McKenzie Wark e sua teoria encarnada

Entrelaçando linguagem, tecnologia, gênero, ficção, transição e outras fenomenologias sob uma ótica marxista, autora propõe uma leitura radical do presente. Leia um trecho da obra. Em parceria com a editora sobinfluencia, sorteamos um exemplar

Mckenzie Wark no semi-documentário “Life Story” | Fonte: Impressum Datenschutz
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Como pensar o mundo a partir das fissuras do contemporâneo? Em Tecnologia como gênero e outras fenomenologias encarnadas, a filósofa McKenzie Wark desloca o marxismo de seu panteão teórico para inscrevê-lo nas materialidades do agora.

A entrevista, originalmente publicada em 2022 pela Revista Rosa e Weirds Economies, ganha agora uma edição especial com apresentação inédita de Tom Nóbrega, fruto da parceria entre Revista Rosa, Editora Funilaria e sobinfluencia.

Outras Palavras e sobinfluencia edições sortearão um exemplar de Tecnologia como gênero e outras fenomenologias encarnadas, de McKenzie Wark, entre quem apoia nosso jornalismo de profundidade e de perspectiva pós-capitalista. O sorteio estará aberto para inscrições até a segunda-feira do dia 7/4, às 14h. Os membros da rede Outros Quinhentos receberão o formulário de participação via e-mail no boletim enviado para quem contribui. Cadastre-se em nosso Apoia.se para ter acesso!

Longe de tratar a teoria marxista como dogma, Wark a utiliza como ferramenta para desvendar as tensões dos modos de produção atuais — onde tecnologia, gênero e linguagem se entrelaçam.

Aqui, conceitos não são venerados, mas tensionados: a escrita se faz corpo, a teoria vira gesto, e os nomes do passado podem ser traídos para nomear o que ainda está por vir.

Entre mídias, ficções e transições, Wark nos convida a uma baixa teoria: menos preocupada com abstrações universais e mais atenta às dinâmicas que moldam nossa existência. Uma provocação urgente para quem deseja pensar — e fazer — o presente.

Leia, logo abaixo, um trecho da obra. Boa leitura!

Esta matéria integra uma seleção especial de sorteios do Outros Quinhentos neste mês de março. Ao longo deste período, homenagearemos figuras e temas centrais da luta pela emancipação da mulher. Não perca!


PARTE I: FATUAR, FICCIONAR E OUTRAR-SE:

TECNOLOGIAS DE INCORPORAÇÃO

Revista Rosa e Weird Economies — Em O capital está morto (Funilaria e sobinfluencia, 2022) você aborda a teoria como uma forma de literatura e enfatiza que o ato de criar uma nova linguagem pode ser vital para nos tornarmos capazes de perceber e de analisar plenamente o momento em que nos encontramos. Te propomos então uma pergunta que se desdobra em duas: estamos lendo teoria de forma errada esse tempo todo? De que modo devemos ler a teoria? 

McKenzie Wark — Olha, a gente deveria ler a teoria da mesma maneira como lemos qualquer outra coisa: de várias maneiras diferentes ao mesmo tempo. Uma dessas camadas de leitura precisa ser estética. Outra camada precisa entender a teoria como um tipo de intervenção que incide sobre o campo da linguagem propriamente dito. Então, ao invés de pensar que a gente pode pular a dimensão estética e ir direto ao conceito — existe uma espécie de idealismo nessa tendência a pensar que a teoria versa apenas sobre conceitos, e eu mesma posso incorrer nesse erro às vezes — devemos também prestar atenção à materialidade da linguagem. Não acho que seja por acidente que a maioria das obras de teoria que se tornam de alguma forma canônicas tendam a fazer coisas interessantes com a linguagem. E aqui talvez a teoria às vezes se diferencie um pouco da filosofia, onde isso [a experimentação de linguagem] parece ser opcional.

Talvez a filosofia tenha outros objetivos e responda a demandas diferentes. Mas eu acho que a teoria precisa sempre procurar maneiras de pressionar a linguagem que recebemos, já que a linguagem que recebemos é sempre repleta de ideias prontas. Parece ser necessário transformar um pouco a linguagem para que a gente possa ser capaz de pensar de forma diferente.

