Clitóris, entre o silenciamento e o prazer

Filósofa francesa Catherine Malabou examina o apagamento histórico desse órgão. Obra da autora, lançada pela editora Ubu, o ressignifica, ligando-o não só ao prazer, mas à reflexão filosófica que por séculos foi incapaz de encontrá-lo. Leia um trecho. Sorteamos dois exemplares

Frame do curta “Le clitoris” (O Clitóris), de Lori Malépart-Traversy [2016] | Disponível em dafilms.com
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O único órgão destinado exclusivamente ao prazer foi sistematicamente ignorado em diversas representações culturais e científicas. Esteve por anos praticamente ausente até dos debates sobre sexualidade e anatomia.

Estou falando dele, o polêmico e muitas vezes incompreendido clitóris. As ausências falam, e no caso desse não tão pequenino órgão escancaram as limitações e as distorções de um sistema de pensamento que priorizou a normatização e a rigidez binária entre os sexos.

Com instigante argúcia, a filósofa francesa Catherine Malabou busca cutucar essa fenda histórica. Seu novo livro: O prazer censurado – Clitóris e pensamento, lançado no Brasil pela Ubu Editora, apresenta uma investigação sobre o clitóris, não apenas como um órgão ligado ao prazer, mas como um símbolo do que foi apagado das narrativas hegemônicas sobre o corpo.

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Malabou propõe uma reflexão que transcende o campo da biologia, enquadrando o clitóris como um objeto de pensamento, capaz de questionar e ressignificar divisões rígidas entre masculino e feminino.

Como aponta a autora, o apagamento sistemático desse órgão não é um fenômeno recente. Ao contrário, sua invisibilidade tem raízes profundas nas tradições ocidentais, onde o corpo feminino foi frequentemente negligenciado, e o prazer associado ao clitóris perseguido, estigmatizado e subestimado.

Em sua análise, Malabou aborda o clitóris à luz das questões queer, intersex e trans, posicionando-se criticamente frente à práticas como a mutilação genital e à normatização do sexo. O pensamento da filósofa, nesse sentido, desafia as convenções que moldam a compreensão corrente acerca do corpo.

Com isso, sua obra delineia uma nova perspectiva, onde o clitóris é visto não só como um local de prazer, mas como um ponto central de reflexão sobre a nossa concepção de identidade e sexualidade.

Leia, logo abaixo, um trecho da obra. Boa leitura!

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  1. APAGAMENTOS


O clitóris é uma pedrinha minúscula alojada no fundo do sapato do imaginário sexual. Na mitologia grega, dizia-se que a jovem Clitóris, conhecida por sua figura esbelta, era pequena “como um seixo”. Por muito tempo escondido, desprovido de nome ou representação artística, ausente dos tratados de medicina, não raro ignorado pelas próprias mulheres, o clitóris teve ao longo dos séculos uma existência de scrupulus, na acepção original do termo, ou seja, a pedrinha no sapato que incomoda o passeio e atormenta o espírito. [1] A etimologia hesitante do termo permite situar sua morfologia entre a “colina” (kleitoris) e o “fecho” (kleidos). Clitóris: esse pequeno segredo intumescido que persiste, resiste, incomoda a consciência e fere o calcanhar é um órgão, o único, que serve apenas para o prazer logo, “para nada”. O nada de tudo, o imenso nada, o tudo ou nada do gozo feminino.

O primeiro uso anatômico da palavra se deve a Rufo de Éfeso, médico grego que viveu entre o século I e II EC e que brinca de esconde-esconde com seus sinônimos: “A ninfa ou murta é o pedacinho de carne musculosa que pende no meio [da fenda], outros a chamam de hipoderme, outros de clitóris, e se diz clitorizar para expressar o toque lascivo dessa parte”. [2] Em 1561, Gabrielle Falloppio, que emprestou seu nome às famosas trompas, alegou tê-lo descoberto. Em francês, o termo aparece em 1575 sob a pena de Ambroise Paré, que o grafa cleitoris e em 1587 o suprime misteriosamente de suas Œuvres. [3] Mal foi impresso e já foi censurado.

