Radiografias da República do Capital
Obra da Boitempo analisa a evolução política e econômica do Brasil, desde o final do século XIX até o presente. Com nova edição ampliada, autor explora as relações entre capitalismo e processo político ao longo da história do país. Leia um trecho. Sorteamos 2 exemplares
Publicado 24/01/2025 às 18:01
O Brasil, ao longo de sua história, tem sido um campo fértil para a análise das complexas interações entre política e economia. A transição de um sistema escravocrata para o capitalismo, o processo de institucionalização da República, e as inúmeras modificações nas estruturas de poder e nas relações de classe, formam a espinha dorsal do processo político nacional.
A compreensão dessa trajetória exige um olhar atento sobre as transformações econômicas, que, embora impulsionadas por forças externas, tiveram suas peculiaridades, refletindo as contradições de um país em desenvolvimento e suas tensões internas.
A obra República do Capital: Capitalismo e Processo Político no Brasil, do professor e cientista político Décio Saes, oferece uma análise de fôlego e profundidade acerca da trajetória política e econômica brasileira desde o final do século XIX até os dias atuais. Agora, em uma edição revista e ampliada, publicada pela Boitempo Editorial, o autor traz seis novos textos, expandindo ainda mais os estudos sobre o desenvolvimento do capitalismo no país.
Outras Palavras e Boitempo Editorial irão sortear dois exemplares de República do Capital: Capitalismo e Processo Político no Brasil, de Décio Saes, entre quem apoia nosso jornalismo de profundidade e de perspectiva pós-capitalista. O sorteio estará aberto para inscrições até a segunda-feira do dia 3/2, às 14h. Os membros da rede Outros Quinhentos receberão o formulário de participação via e-mail no boletim enviado para quem contribui. Cadastre-se em nosso Apoia.se para ter acesso!
Com uma abordagem que explora as mudanças nas estruturas de Estado e nas relações de poder, o escrito investiga desde os processos de transição do escravismo para o capitalismo até o impacto das políticas neoliberais dos anos 1990.
Ao abordar temas como as dinâmicas de classe e os conflitos políticos em diferentes momentos históricos, Saes proporciona uma visão crítica sobre a formação da “república das Bruzundangas”, conceito de Lima Barreto que ilustra as peculiaridades do Brasil.
Além de uma análise econômica e política, o autor examina também as dimensões institucionais e ideológicas do sistema político brasileiro, reorganizando os textos de forma a permitir uma melhor compreensão das conexões entre os temas discutidos.
O “passeio” pelas fases políticas e econômicas do Brasil contribui para contextualizar como o capitalismo tardio e seus reflexos se estruturam no desenvolvimento econômico brasileiro.
Leia, abaixo, a introdução do livro. Boa leitura!
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INTRODUÇÃO
Os textos aqui publicados abordam, todos, algum aspecto da política brasileira no período republicano. Utilizo a expressão “política brasileira” num sentido amplo: ela recobre as dimensões institucional, comportamental e ideológica do processo político. Os ensaios tratam de questões variadas como: a) a configuração das instituições políticas (tipo histórico de Estado, forma de Estado, regime político); b) a orientação das políticas governamentais, na sua relação com os interesses coletivos; c) as ideologias políticas, na sua relação com a orientação das políticas governamentais (e, portanto, também com os interesses coletivos).
O estabelecimento, no subtítulo, de uma conexão entre capitalismo e processo político indica que a análise política consubstanciada neste livro segue um caminho teórico bem determinado. Mais precisamente: a via teórica iniciada implica levar em conta a interação do processo político e da forma pela qual se deu a transição para o capitalismo no Brasil, e a interação do processo político e do modo pelo qual o capitalismo se desenvolve, uma vez estabelecida a sua predominância na formação social brasileira. Recorro aqui à expressão “interação” para deixar claro que as análises políticas aqui apresentadas não se pautam pela suposição da existência de uma determinação unilateral do processo político pelo capitalismo (leia-se: pelo padrão vigente de transição para o capitalismo, bem como pelos padrões subsequentes de desenvolvimento do capitalismo).
