O ônibus 474 e a rota da desigualdade

Em pré-venda, obra da editora sobinfluencia apresenta a “linha do inferno”, que liga a comunidade do Jacarezinho a Copacabana. Na geografia social do Rio, rota é um microcosmo da luta diária por mobilidade e dignidade. Leia um trecho. Sorteamos um exemplar

Reproduzida no blog Laboratório Filosófico
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“Vai descer, motorista!”. O grito esgoelado e de desespero, que vem do fundo da garganta, é diariamente entoado de dentro das carcaças de ferro as quais chamamos de ônibus.

Todos os dias, milhares de trabalhadores brasileiros enfrentam, enclausurados, longas e extenuantes jornadas no transporte público. Poucos e privilegiados são os que nunca experimentaram a sufocante sensação de sentirem-se espremidos em uma lata de sardinha – onde parece sempre ser possível encaixar mais um pedacinho de gente. Nas cidades onde o calor é grande – ainda mais em tempos de colapso climático – a sensação é ainda pior.

Imagine agora uma cidade como o Rio de Janeiro. Por lá, a linha 474 – Jacaré/Copacabana é conhecida como a “linha do inferno”, uma rota de ônibus que atravessa a cidade de norte a sul. De segunda a sexta, a linha cumpre seu papel silencioso de transportar a mão de obra que alimenta a “cidade maravilhosa”. Nos fins de semana, entretanto, ela se transforma em um veículo de subversão, sendo apropriada pelos moradores das periferias como sua rota de acesso à praia – um território em constante disputa.

No novo livro 474 Jacaré/Copacabana, o arquiteto Gabriel Weber transforma essa rota de ônibus em um poderoso ensaio político e arquitetônico. Ainda em pré-venda, o livro será lançado pela sobinfluencia edições.

Outras Palavras e sobinfluencia edições sortearão um exemplar de 474 Jacaré/Copacabana, de Gabriel Weber, entre quem apoia nosso jornalismo de profundidade e de perspectiva pós-capitalista. O sorteio estará aberto para inscrições até a segunda-feira do dia 1/9, às 14h. Os membros da rede Outros Quinhentos receberão o formulário de participação via e-mail no boletim enviado para quem contribui. Cadastre-se em nosso Apoia.se para ter acesso!

A obra, que é fruto de sua dissertação de mestrado defendida na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, vai além de um mero estudo sobre a cidade, é uma radiografia crua do apartheid social carioca, desafiando a ilusão de uma cidade democrática e revelando as cercas invisíveis que dividem o Rio.

Com sua escrita literária e envolvente, Weber mistura reminiscências de suas experiências na linha com reflexões e apontamentos políticos, investigando como a cidade atua como um agente de exclusão.

Leia, logo abaixo, um trecho do escrito. Boa leitura!


1. Ônibus

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde,

a alimentação, o trabalho, a moradia, o trans-

porte, o lazer, a segurança, a previdência so-

cial, a proteção à maternidade e à infância, a

assistência aos desamparados, na forma desta

Constituição. [1]

Sobre um sistema de transporte público caótico, os usuários cariocas desenvolvem práticas de sobrevivência que convém apresentar àqueles de fora. Os ônibus são parte fundamental da paisagem da cidade. Aqui o aforismo de Banham “I learned to drive in order to read Los Angeles in the original” [2] pode ser traduzido para “aprendi a pegar ônibus para entender o Rio no original”.

Os trajetos pendulares casa-trabalho-casa são caros, desconfortáveis, lotados e demorados: R$4,70 para uma viagem de 67 minutos, o quarto maior tempo do mundo [3] e a duração da leitura deste livro. Numa metrópole de frenética urbanização linear, onde a rede ferroviária encolhe desde meados do século XX e o metrô circula sobre uma gambiarra de uma linha e meia, 72% das viagens são efetuadas de ônibus. [4] Uma hegemonia construída a partir da década de 1950, sobre a substituição do sistema de bondes, finalmente erradicados no governo de Carlos Lacerda (1960-65).