R.R. e W.E. — Uma das questões mais urgentes do momento, especialmente no Brasil, é como lidar com o excesso de notícias falsas veiculadas através do Facebook, do WhatsApp, do Telegram e de outras plataformas, já que as fake news foram fundamentais para que o fascismo e o discurso da extrema direita ganhassem impulso e poder político. Em uma palestra muito interessante que você deu para a Bienal de Riga, você tenta superar a distinção habitual que se faz entre ficção e fato, transformando-os em verbos — práticas de ficcionar [ficting] e de fatuar [facting] — que você entende como vitais e propõe algo muito interessante: a ideia é de que ao invés de contrapor fato e ficção, colocando a ciência em uma posição idealizada e correndo o risco de cair em ideias problemáticas a respeito da noção de verdade, deveríamos abrir um espaço para práticas de ficcionar e fatuar, que proponham formas mais complexas de entrelaçar ficções e fatos. O problema, portanto, não seria tanto como contrapor notícias falsas com notícias reais, mas como escapar de uma ficção ruim. E pode-se dizer facilmente que o Brasil de Bolsonaro é realmente uma péssima ficção, a pior piada dos últimos tempos. Portanto, já que, retomando algo que você formulou em Philosophy for Spiders, “temos todos os motivos para suspeitar que a imaginação foi colonizada pelo pai da mesmice controladora”, a pergunta é: que ficções poderíamos criar para desmontar a narrativa fascista?

M. W. — Bem, tem muita coisa aí. Não acho que existam respostas fáceis para nada disso. O que acontece com a mídia com a qual estamos lidando agora é que ela nunca foi projetada para a sociedade civil. Ela foi projetada para extrair valor. Na era do rádio e da televisão isso também acontecia, mas sua história é um pouco mais complicada. Talvez dê para traçar muitas reflexões sobre o papel que esses veículos desempenharam na construção das nações, por exemplo.

Mas quando passamos para o próximo capítulo da evolução da mídia, é como se ninguém realmente pensasse mais sobre isso [a sociedade civil]. Ou talvez essas preocupações tenham sido postas de lado. E a partir daí temos plataformas que realmente são criadas basicamente para extrair de nós um surplus de informação, nada mais.

O conteúdo não importa. O que se percebe é que certos tipos de mídia que capturam nossa atenção girando em torno de emoções como o medo, o pânico e a raiva funcionam extremamente bem. Essas são emoções que você pode conectar muito facilmente a uma espécie de “romance fascista”. De certa forma, viver dentro do fascismo é como viver dentro de um romance gigante. Isso é meio excitante, porque há sempre algo perigoso que precisa ser atacado.

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Somos colocados diante de uma série de ameaças que aparecem o tempo todo. E, é claro, vai haver heróis e vilões. É algo como uma ficção em série: a cada vez é um novo personagem que se torna uma ameaça. O que se espera de nós é

que nos agrupemos em torno do herói fascista da história. O tipo de atenção que gira em torno do aparecimento recorrente de ameaças é bastante estimulante e, por isso, muitas dessas estratégias estão sendo empregadas agora de forma bastante intencional.

A pergunta colocada pela teoria é: como sair desse romance gigante? Ou, caso isso não seja possível, como criar um romance de um gênero mais interessante?

Podemos pensar um pouco contraintuitivamente: talvez o problema com notícias falsas não esteja apenas no nível dos fatos. A questão é que por vezes os fatos não estão completamente errados quando se trata de notícias falsas. O ponto é que as notícias falsas são enviesadas, ressaltam alguns elementos em detrimento de outros. Cabe ainda lembrar que muitas vezes a mídia burguesa liberal que supostamente seria melhor também está repleta de fatos questionáveis. Não é como se você pudesse reivindicar um mandato legal para estar completamente do lado dos anjos nessa coisa toda. Vale a pena prestar atenção a esta pergunta: será que poderíamos estar dentro de um romance diferente? Será que pode haver

formas diferentes de ficcionar? E isso pode ser desafiador em um momento em que é difícil sustentar que pode haver mesmo futuros diante de nós, não importa de que tipo forem.