A hipótese de trabalho subjacente aos textos aqui reunidos reconhece duas possibilidades de relação entre processo político e capitalismo. De um lado, a configuração (capitalista) do sistema econômico, bem como do sistema de grupos sociais que resulta do seu funcionamento, impõe limites bem determinados ao processo político de curto prazo; este se “acomoda” às instituições econômicas e políticas capitalistas, provocando no máximo modificações secundárias, que não alteram o caráter capitalista daquelas instituições, embora possam alterar o curso do desenvolvimento capitalista (lembremo-nos de que este não é sempre o mesmo, do ponto de vista econômico ou político, por toda a parte). De outro lado, no longo prazo (e em conexão com os efeitos cumulativos do funcionamento do
sistema econômico: as implicações sociais e políticas do desenvolvimento das forças da produção), o processo político pode se converter em processo revolucionário, rompendo os limites estabelecidos pelas instituições econômicas e políticas vigentes e determinando a sua substituição por novas instituições. (Essa modalidade de relação se configura nos processos de transição para o capitalismo, quando a prática política revolucionária derruba as instituições políticas preexistentes, substituindo-as por instituições políticas capitalistas e criando desse modo condições favoráveis à formação de instituições econômicas capitalistas.)
Mas a opção teórica subjacente aos textos aqui apresentados não se reduz ao reconhecimento, numa perspectiva materialista, da conexão entre processo político e capitalismo. Na verdade, tal reconhecimento se faz aqui no seio de uma teoria materialista da história, que encara a totalidade social como uma articulação de estruturas: a econômica e a jurídico-política. Tais estruturas – que são padrões ou valores capazes de orientar regularmente as práticas sociais de natureza econômica ou política – concretizam-se por meio de aparelhos ou instituições. Estes, entretanto, configuram-se não como espelhos fiéis das estruturas, e sim como as suas expressões deformadas; o que significa que as estruturas não são transparentes e sim opacas, permanecendo ocultas aos olhos dos agentes (mas podendo ser desvendadas por meio do trabalho científico). Portanto, cabe ao analista político que se coloca nessa perspectiva descobrir a natureza da estrutura jurídico-política (escravista, asiática, feudal, capitalista) que predomina na formação social por ele estudada. Essa descoberta lhe permitirá chegar ao significado das ações do aparelho estatal; estas implicam o cumprimento de funções – como a de organizar a dominação dos proprietários dos meios de produção sobre os trabalhadores, a de organizar a hegemonia de uma fração de classe dominante sobre as demais frações e a de desorganizar as classes dominadas – atribuídas ao aparelho estatal pela estrutura jurídico-política. Dentro desse quadro teórico geral, fenômenos como a política estatal, a ação política da classe dominante ou a mudança na forma de Estado – frequentemente analisados como se ocorressem num espaço vazio, não povoado por estruturas – têm de ser redimensionados. Ou seja: a “liberdade” desses fenômenos dentro do processo histórico deixa de ser encarada como absoluta, pois agora se levam em conta as limitações que lhes são impostas pela estrutura jurídico-política vigente. Só em condições excepcionais – que se concretizam apenas no longo prazo – poderá emergir uma prática social revolucionária, capaz de subverter as estruturas e de destruir os aparelhos que lhes correspondem, dando assim início à implantação de um novo tipo histórico de sociedade.
República do capital: capitalismo e processo político no Brasil exprime a perspectiva teórica anteriormente evocada. Contudo, os temas e os conceitos que são próprios a essa perspectiva não aparecem com a mesma intensidade nem são igualmente visíveis em todos os ensaios. Decidi publicá-los conjuntamente na esperança de que essas análises da política brasileira, agora se complementando umas às outras, poderiam sugerir ao jovem cientista político de orientação crítica uma metodologia da análise política que, por estar articulada a uma visão efetivamente materialista da história, o leve para longe das habituais teses conservadoras sobre a crônica fraqueza da sociedade civil diante do Estado no Brasil ou sobre o caráter determinante, para a atual vida política brasileira, de nossa “formação ibérica”.
* * *
Um modo de apresentar cada um dos ensaios consistiria em antecipar ao leitor as principais teses neles contidas. Creio, entretanto, que esse trabalho é desnecessário para quem se decidiu pela aquisição deste livro por ter se interessado pelos temas evocados no título de cada capítulo. É, a meu ver, mais útil dedicar esta “Introdução” à explicitação da principal questão teórica subjacente a cada uma das análises políticas constantes no livro. Esse trabalho pode ser mais proveitoso para o leitor, sobretudo porque, em muitos casos, o contexto intelectual em que o ensaio foi produzido não é facilmente reconstituível num momento posterior. Assim, muitas alusões, consideradas óbvias em certo contexto, podem ser vistas como absolutamente obscuras num contexto diverso.