A estabilidade do sistema, sacudido pela pandemia de Covid-19, é fruto do cartel sob o qual ele é organizado. “Monopolizado por um pequeno número de empresas familiares que se estabeleceram no negócio desde os inícios desse transporte na cidade”, [5] no qual quatro empresários controlam um terço dos negócios. [6]

Desses chefões, o mais célebre foi sem dúvida Jacob Barata Filho, o Rei dos Ônibus, sócio de 25 empresas – incluindo a Braso-Lisboa, que controla o 474. Uma reportagem de 1993 já denunciava os esquemas de operação do grupo: 

Dividem a cidade entre si, respaldados por um lobby poderoso na Câmara de Vereadores, na Prefeitura e na Assembleia Legislativa. […] Raramente pagam multa – e muitas vezes ainda conseguem cancelá-las. Ditam os preços das passagens, já que são eles que fornecem os principais dados usados na elaboração da planilha de custos. [7]

A contradição do transporte público começa pelo nome, uma vez que a operação atende sobretudo a interesses privados. Desenhado pelo capital em conluio com um Estado de raiz autoritária e racista, o sistema torna os passageiros e cidades em clientes, reféns de um serviço para o qual não há alternativas.

A falta de transparência das empresas e a promiscuidade entre interesses públicos e privados conduzem a aumentos tarifários não ratificados e sem melhoria aparente do serviço. Foi um aumento de R$0,20 na passagem que levou às Jornadas de Junho de 2013. 

Outras Palavras e sobinfluencia edições sortearão um exemplar de 474 Jacaré/Copacabana, de Gabriel Weber, entre quem apoia nosso jornalismo de profundidade e de perspectiva pós-capitalista. O sorteio estará aberto para inscrições até a segunda-feira do dia 1/9, às 14h. Os membros da rede Outros Quinhentos receberão o formulário de participação via e-mail no boletim enviado para quem contribui. Cadastre-se em nosso Apoia.se para ter acesso!

A paisagem pode até ser bonita, mas a jornada é desenhada para “moer (a) gente”, como diz seu Alcir, que, vestido de túnica branca, vai a caminho da praia vender esfihas. Corre na cidade o mito de que as carrocerias dos ônibus são montadas sobre chassis de caminhão da Mercedes Benz. Isso explicaria o porquê dos veículos serem tão altos e desconfortáveis.

Contíguo à entrada – mais conhecida como curralzinho – está localizado o assento do motorista. Um anteparo de acrílico, remanescente da pandemia de Covid-19, confere ao espaço a claustrofobia de um aquário, no qual o condutor fica sentado por até cinco horas contínuas de trajeto. Alguns tentam tornar o espaço menos insuportável, domesticando-o com toalhas do Flamengo que fazem de cortina, ventiladores a pilha ou capas de banco de contas, reputadas por suas propriedades fisioterapêuticas e massageadoras ao vibrarem sincopadas ao barulho do motor. Este último também serve de forno:

Ao levantar o capô, surge um compartimento conhecido como microondas ou defumador, por aquecer a comida com “notas” de óleo diesel. […] Para refrigerar a perna, colada ao motor, trabalha-se com a calça dobrada na altura do joelho. [8]

Para os condutores, as viagens são solitárias, exceto pelas horas de ponta. Nessas, painel e escadas tornam-se também assentos ou apoio aos passageiros, condicionados seja pela superlotação do veículo, seja pelo Bilhete Único [BU], cuja validade de duas horas faz com que muitos só ultrapassem as catracas ao fim do trajeto.

As roletas delimitam não apenas o curralzinho, mas também a amplitude da cidade pela barreira do pagamento. A recente duplicação dos equipamentos para agilizar a faturação e o embarque levou à perda de lugares sentados. Paralelamente, multiplicam-se as barras que impedem – ou tentam impedir – o calote. A impressão é que se entra numa gaiola. Se os tubulares superiores não impedem o tombo nos rachas entre motoristas, ao menos servem de apoio aos ganchos expositores dos ambulantes, que transformam o corredor do veículo em mercado.

Andar de ônibus pressupõe sentir o bafo. Se a completa climatização da frota foi conseguida depois de anos de reclamações e luta, a pandemia foi utilizada como argumento para que as empresas abrissem a janela e desligassem o ar-condicionado, contornando assim os sucessivos reajustes dos preços dos combustíveis. Desembarcar pingando de suor é, portanto, dado adquirido da viagem. A alternativa são os frescões: ônibus executivos administrados pelas mesmíssimas empresas do serviço convencional e cuja passagem custa até três vezes mais.

Os assentos, aparentemente equivalentes, têm significado relativo ao posicionamento dentro do veículo. À janela, tem-se a vantagem do vento e a inconveniência do telefone poder ser levado na mãozona nas paragens nos pontos e engarrafamentos. A desvantagem é a mesma das cadeiras próximas à porta traseira. Os bancos altos oferecem a possibilidade do controle daqueles que chegam.

