Futebol para além de suas quatro linhas

Obra do Selo Manjuba resgata histórias de atletas que desafiaram regimes autoritários e defenderam a justiça social. O volume revisita a luta de jogadores como Sócrates e Afonsinho contra a opressão política e no esporte. Sorteamos um exemplar. Leia um trecho

Trecho do filme “Democracia em Preto e Branco”/Reprodução
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O futebol além de existir fora das quatro linhas do campo, também precisa e pode ser terreno de disputa e manifestação política. Muitos são os exemplos disso ao longo da história.

O jornalista espanhol Quique Peinado resgata, de maneira magistral, esses registros de um futebol insurgente em Futebol à Esquerda.

Lançado no Brasil em 2017 pela Mundaréu e agora reeditado pelo Selo Manjuba, o volume reúne relatos de atletas que se comprometeram com causas sociais e políticas.

Outras Palavras e Selo Manjuba irão sortear um exemplar de Futebol à Esquerda, de Quique Peinado, entre quem apoia nosso jornalismo de profundidade e de perspectiva pós-capitalista. O sorteio estará aberto para inscrições até a segunda-feira do dia 9/12, às 14h. Os membros da rede Outros Quinhentos receberão o formulário de participação via e-mail no boletim enviado para quem contribui. Cadastre-se em nosso Apoia.se para ter acesso!

Na obra, figuram histórias de homens que, para além de suas habilidades com a bola, se destacaram pela coragem de lutar contra regimes autoritários, discriminação e pela busca incessante por justiça no esporte.

Entre as páginas, encontramos desde jogadores que fugiram da Guerra Civil Espanhola, até aqueles que se opuseram a ditaduras na América Latina.

Personalidades como Sócrates e Afonsinho, figuras emblemáticas que usaram sua visibilidade para defender a democracia e os direitos dos jogadores, são celebradas no escrito.

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Além disso, o livro revive a atuação de atletas em movimentos sociais, o enfrentamento ao autoritarismo dos técnicos e a luta por melhores condições para os profissionais do futebol.

Por meio do Selo Manjuba a Editora Mundaréu lançou uma nova edição, com um belo posfácio de Milly Lacombe, uma das pioneiras da atuação feminina no jornalismo esportivo televisivo, além de apresentação de Celso Unzelte, jornalista, pesquisador e comentarista esportivo.

Leia, logo abaixo, um trecho da obra. Boa leitura!


[O trecho abaixo está no capítulo Amor, desamor e política à italiana, na seção “Tem jogador que compra Ferraris. Eu comprei a camisa do Livorno”]

[…]

Cristiano tem tatuado no antebraço esquerdo o logo das Brigate Autonome Livornesi, os ultras mais vermelhos do país, pelos quais seu coração se inclina. Decide jogar com o número 99, ano de fundação desse grupo. O rapaz que ficava zangado porque seus amigos do bairro eram dos times grandes de outras cidades, o adolescente admirador de Che Guevara que ia à curva do Armando Picchi sofrer por uma equipe modesta e infeliz, tem a oportunidade de levar seu amor mais verdadeiro, aquele que a gente nunca troca na vida, à Série A. Quando crescemos, enterramos nossa inocência em dinheiro e obrigações. No fundo, Cristiano Lucarelli vingou todos nós.