E é assim que a ideia do retorno ao passado, que é outro elemento da estrutura narrativa do fascismo, consegue seu apelo, torna-se algo desejável. É algo como: “oh, isso aqui está horrível. Mas olha, esses caras nos prometeram voltar a algo que era melhor, a única coisa que precisamos fazer é exterminar outras raças e outros gêneros e toda essa história de alteridade. Vamos voltar a, sei lá, alguma espécie de Nirvana”. Então, sim, como criar ficções melhores? Eu não sou artista. Não sei como fazer isso, mas isso parece ser parte do desafio.

R.R. e W.E. — É interessante a maneira como você se refere à possibilidade de uma ficção que esteja intimamente relacionada à ideia de futuro, ao invés de evocar um retorno ligado a alguma espécie de nostalgia. Agora vamos partir de alguns elementos que estamos discutindo de forma mais geral e tentar conectá-los a uma dimensão mais pessoal, ligada a noções de identidade. No livro que você escreveu sobre a Kathy Acker, Philosophy for Spiders, ao invés de se referir a uma única autora, você se refere a uma teia de Ackers múltiplas, divergentes. Nessa teia, o ato de outrar-se [selfing] aparece como outra prática vital ligada à ideia de ficção. Você poderia descrever algumas das estratégias que alguém poderia empregar para outrar-se, seja como escritores ou como artistas, em meio a um contexto em que a internet e a mídia, como estamos vendo agora, estão tão conectadas a noções de identidade? Em que nossos perfis em diferentes plataformas se articulam constantemente, conectando contas de e-mail, cartões de crédito, números de telefone, plataformas de entretenimento, redes sociais, etc.?

M. W. — Um escritor que me é muito querido, e que eu só posso ler através de traduções, é o Fernando Pessoa. O Livro do desassossego (Todavia, 2023) exerceu uma influência extremamente forte sobre mim. E essa influência está ligada à história dos heterônimos de Pessoa. Sua poesia eu não conheço tão bem, mas me conecto com essa ideia de construir várias personas, bastante completas, cada qual com seu ponto de vista estético autossuficiente. Me parece que o Livro do desassossego, ainda que seja a princípio um livro de Bernardo Soares, envolve vários heterônimos diferentes, segundo alguns estudiosos. Eu não sou uma estudiosa de Pessoa, talvez outras pessoas soubessem falar sobre isso melhor do que eu. De qualquer forma, para além do fato de eu amar sua escrita em prosa, fiquei impactada com essa ideia: “o que acontece se você deixar completamente de lado a impressão de que a subjetividade do escritor deve se circunscreve a algum tipo de arco coerente?”

Para alguns escritores a ideia de um arco subjetivo coerente pode ser mais interessante do que para outros, mas certamente Kathy Acker não estava muito interessada nessa coerência. Ela permite que situações, experiências, sensações e a formação de conceitos arrastem a subjetividade para diferentes órbitas. Não se trata de heterônimos, como no caso de Pessoa, nem de esquizofrenia no sen-

tido deleuziano: as personas de Acker variam, ao invés de se diferenciar radicalmente umas das outras. Pensar que, um pouco como Pessoa, Kathy Acker criava diferentes versões do “eu” que por vezes poderiam se conectar, me ajudou muito enquanto estava escrevendo sobre seu trabalho.

E aí o que notamos é que ela por vezes muda [de persona] no meio de uma frase, no meio de um texto. Dá para dizer que ela como que evolui para além de Pessoa, que criou identidades separadas que escreviam separadamente. Aqui [na obra de Acker] você está no meio de uma frase, e de repente: “oh, espera aí!”. Não apenas a prosa se tornou outra coisa, mas a autora talvez tenha se tornado outra pessoa, e você se dá conta disso perfeitamente enquanto está lendo. Esse me pareceu um conjunto interessante de experimentos, que abre muitas questões. Porque eu e Kathy somos da mesma era. Não acreditávamos em identidade de forma alguma. Como a identidade é criada? Até que ponto ela é uma construção? Essas questões nos parecem mais interessantes do que tomar a subjetividade como pressuposto e escrever a partir desse ponto de vista.

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