Em seu aspecto crítico, “Florestan Fernandes e a revolução burguesa no Brasil” [1] visa um duplo alvo: a) a concepção de revolução burguesa proposta pelo eminente sociólogo: um processo de difusão da racionalidade na economia e na sociedade; b) a tese, defendida por Fernandes, de que os principais protagonistas históricos da revolução burguesa no Brasil são o fazendeiro-negociante e o burguês-imigrante. Mas o texto também apresenta uma dimensão construtiva, pois cobra de Fernandes uma análise do momento especificamente político da revolução burguesa no Brasil: vale dizer, uma análise do processo de formação de uma estrutura jurídico-política burguesa e da concomitante construção de um aparelho de Estado burguês. A rigor, o que se “solicita” (figura de retórica, evidentemente) de Fernandes é que ele recorra, na análise do processo histórico brasileiro, a uma teoria da transição para o capitalismo em que a formação da estrutura jurídico-política capitalista, resultante da luta de classes, antecipe-se à formação da estrutura econômica capitalista, agindo inclusive como fator imediato da transformação da estrutura econômica anterior. Carente de uma teoria desse tipo, Fernandes não analisa, em sua obra magna, o papel da formação do Estado burguês no processo geral de transição para o capitalismo no Brasil. Inversamente, meu texto indica que a formação do Estado burguês, ocorrida no Brasil entre 1888 e 1891 por meio de acontecimentos políticos como a Abolição, a Proclamação da República e a Assembleia Constituinte deu início ao processo de transição para o capitalismo, que só se completa muito mais tarde (isto é, na década de 1960) no plano econômico.
Outras Palavras e Boitempo Editorial irão sortear dois exemplares de República do Capital: Capitalismo e Processo Político no Brasil, de Décio Saes, entre quem apoia nosso jornalismo de profundidade e de perspectiva pós-capitalista. O sorteio estará aberto para inscrições até a segunda-feira do dia 3/2, às 14h. Os membros da rede Outros Quinhentos receberão o formulário de participação via e-mail no boletim enviado para quem contribui. Cadastre-se em nosso Apoia.se para ter acesso!
“A evolução do Estado no Brasil (uma interpretação marxista)” [2] torna mais evidente meu quadro teórico de análise do Estado, já que o seu objetivo explícito é o cotejo dos esquemas interpretativos utilizados em estudos do fenômeno estatal no Brasil. De modo mais claro que no texto anterior, sugiro que a análise do Estado comece sempre pelo desvendamento do conteúdo da estrutura jurídico-política prevalecente na formação social em estudo, bem como da função social que lhe corresponde. Evidentemente, buscar a função social cumprida pelo aparelho de Estado que concretiza uma estrutura jurídico-política significa afastar-se do universo teórico weberiano (em que o Estado é visto como instituição sem finalidade específica) e, portanto, de conceitos weberianos como o de Estado patrimonialista, recorrentemente utilizado nas análises do processo histórico brasileiro. Mas levar sempre em conta a correlação entre estrutura e função também significa rejeitar a caracterização de um Estado qualquer como burguês ou capitalista estritamente pelo fato de esse Estado parecer estar desempenhando a função – aparentemente, desvinculada de qualquer estrutura – de auxiliar a “acumulação primitiva de capital” em alguma formação social. Nessa perspectiva, reconheço a predominância sucessiva de duas estruturas jurídico-políticas no Brasil, da Colônia à República: uma estrutura jurídico-política escravista moderna (do século XVI a 1888) e uma estrutura jurídico-política burguesa ou capitalista (de 1888 aos nossos dias).