“Voltar ao Livorno não era uma questão econômica. Era uma questão de princípios”, diz o atacante. Desde que os fenícios inventaram o dinheiro, fazer uma afirmação como essa só é crível se você abre mão da grana. Na temporada 2003–04, quando joga no Livorno (embora seu contrato pertença ao Torino), reduz seu salário para que a entidade amaranto possa assumir seu custo. Ao terminar aquela campanha, na qual o Livorno consegue subir para a Série A com 29 gols de Lucarelli em 43 partidas, o Torino oferece um pouco mais de 2 milhões de euros ao clube livornês pela recompra de seus direitos, e oferece ao jogador um contrato de vários anos que lhe garante mais de meio milhão de euros por temporada (os italianos, como os espanhóis, continuam sem se acostumar à moeda comum europeia e ainda traduzem os valores em liras, ou seja, nada menos do que 1 bilhão nos termos da sua antiga moeda). O acordo asseguraria seu futuro financeiro e o de seus filhos. Esse bilhão de liras, o que na Itália chamam de miliardo, é o que Cristiano Lucarelli recusa para poder continuar jogando no lugar a que sua alma pertence. “Irracionalmente”, comenta o grande perdedor dessa história, Carlo Pallavicino, o agente que lhe prometeu que nunca iria ceder aos seus sonhos infantis e o faria ganhar todo o dinheiro que merecesse. Não conseguiu cumprir isso. Em contrapartida, escreveu Tenetevi il Miliardo (Fiquem com os bilhões, 2004), a história de amor entre Lucarelli e o Livorno naquelas duas primeiras temporadas de loucura apaixonada. Nesse livro, há uma frase que ficará para sempre: “Tem jogador que compra Ferraris ou iates. Eu comprei a camisa do Livorno”. “Vi jogadores que sentiam a camisa da equipe da sua cidade. Mas nada como Cristiano Lucarelli. Abriu mão de seu presente e talvez do seu futuro para poder vestir a camisa do Livorno Calcio”, reconhece o agente Carlo Pallavicino.

É difícil explicar o que tem o Livorno, como é difícil explicar o que têm essas cidades das quais sentimos fazer parte. Se esse sentimento não existisse, todos moraríamos em Nova York. Livorno, articulada em volta do porto e deliberadamente debruçada sobre o mar, é a mãe da vida do livornês, que pode ser resumida em uma frase muito utilizada ali: você pode estar em Paris ou em São Francisco, curtir todas as coisas maravilhosas que elas têm, mas sempre se sentirá um infeliz porque não está em Livorno. Dessa equação é difícil excluir o elemento de ser de esquerda. Quando visitei a cidade, fui ao Armando Picchi ver um jogo. Fui acompanhado por meu cicerone local, Roberto Filippi, um livornês, designer e editor do cristianolucarelli.com, que para sua infelicidade mora em Londres por questões de trabalho (na realidade, é um neurolinguista apaixonado por futebol). O adversário do Livorno era o Genoa, e perguntei a meu acompanhante que ideologia tinham os torcedores da equipe, que estavam na curva oposta à das Brigate. “São fascistas.” Olhei para ele com estranhamento, pois não vinham com nenhum símbolo que apoiasse uma afirmação tão taxativa. Olhou-me, sorriu e ironizou: “É fácil: todos que não são de Livorno são fascistas”.

Outras Palavras e Selo Manjuba irão sortear um exemplar de Futebol à Esquerda, de Quique Peinado, entre quem apoia nosso jornalismo de profundidade e de perspectiva pós-capitalista. O sorteio estará aberto para inscrições até a segunda-feira do dia 9/12, às 14h. Os membros da rede Outros Quinhentos receberão o formulário de participação via e-mail no boletim enviado para quem contribui. Cadastre-se em nosso Apoia.se para ter acesso!

As quatro temporadas que Cristiano jogou no Livorno Calcio foram as de maior sucesso na vida do clube e as mais plenas da existência do atacante. A apresentação do elenco em um centro comercial da cidade quando da chegada de Lucarelli reuniu milhares de pessoas. Na hora em que Cristiano pegou o microfone para dizer que usaria nas costas o número 99 em homenagem às Brigate Autonome Livornesi, houve tumulto. Dezenas de ultras com fogos-de-bengala irromperam em cena, numa imagem caótica que teria significado um escândalo em qualquer equipe. Menos nesse clube e nesse lugar do mundo. A atmosfera, simplesmente irreal, converteu aquele momento em um instante anárquico no qual quem mais sorria era o atacante gigante, que parecia ter sonhado sempre com aquele instante no meio dos ultras, pulando e gritando com eles. Cristiano Lucarelli inaugurava uma etapa de caos apaixonado e de sucesso esportivo em que sua comunhão político-futebolística com a torcida foi maravilhosa.