Corta para o século XXI. Uma ginecologista explica a uma atordoada plateia masculina como o clitóris se comporta durante o amor ao entrar em contato com pênis, dildos, dedos, línguas, como se movimenta, como fica durante a penetração ou a carícia. [4] Cúmplice da vagina, sua parceira. Mas também pode gozar sozinho. Animado por uma dupla orientação erótica. Vaivém, quando acompanha os movimentos da vagina penetrada. Endurecimento, quando se erige como uma crista. Às vezes os dois juntos. Às vezes um sem o outro. Sem optar por um ou outro, o clitóris desorienta as dicotomias.

Essa vida dupla, que já questiona a norma da heterossexualidade, também passou despercebida por séculos. As primeiras formas de reconhecimento do clitóris serviram apenas para reiterar a ignorância a respeito dele, equiparando-o ao pênis. É muito conhecida a teoria da menina-moleque [fille-garçon manqué, em francês, tomboy, em inglês, ou maria-rapaz, em português de Portugal], de Freud, para quem o sexo feminino tem a forma de uma ausência. Cicatriz de uma castração, o clitóris é o pênis atrofiado das mulheres. Freud ainda é, à sua maneira, prisioneiro do modelo unissexo. Em uma tese audaciosa, Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud, [5] Thomas W. Laqueur mostrou que, da Antiguidade até o século XVIII, impôs-se a visão do sexo único, segundo a qual as diferenças anatômicas entre homens e mulheres seriam insignificantes. Acreditava-se que havia um único sexo: os órgãos sexuais femininos se encontravam no interior do corpo, os do homem, no exterior. Mais tarde, a descoberta anatômica do clitóris não será suficiente para aposentar por completo esse esquema.

Daí também a construção fantasmática da lésbica, homem invertido, radicalmente demolida por Simone de Beauvoir. [6]

Ao mesmo tempo, ainda que tido por pênis estropiado, o clitóris sempre foi associado a um gozo excessivo. Inapto para a reprodução. Censurado mas lúbrico. Diz uma lenda que certas górgones, dotadas de um clitóris volumoso, eram condenadas à eterna masturbação. A ablação do clitóris, a clitoridectomia, aliás, surgiu como meio terapêutico para castrar a mulher uma segunda vez, acalmando seus ardores. Solução radical para a infinitude do prazer.

A excisão está presente em todas as culturas e não só na África, como geralmente se acredita. No Ocidente, foi praticada como terapia para histéricas e ninfomaníacas. Há diversas formas de seccionar o clitóris. A física, sem dúvida. Mas também existe uma gama extensa de excisões psíquicas. A legendária frigidez, contraponto da ninfomania, é uma delas. Ausência, ablação, mutilação, negação. Pode o clitóris existir nas mentalidades, nos corpos, nos inconscientes, de outra forma que não em negativo?

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As pessoas dirão que as coisas evoluíram. É verdade. A existência do clitóris, anatômica, simbólica, política, é hoje reivindicada a partir de diversas perspectivas, culturas, práticas, gestos militantes e performativos. “É preciso fazer a revolução do clitóris!”, afirma Nadya Tolokonnikova, do grupo Pussy Riot (“Rebelião da Boceta”, ao pé da letra).