A questão das formas assumidas pelo Estado burguês no Brasil, bem como dos regimes políticos que lhes correspondem, aparece de modo mais direto em dois textos desta coletânea. A principal questão teórica subjacente a “A questão da ‘transição’ do regime militar à democracia no Brasil” [3] é a da diferenciação da transformação na forma de Estado e no regime político e da transformação da forma de Estado e do regime político. Para os cientistas políticos e jornalistas liberais da década de 1980, estava em curso, desde a abertura até a Nova República, um projeto consciente de construção gradual e por etapas da democracia no Brasil; vale dizer, um processo perfeitamente controlado de transição para a democracia. Procurei argumentar, na contramão – e dentro de um estilo algo alusivo –, que a liberalização sob pressão – pois era disso que se tratava – do regime militar, objeto de conflitos incessantes entre as forças políticas, não deveria ser confundida com a implementação consciente de um projeto liberal de construção gradual da democracia. A meu ver, o conceito de “transição para a democracia”, que então circulava como moeda miúda, jogava um véu sobre o jogo de pressões e concessões que se constituía no verdadeiro fulcro do processo político dos anos 1970-1980. Hoje, parece-me claro que o texto, por estar dominantemente voltado para a polêmica política do momento, não avança suficientemente na fixação dos limites dentro dos quais o regime militar poderia evoluir sem mudar de natureza. Todavia, a análise política aí consubstanciada ainda me parece útil, por criticar a concepção de fundo idealista segundo a qual os resultados concretos do processo político coincidem regularmente com determinados projetos (de indivíduo ou de grupo social), em vez de exprimirem o entrecruzamento de múltiplos projetos (o que não exclui a correspondência objetiva entre tais resultados e certos interesses coletivos).
A questão da forma do Estado, bem como do regime político que lhe corresponde, também aparece num segundo texto: “Democracia e capitalismo no Brasil: balanço e perspectivas” [4]. Aqui, o objeto de análise é a democracia, como forma de Estado e como regime político, tal qual ela se configura em diferentes subperíodos da história republicana do Brasil. A tese central defendida nesse texto não é propriamente original: a democracia burguesa, no Brasil, apresentaria de modo constante um caráter limitado e instável. Bem mais interessante, sem dúvida, é a questão teórica subjacente à análise: como explicar o caráter constantemente limitado e instável da democracia burguesa no Brasil? Rejeitando o modelo explicativo segundo o qual a vida política brasileira exprimiria, desde um passado longínquo até nossos dias, certos traços culturais permanentes (“nossa formação ibérica”), proponho que se busque, em última instância, a explicação para aquela dupla característica na conexão que a forma de Estado e o regime político mantêm com a configuração do processo de transição para o capitalismo e, a seguir, do próprio desenvolvimento capitalista no país.
No terreno da análise do processo político brasileiro, o aspecto mais original de “Estado e classes sociais no capitalismo brasileiro dos anos 1970/1980” [5] era a tese segundo a qual se teria estabelecido, a partir de 1964, a hegemonia política do capital bancário no seio da classe dominante brasileira. Essa tese era relativamente diferente daquela defendida pela maioria dos analistas políticos de esquerda acerca da hegemonia política sob o regime militar: se no período 1930-1964 a burguesia industrial, no seu conjunto, havia exercido a hegemonia política no seio da classe dominante, a partir de 1964 a condição hegemônica teria sido assumida por um segmento específico do capital industrial: o grande capital (ou capital monopolista). Opondo-me, em termos, a essa tese, procurei demonstrar que o processo de concentração/centralização do capital, intensificado após o golpe militar de 1964, favorecia mais o capital bancário que o capital industrial. Contudo, não logrei avançar, com esse texto, no tratamento da questão teórica da hegemonia política no seio do bloco das classes dominantes sob o Estado capitalista, a despeito de sugerir brevemente, numa passagem, que tal hegemonia deveria possuir um caráter compósito. Esse tratamento implicaria que se levasse em conta a possibilidade de constituição, numa formação social capitalista, de um sistema hegemônico, no qual: a) um segmento horizontal da classe capitalista (segmento esse resultante de uma diferenciação interna da classe segundo a escala do capital: grande capital, médio capital) preponderaria politicamente sobre os demais; b) um segmento vertical da classe capitalista (segmento esse resultante da diferenciação interna da classe segundo a função preenchida pelo capital no processo econômico capitalista: capital industrial, capital comercial, capital bancário) preponderaria politicamente sobre os seus congêneres; c) uma camada capitalista específica, resultante da interseção dos dois processos de diferenciação interna da classe, dirigiria o sistema hegemônico, articulando os dois níveis mencionados de exercício da hegemonia política no seio da classe dominante. Caso eu mesmo tivesse aplicado esse esquema teórico na análise da hegemonia política no pós-1964, teria chegado à conclusão de que o grande capital bancário assumira, sob o regime militar, a condição de força dirigente de um sistema hegemônico que agrupava todos os segmentos monopolistas da classe capitalista. Devo mencionar que, no VIII Seminário de Estudos Latino-Americanos promovido em 1988 pela Flacso e pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o economista e cientista político Karl-Christian Götner, da Universidade de Rostock (RDA), também apontou a necessidade de se aperfeiçoar a análise dos sistemas hegemônicos complexos que habitualmente se organizam sob o Estado capitalista.