Em sua primeira temporada, de 2003–04, ainda cedido pelo Torino, o Livorno sobe para a Série A no campo do Piacenza. Lucarelli (no final, vice-artilheiro da campanha com 29 gols; só será superado por Luca Toni, do Palermo) marca o gol definitivo, tira a camisa, coloca-a no chão e faz amor com ela. Quando a equipe volta a Livorno, às quatro da manhã, 10 mil torcedores os aguardam no campo. Cristiano é o primeiro a entrar no gramado, enlouquecido, como uma criança, e não para de festejar. Sua alegria não é como a dos demais: para ele é um grande triunfo esportivo, mas, no final das contas, ele já jogou na Série A. Simplesmente acabava de conseguir algo muito maior: levar o time de seus sonhos à Primeira Divisão, coisa que em sua história de torcedor sofredor jamais havia visto. Nem ele, nem o homem por quem Cristiano deu cada passo: seu pai. O Livorno Calcio fora rebaixado da Série A em 1949 e só voltaria a ela 55 anos depois. Três anos após aquele rebaixamento, don Maurizio Lucarelli via pela primeira vez um jogo do Livorno na arquibancada do Armando Picchi, e o vírus de torcer pelo Livorno foi-lhe inoculado. A equipe já sofria na Série C.

A campanha 2004–05 será a da reestreia do Livorno Calcio na Série A, da chegada das hordas vermelhas aos grandes campos. Na arquibancada de seu estádio aparece um cartaz: “Fuja Silvio [Berlusconi, já primeiro-ministro e presidente do Milan], chegaram os livorneses”. Já com Lucarelli como propriedade, o calendário quis que a primeira partida do batalhão amaranto fosse justamente em San Siro diante do Milan, o time do poder. Ali compareceram nada menos que 10 mil torcedores livorneses, 4 mil deles ataviados com uma bandana na cabeça, que tornou célebre a imagem mais farrista e amoral do primeiro-ministro. Clarence Seedorf marcou, mas Lucarelli empatou de pênalti, depois de uma ação que deixara o Milan com dez. No entanto, Seedorf voltaria a colocar o placar em 2 a 1, ao que o 99 respondeu de novo, com um magnífico gol de falta. Na celebração, Cristiano levanta o punho em direção à torcida e beija o antebraço onde tem tatuado o escudo dos ultras. Empate em dois gols no final. O delírio dos livorneses era apenas o prelúdio de três anos de glória ininterrupta.

Dizem os livorneses que “em Livorno, o futebol, a política e a vida são tudo uma coisa só”. Lucarelli irá se converter na bandeira desse lema. Cada gol é uma corrida até a curva, onde em cada jogo há cartazes com denúncias da demissão de trabalhadores de uma fábrica ou pedindo a libertação de algum ativista detido, e o 99 sabe que uma celebração de gol com eles é uma foto para a causa. Em uma das ocasiões, depois de várias arbitragens suspeitas, contrárias ao Livorno, declara: “Querem que a gente caia porque veem muitas bandeiras de Che Guevara na nossa torcida. Já fizeram isso antes com outras equipes”. Temor infundado: com Lucarelli vestindo a 99, tudo serão sucessos para o Livorno.

