Militares: tudo o que ainda falta mudar
Um estudioso da caserna revisita, em detalhes, a estratégia que quase levou ao golpe há um ano. E aponta o que é preciso para dissuadir as Forças Armadas de aventuras antidemocráticas
Publicado 10/01/2024 às 18:29
Em torno do 8 de janeiro, inúmeros comentários abordaram o ataque à Praça dos Três Poderes e a relação entre o governo Lula e os chefes militares – marcada por acomodamentos perigosos. O cientista político Gilberto Maringoni escreveu um dos mais alentados. Mas merece leitura especialmente atenta a entrevista realizada pela jornalista Natália Viana, da Pública, com o historiador Francisco Teixeira, da UFRJ. Parte de uma rede de pesquisadores pouco conhecida do público, mas muito atuante, Teixeira recuperou, de forma sintética porém profunda, os acontecimentos que – frisa – estiveram a um passo de produzir ruptura institucional. E não se limita a apontar as conciliações que se seguiram: sugere um roteiro de mudanças para mitigar novos riscos de golpe. Eis alguns dos destaques da entrevista:
A estratégia dos golpistas:
O golpe foi arquitetado em duas etapas. O 8 de Janeiro era a fase insurrecional: algumas milhares de pessoas devastariam os Três Poderes e provocariam uma situação aparentemente incontrolável, que forçasse a convocação das Forças Armadas para a “garantia da lei e da ordem”. Teixeira lembra: foi o mesmo método adotado na Ucrânia em 2014, na Bolívia em 2019 e em Washington, em 2020. Mas sua origem está na “Marcha sobre Roma” de Mussolini, em 1922.
Os omissos e os ativos:
O general Gustavo Dutra, chefe do Comando Militar do Planalto, e o coronel Fernandes da Hora, comandante da Guarda Presidencial, tinham todos os meios de agir e haviam passado por experiências de controle das multidões anteriormente – mas cruzaram os braços. Ainda pior foi a atitude do então comandante do exército, general Júlio César Arruda, que posicionou os tanques na Praça dos Cristais, diante do QG de sua força, para impedir que a polícia prendesse os arruaceiros.
Anistia encomendada?
A execução do golpe teve com base um tripé: a massa principalmente de pequenos empreendedores que acampava diante dos quartéis; o governo do Distrito Federal; e, no governo central, o comando do Exército e o Gabinete de Segurança Institucional (GSI). As punições, até o momento, concentram-se apenas no primeiro grupo. O secretário de Segurança de Brasília, Anderson Torres, chegou a ser preso (hoje usa tornozeleira), mas não se sabe do andamento do processo contra ele. E a punição para os chefes do terceiro grupo é ainda mais obscura.
A transição militar que não houve:
O ministro da Defesa, Múcio Monteiro e o chefe do GSI, general Gonçalves Dias, contemporizaram com os golpistas e desenharam, para Lula, uma situação de suposta tranquilidade nos quartéis. Mas o erro vem de longe. Ao contrário de todas as outras áreas, não houve, no ministério da Defesa, processo de transição Bolsonaro-Lula. Manteve-se a caixa preta. Isso alijou a participação de um grande número de pesquisadores que têm estudado a fundo as Forças Armadas e poderiam ter sugerido mudanças fundamentais.
Os generais da legalidade:
O golpe foi evitado também pela ação de cinco generais legalistas, dos quinze presentes no Alto Comando do Exército. Foram muito expostos, em especial nas redes bolsonaristas, onde eram chamados de “melancias”. Poderiam ter assumido postos de comando no ministério da Defesa, na Abin, no GSI. Aconselhado por Múcio, Lula preteriu-os, ao menos até agora. Já na PF, destacou-se a ação corajosa do diretor-geral André Passos Rodrigues, que divergiu do comandante do exército e manteve a corporação em posição legalista.
Por um fio:
Temeu-se, nos momentos mais críticos, que a estratégia de golpe provocado levasse um comandante qualquer, mesmo em regiões remotas, a colocar a tropa na rua. Não havia, naquele momento, condições políticas de reprimir a ação com emprego de outras tropas. E o exemplo poderia desencadear um efeito-dominó, com outros levantamentos militares.
O que fazer:
Para Teixeira, 90% dos oficiais das Forças Armadas é “morista”: acredita que não houve eleição legítima e que os tribunais superiores levaram Lula à Presidência. Também para eles, Lula é um “descondenado”. Duas providências essenciais poderiam começar a inverter o quadro: a) Renovação de todos os quadros de livre nomeação nos meios militares, inclusive as adidâncias no exterior, principalmente nos Estados Unidos e na Europa Ocidental; b) Reforma dos currículos das escolas e academias militares para eliminar a ideia messiânica de tutela das forças militares sobre a República. Até o momento, nenhuma delas foi tomada.