Em “A política neoliberal e o campo político conservador no Brasil atual” [6], a questão teórica mais candente é aquela relativa ao modo pelo qual certas frações da classe dominante, bem como certas classes sociais não integrantes do bloco no poder, submetem-se à hegemonia política de uma fração específica (ou de um conjunto de frações) da classe dominante. Por meio da análise da política neoliberal implementada no Brasil dos anos 1990, tento demonstrar que o programa político proposto pela fração capitalista hegemônica, bem como a política estatal que lhe corresponde, dificilmente recebe a adesão integral das frações capitalistas não hegemônicas ou de certas classes sociais (ou segmentos delas) não integrantes do bloco no poder. Em geral, o projeto político da fração capitalista hegemônica é aceito por tais frações e classes como um mal menor, e como tal é apoiado em momentos críticos da vida política nacional (como o das eleições presidenciais ou legislativas em que se confrontam dois projetos políticos radicalmente distintos). Fora desses contextos críticos, tais frações e classes podem opor certa resistência aos aspectos do projeto político hegemônico que forem considerados lesivos aos seus interesses específicos. (Na verdade, só os interesses da fração hegemônica são inteiramente contemplados pelo seu programa político e pela sua política estatal; daí a ambivalência da postura política das frações e classes que ocupam um lugar subalterno dentro do campo hegemônico.)
“Populismo e neoliberalismo” [7] aborda a questão das ideologias que contribuem – por alguma via específica – para a reprodução do modo de produção capitalista numa formação social qualquer, a partir de uma perspectiva teórica que descarta a possibilidade de tais ideologias resultarem estritamente da vontade política da classe dominante. Aborda-se aí também a estrutura jurídico-política, na sua articulação com a estrutura econômica, que cria um quadro valorativo dentro do qual devem se desenvolver as ideologias práticas, até que, no longo prazo, se formem ideologias revolucionárias capazes de romper esses limites. Assim, a análise do populismo ou de qualquer outra ideologia prática tem de começar pela delimitação dos efeitos ideológicos induzidos pelas estruturas (econômica, jurídico-política) dos modos de produção (dominante, subordinado) presentes na formação social em questão.
* * *
Não poderia encerrar esta “Introdução” sem abordar um problema que decorre não propriamente da análise política contida num texto específico, mas da justaposição, no quadro desta coletânea, de múltiplas análises políticas, produzidas em contextos diversos. Nos ensaios escritos em 1988, antes da conclusão do processo constituinte, considero estar em curso no Brasil, inclusive por meio do processo constituinte, um movimento de liberalização do Estado militar, resultante das pressões e concessões que integram o jogo político travado entre as diversas forças políticas em presença. Descarta-se, portanto, nesses textos, a possibilidade de estar ocorrendo, desde meados dos anos 1970, um processo gradual e por etapas – vale dizer, razoavelmente controlado por algum agente – de transição para a democracia no Brasil. Ora, em certos ensaios, escritos a partir de 1995, sustento que está instaurada, no Brasil dos anos 1990, uma democracia (qualificada, de resto, como uma democracia limitada). O leitor que cotejar as duas armações (liberalização do Estado militar nos anos 1980, presença de uma democracia limitada nos anos 1990) poderá se sentir legitimamente intrigado, endereçando-me a seguinte questão: como terá sido possível ocorrer, em tão breve espaço de tempo (isto é, do desenrolar do processo constituinte até o advento do primeiro governo civil escolhido diretamente pelo eleitorado), a passagem pacífica do Estado militar liberalizado à democracia limitada?
