Marx, a exemplo da coletânea “Marx & Foucault: leituras, usos, confrontos”, do qual Laval faz parte da organização.
Exceção: “A última lição de Foucault”, de Geoffroy de Lagasnerie. Vou nem comentar.
3. Na Alemanha, Foucault é crítico e está próximo da Escola de Frankfurt, visto como um desenvolvimento paralelo da teoria crítica de Habermas (assim é a tese do Axel Honneth). É um Foucault que propõe basicamente uma teoria social crítica, um campo que se pode denominar de “estudos sobre governamentalidade” (Thomas Lemke). Há um belíssimo resumo disso pela mão do Martin Saar, se questionando se há um Foucault alemão. Em termos de obras, destaco “Biopolítica: crítica, debates, perspectivas” e “Foucault, governamentalidade e crítica”, do Thomas Lemke.
4. Na Itália, Foucault é politicamente engajado, meio que a ressonância das últimas palavras do “Vigiar e Punir”. Qualquer leitor pode sentir isso na leitura Giorgio Agamben, “Homo Sacer”, onde se afirma que o campo de concentração tem a ver com biopolítica e que democracia/totalitarismo não se opõem. Quem lê logo é tomado pela ideia: “se é assim, tudo está errado, tudo deve mudar, pra ontem!”. É um Foucault que tem algo a dizer no espaço público acerca de grandes temas históricos da atualidade, desde o fascismo até o neoliberalismo. A mesma coisa se passa em quem lê “Multidão” e “Império” de Negri e Hardt.
5. Na Inglaterra, é o Foucault crítico do self e das tecnologias de si, um crítico da psicologia e da medicina, como aparece em Nikolas Rose, e o leitor brasileiro pode conferir as linhas principais dessa crítica no livro “Inventando nossos selfs”.
6. O Foucault da África do Sul é aquele marcado pelo pensamento pós-colonial (corrente surgida na segunda metade do século XX com as experiências de lutas anticoloniais na Ásia e na África, onde podemos destacar Franz Fanon e Aimé Césaire) e também pelo pensamento decolonial que podemos definir como uma corrente que emerge nos anos 90 que pretende construir um outro paradigma em relação à modernidade e a dominação global estabelecida com a colonização e que se mantém até hoje (do qual podemos destacar Edward Said, Homi Bhabha e Spivak). É esse o Foucault do Achille Mbembe, é o Foucault da necropolítica. É o Foucault que preenche a sua própria lacuna de análise acerca do racismo e do colonialismo – que ele somente cita de passagem no final do curso de 1976 – e também o Foucault que procura superar seu déficit periférico.
7. No Brasil, Foucault é aquele da genealogia do poder, um Foucault deleuzianizado, um Foucault lido pelas lentes do Gilles Deleuze. Esse Foucault é o nosso, é a partir dele que lemos o Foucault. É o Foucault nietzschiano, basta ler e ouvir o Roberto Machado. E isso não é óbvio. O Foucault alemão de Thomas Lemke é o que se faz a partir da recusa da hipótese Nietzsche a da luta social como fundamento e parte para a ideia de governo. Enquanto um Foucault é nietzschiano radical, o outro só é Foucault por meio da ruptura com Nietzsche. O Foucault brasileiro é o Foucault da “Microfísica do poder”, que é inclusive um livro que se tornou clássico entre nós, organizado pelo Roberto Machado mas ganhou o estatuto de obra do próprio Foucault. O ensaio de abertura e apresentação do Roberto Machado se chama exatamente “Por uma genealogia do poder”.
O Brasil ocupa no pensamento de Foucault não um lugar acessório. Foucault visitou o Brasil cinco vezes, percorrendo São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco, Pará, conhecendo mais lugares do Brasil do que muita gente. Aqui ele pronunciou pela primeira vez a noção de “biopolítica” (“O nascimento da medicina social”, conferência de 1974 no IMS na UERJ), aqui ele realizou a conferência sobre “A verdade e as formas jurídicas”, por exemplo, são intervenções fundamentais do pensamento foucaultiano, que marcam rupturas e desenvolvimentos de seu pensamento.
OBS: Ninguém lê o autor por si mesmo, todo encontro com o texto é sempre mediado pelo contexto cultural do leitor, que implica na sua recepção do autor. É aquilo que podemos chamar de “fusão de horizontes”: ler um autor é provocar essa fusão entre o horizonte de sua época e o nosso, misturá-los e assim produzir, a partir do texto, um novo sentido que oriente novas práticas. Querer desmerecer leituras específicas de Foucault é ou desconhecer essa pluralidade de sua recepção ou mera má vontade mesmo. Talvez no uso de Foucault esteja o lugar onde menos faz sentido falar em “verdade do autor” e o que ele “realmente quis dizer”. Tudo se passa, na verdade, com os usos de Foucault e, principalmente, com o modo pelo qual suas ideias ainda podem se constituir como ferramentas radicais de análise do presente na direção de sua transformação.
OBS 2: Esse textinho tem um caráter de ensaio, fazem parte de anotações para um artigo ainda não publicado. Ao longo dos anos, fui fazendo essas anotações para tentar entender o motivo pelo qual demoramos tanto a falar em necropolítica aqui entre nós, principalmente entre os estudiosos de Foucault. Lembrem: o termo é de 2003 e a primeira tradução no Brasil é de dezembro de 2016.
OBS 3 (dia 14/07/2020): Obrigado, pessoal, pelas palavras nos comentários e pelo compartilhamento desse post. O texto foi escrito de maneira bem rápida e espontânea, embora as anotações venham de longa data. Há vários erros de revisão no texto. Também há várias omissões, como a do Roberto Esposito no Foucault italiano, ou a discussão da pedagogia brasileira que recepcionou Foucault muito bem (a exemplo do livro “O sujeito da educação”), ou ainda a apropriação, também pela pedagogia, de Jorge Larrosa na Espanha… a lista é praticamente infinita. Minha intenção foi mais a de instigar pessoas a lerem o Foucault nessa perspectiva plural do que fornecer um panorama definitivo.