A escolha do lugar deve ter em consideração também a hora do dia. Uma das malemolências essenciais para o passageiro é conseguir georreferenciar o trajeto, de maneira a saber de antemão quais das duas filas estará mais exposta ao calor durante o percurso, conhecimento geralmente adquirido pela rotina. A luz, se não é em forma de maçarico solar – para o qual as janelas não oferecem qualquer proteção –, é branca-necrotério à noite.

A maximização dos lucros têm consequência espacial, tanto pelas opções de acabamento e conforto do veículo quanto por sua forma de operação, visto que o número de passagens vendidas é inversamente proporcional ao espaço disponível para cada passageiro. O espaço vibra continuamente, sentindo-se sempre instável pela iminente impressão de desmonte, numa paródia da cidade percorrida.

Os assentos têm um espaldar alto e fino, respondendo aos mínimos da ergonomia. Viajando sentado nas cadeiras, a deficiência dos amortecedores do veículo faz com que toda a transmissão seja conduzida ao corpo pelo assento. Em pé, cansam-se as pernas e os braços, que devem segurar firme para manter o equilíbrio frente à lei do mais forte no trânsito, onde o ônibus é autoridade máxima.

Ônibus não se pega, se conquista. A inconstância dos horários e sumiços das linhas, já previsíveis, foram agravados desde a pandemia.

Há linha que “passar até passa, mas só quando quer”. [9] Google Maps e Moovit são aplicativos que pressupõem um espírito republicano que talvez exista em São Paulo, mas certamente não vingou no Rio de Janeiro. As longas esperas nos pontos e nas viagens motivam a articulação dos passageiros entre si em grupos de WhatsApp.

A utilidade do grupo [da linha no WhatsApp], minha amiga Lourrane me explicou, são, na verdade, várias:

1) Os usuários perguntam onde o ônibus está, e quem está nele responde – mandam localização e dá até para se programar antes de sair de casa;

2) Os passageiros informam se o ônibus está cheio, se tem lugar pra sentar, quem é o motorista;

3) Pessoas atrasadas podem implorar para o motorista ir mais devagar para dar tempo delas embarcarem – às vezes cola, pois estamos no Rio de Janeiro, né? Terra onde tudo é possível. E essa é uma função que nenhum aplicativo de mobilidade urbana oferece.

Viaja-se quase sempre com as mesmas pessoas e motoristas todos os dias. Caras conhecidas mas principalmente uniformes anunciam não verbalmente partes bem definidas do percurso. A rotina do trajeto incide sobre a leitura da cidade, sendo possível antever onde alguém irá saltar e liberar um lugar para ir sentado. 

Andar de ônibus é extenuante. Paradoxalmente, frente a rotinas de trabalho cada vez mais desregulamentadas, as viagens, seus engarrafamentos e tempos de espera convertem-se na pausa possível, momento de refúgio íntimo dentro do espaço abarrotado.


NOTAS

[1] Congresso Nacional. (2015). Emenda nº 90 de 15/09/2015 à Constituição Federal Brasileira de 1988. Grifo do autor.

[2] Banham, R. (1973). Los Angeles: The architecture of four ecologies (1976 – reimpressão). Harmondsworth: Pelican Books, p. 23.

[3] Moovit. (2022.). [Dashboard sobre dados do transporte no Brasil]. https://lookerstudio.google.com/embed/u/0/reporting/f7ab41d6-eb72-4e25-96c7-598800b1ed47/page/Phb8

[4] Motta, T. (relator). (março de 2018). Relatório Alternativo à Comissão Parlamentar de Inquérito instituída pela resolução nº 1.394/2017 CPI dos Ônibus. Rio de Janeiro: CM, p. 8.

[5] ibid., p. 28.

[6] Berta. R. & Magalhães, L. E. (17 de maio de 2013). Poucos donos, grandes negócios. O Globo, Rio, p. 10.

[7] Seara, B. & Silva, C. (8 de agosto de 1993). Os dez chefões do transporte no Rio. O Globo, Rio, p. 26.

[8] Motta Gueiros, P. (19 de julho de 2015). Condutores de alta tensão: a rotina estressante dos motoristas de ônibus do Rio. O Globo Online. https://oglobo.globo.com/rio/condutores-de-alta-tensao-rotina-estressante-dos-moto-ristas-de-onibus-do-rio-16836705.

[9] Fagundes, F. (7 de junho de 2019). “Perdi a condução, mas descobri os grupos de WhatsApp de ônibus”, usuários do transporte público se unem em grupos de WhatsApp de ônibus para trocar informações sobre horários, atrasos e riscos das viagens. The Intercept Brasil. https://theintercept.com/2019/06/06/descobri-grupos-de-whatsapp-de-onibus/


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