Enquanto recusa ofertas milionárias da Rússia, Cristiano realiza outro sonho: é o protagonista do Livorno Calcio. Em três anos na Série A, seus números são impressionantes: 72 gols (para um total de 101 nas quatro campanhas), a manutenção com muita folga na Série A (incluindo o momento mais importante da história do clube: a participação na Copa da Uefa em 2006–07, com cinco gols de Lucarelli em sete jogos, e um tento histórico, o da cabeçada do goleiro Marco Amelia contra o Partizan de Belgrado para passar às dezesseis avos de final, quando caiu diante do Espanyol do técnico Valverde, que na sequência seria vice-campeão da competição) e, principalmente, a injeção de orgulho, a maior que a cidade de Livorno já recebera. Na curva, um cartaz: “Vocês podem nos tirar tudo, menos Lucarelli”. Por fim, a torcida podia contar com algo que todos queriam e que se mantinha de amaranto por pura lealdade de classe.

Por que terminou, então? Porque tanta paixão acaba explodindo. Lucarelli viu-se devorado por Livorno e pelos livorneses e se converteu em um símbolo que não conseguiu sustentar. Ninguém poderia. Conta-se em seu entorno que toda manhã ele encontrava em sua porta um punhado de pessoas, trabalhadores como ele, que lhe pediam dinheiro. “Para pagar o gás”, “para comprar roupa para as crianças”. Cristiano, consciência de classe ou consciência apenas, abria a carteira e lhes dava 50, 100 euros, o que tivesse. “O que é esse dinheiro para você?”, diziam, e o 99, sentindo-se quase culpado, soltava a grana. E assim num dia, e no outro também. O boato de que havia um Robin Hood que arrematava o balão na cidade se espalhava. E Cristiano cada vez estava mais triste e agoniado.

Aconselharam-no a parar de fazer aquilo. Que não era possível. Sua secretária dizia isso, fazendo o papel meio de amiga, meio de mãe. Quando disse “não”, o ídolo caiu. Começou a dizer não a algumas coisas pelas quais nenhum outro jogador do elenco diria sim. Mas era Cristiano. Não era apenas um jogador. E as pessoas, como em toda cidade pequena, passaram a acusá-lo, e as críticas afetavam ele e a família. “Ele se acha o quê?”, “Ele mudou.” A situação chegou a tal ponto que o próprio Lucarelli admite que, quando terminava de treinar, ia até o escritório da Unicoop fazer trabalho burocrático, só para não ficar em casa e ter que recusar ajuda aos vizinhos.

Com uma situação virtualmente insuportável, chegou o dia 15 de abril de 2007. Partida contra a Reggina, na qual joga seu irmão Alessandro. Às duas equipes interessa o empate e isso se nota no campo. Os ultras do Livorno acham isso inaceitável. As relações com Lucarelli já andavam conturbadas e eles decidem fazê-lo pagar por isso. Começam a vaiá-lo como se fosse um fascista de Milão e vem da torcida o pior insulto que você pode fazer a um italiano: “mafioso”. Os torcedores deixam a arquibancada durante o jogo e o esperam na saída. Para xingá-lo, ele, o irmão, a família. Cristiano explode. “Essa bronca rompe o cordão umbilical que me une a Livorno. Vou defender essa camisa e meus amigos até o final desta temporada, depois vou embora.” Se o fato de dizer não a algumas coisas estava condenando-o, agora iria dizer sim àquilo que tantas vezes havia recusado: o dinheiro. O Shakhtar Donetsk paga 9 milhões de euros ao Livorno e lhe oferece um contrato por três temporadas, 3 milhões em cada uma, além da oportunidade de disputar a Champions League, sonho de qualquer jogador. Por causa daquela bronca dada aos Lucarelli, Maurizio, o pai, para de frequentar o Estádio Armando Picchi depois de mais cinquenta anos de fidelidade ininterrupta. O Livorno, cujo campo leva o nome de alguém que jogou na equipe só até os 24 anos e que é uma lenda na Inter, o Livorno, que de fato tem bem poucos emblemas, transferia o homem que mais gloriosamente defendeu sua camisa. E os ultras escorraçavam com insultos um dos seus. O único jogador que era um dos seus de verdade.

[…]


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