Tal questão não poderá ser eficazmente respondida por quem desconsiderar o fato de que a existência de um sistema mundial é uma realidade, e não mera figura de retórica a serviço exclusivo dos adeptos da “teoria da globalização”. Ora, registra-se, entre 1989 e 1991, uma inaudita aceleração do tempo histórico na área central do sistema mundial: desagrega-se o sistema comunista e os Estados Unidos emergem como a potência absolutamente hegemônica no plano político-militar (ainda que se intensifique, no plano econômico, a concorrência com outros dois blocos: a Europa ocidental, o Japão e os seus satélites). Essa mudança radical faz com que os Estados Unidos redefinam a sua política relativa à periferia do sistema mundial e, em especial, às suas áreas de influência. A presença política das Forças Armadas em países como o Brasil era tolerada pela potência hegemônica no contexto político anterior: malgrado o perigo representado, para os interesses econômicos e político-militares dos Estados Unidos, pelos impulsos nacionalistas dos militares do Terceiro Mundo, a militarização dos Estados periféricos era avaliada em termos de sua utilidade na contenção de uma eventual intervenção soviética a favor de movimentos de contestação locais. Uma vez encerrada a Guerra Fria, os governos estadunidenses passam a encarar a influência política dos grupos militares da periferia capitalista não só como desnecessária (já que se desvaneceu o perigo soviético), mas também como perigosa (já que subsiste um potencial nacionalista nas Forças Armadas). Essa nova postura explica certas iniciativas dos governos estadunidenses nos anos 1990: a recomendação aos países latino-americanos de que diminuam os efetivos das Forças Armadas nacionais e confiem as tarefas da defesa nacional às Forças Armadas dos Estados Unidos (fazer tal recomendação foi um dos objetivos da viagem do ex-secretário de Defesa Robert McNamara à América Latina) e o considerável incremento da presença militar estadunidense nos países da assim chamada “área do narcotráfico” (Colômbia, Equador, Peru, Bolívia). Quando se leva em conta que, no caso brasileiro, os efeitos políticos da pressão estadunidense a favor da desmilitarização das suas áreas de influência se somaram aos efeitos políticos do relativo fracasso (expresso na combinação, desde os anos 1980, dos fenômenos da inação e da estagnação econômica) da política econômica conduzida pelo regime militar, entende-se por que o declínio político do grupo militar foi tão rápido: já no primeiro mandato presidencial posterior ao processo constituinte, a legitimação do governo nacional parecia depender mais do apoio internacional (isto é, do governo dos Estados Unidos, do FMI e do Banco Mundial) que da sustentação política trazida pelo grupo militar. O declínio político das Forças Armadas brasileiras prosseguiu nos dois mandatos presidenciais seguintes. Assim se viabilizava a instauração de uma democracia cujo caráter limitado proviria não mais da posição nuclear do grupo militar no processo político global, e sim da invulgar concentração de capacidade decisória nas mãos do Executivo presidencial; concentração necessária à concretização de uma nova hegemonia no seio da classe dominante, bem como na formação social brasileira tomada em conjunto.
* * *
Para viabilizar sua republicação nesta coletânea, impus modificações a todos os textos originais. Em alguns, as modificações são de pequena monta; destinam-se apenas a converter formalmente artigos de revista ou cadernos em capítulos de livro. Noutros textos, o objetivo das modificações foi o de melhorar certas formulações, tornando-as menos obscuras. E, num único texto (“A política neoliberal e o campo político conservador no Brasil atual”), realizei uma mudança mais ampla, que consistiu em eliminar o tom excessivamente conjuntural das formulações para que o caráter invariavelmente complexo da relação entre a política neoliberal e as frações ou classes subalternas dentro do campo hegemônico – de fato, o tema central do ensaio – fosse realçado. Não promovi, entretanto, nenhuma atualização dos textos originais. Caso considerasse necessária a introdução de novas informações, não disponíveis no momento da redação de cada ensaio, bem como o levantamento de novos problemas, ainda não formulados naqueles contextos, optaria por escrever um novo livro.
Décio Saes
outubro de 2000
NOTAS
[1] Publicado originalmente em Ideias: Revista do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, ano 4, n. 1/2, jan./dez. 1997.
[2] Publicado originalmente em Sílvio Costa (org.), Concepções e formação do Estado brasileiro (São Paulo, Anita Garibaldi, 1999).
[3] Publicado originalmente em Teoria & Política, São Paulo, n. 9, 1988.
[4] Publicado originalmente em Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 6/7, 1996.
[5] Publicado originalmente nos Cadernos Primeira Versão, Campinas, n. 2, 1989, e republicado parcialmente, em Sônia Laranjeira (org.), Classes e movimentos sociais na América Latina (São Paulo, Hucitec, 1990).
[6] Publicado originalmente em Princípios, n. 40, fev./abr. 1996; e republicado em Décio Saes, Reeleição: escalada contra a democracia (São Paulo, Anita Garibaldi, 1997).
[7] Publicado, numa primeira versão, em, Evelina Dagnino (org.), Os anos 90: política e sociedade no Brasil (São Paulo, Brasiliense, 1994); e republicado, em versão algo modificada, em Direito e Cidadania,. Praia, Cabo Verde, ano I, n. 3, mar./jun. 1998.
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