Nos últimos tempos foram publicados livros que felizmente se rebelam contra a invisibilidade do clitóris. [7] Toda uma nova geografia de prazer, estética e ética, se afirma e se estende muito além da matriz heterossexual, podendo ser resumida em quatro palavras: “para além da penetração”. [8]

Também no âmbito do feminismo as peças se moveram. O discurso passou por uma transformação radical, do feminismo da segunda geração e depois da terceira até o transfeminismo ultracontemporâneo. Não se trata mais, ou não mais apenas, de designar o clitóris como marca exclusiva da mulher. Abordagens queer, intersexuais, trans… o clitóris passou a ser o nome de um dispositivo libidinal que não pertence necessariamente às mulheres e desorganiza a visão tradicional da sexualidade, do prazer e dos gêneros. Outras cirurgias, outros imaginários. Doravante, exclama Paul B. Preciado, podemos, todo mundo pode, sem modelo exclusivo nem universal, ter “um clitóris no meio do plexo solar”. [9]

No entanto.

[…]


NOTAS

[1] Na França, foi preciso esperar até 2019 para que “cinco manuais escolares do segundo grau passem a representar a anatomia completa do clitóris” (Marlène Thomas, Libération, 4 out. 2019).

[2] Rufo de Éfeso, Du Nom des parties du corps humain [séc. I EC]. Paris: Daremberg-Ruelle, 1879, p. 147.

[3] Ver Michèle Clément, “De l’Anachronisme et du clitoris”. Le Français préclassique, n. 3. Paris: Champion, 2011, pp. 27–45. Ver também Christian Boudignon, “Vous Parlez Grec et vous ne le saviez pas”. Connaissance hellénique, n. 28, 7 jul. 2014.

[4] Odile Buisson, “Le Point G et l’orgasme féminin”, série Les Ernest, 7 jun. 2014. Disponível em: dailymotion.com/video/x1ytz7h. Conferência extraordinária na qual a existência do misterioso “ponto G” é questionada.

[5] Thomas W. Laqueur, Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud, trad. Vera Whately. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2001.

[6] Ver Simone de Beauvoir, O segundo sexo, trad. Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2020, v. 2, parte 1, cap. IV: “A lésbica”. Ver também Valerie Traub, que afirma: “Desde o advento da psicanálise, o clitóris e a ‘lésbica’ foram mutuamente implicados, como irmãos na vergonha: sendo um o sinal perturbador que indica a existência da outra” (“The Psychomorphology of the Clitoris”. GLQ: A Journal of Lesbian and Gay Studies, n. 2, 1995, p. 82).

[7] Por exemplo, Delphine Gardey, Politique du clitoris (Paris: Textuel, 2019); Camille Froidevaux-Metterie, Le Corps des femmes: la Bastille de l’intime (Paris: Philosophie Magazine Éditeur, 2018); Maïté Mazaurette e Damien Mascret, La Revanche du clitoris (Paris: La Musardine, 2016); os artigos de Michèle Clément, “De l’Anatomisme et du clitoris” (Le Français préclassique, n. 3. Paris: Champion, 2011) e de Sylvie Chaperon, “Le Trône des plaisirs e des voluptés: anatomie politique du clitoris, de l’Antiquité à la fin du xixe siècle” (Cahiers d’Histoire – Revue d’Histoire Critique, n. 118, 2012).

[8] Martin Page, Au-delà de la Pénétration. Paris: Le Nouvel Attila, 2020.


SOBRE A AUTORA

Catherine Malabou nasceu em Sidi Bel Abbès, na Argélia, em 1959. Graduou-se em filosofia na Universidade de Paris–Sorbonne, na França. Em 1989, fez parte da Comissão de Filosofia e Epistemologia do Ministério da Educação da França, que elaborou um relatório sobre os métodos de ensino da filosofia no ensino básico e superior. Concluiu o doutorado em filosofia na École des Hautes Études en Sciences Sociales sob orientação de Jacques Derrida em 1994. De 1995 a 2011, foi professora assistente de filosofia na Universidade de Paris–Nanterre e em 2011 passou a atuar também no Centro de Pesquisa em Filosofia Europeia Moderna (CRMEP) na Kingston University London, no Reino Unido. Em 2016, ingressou nos departamentos de Literatura Comparada e Línguas e Estudos Europeus na Universidade da Califórnia em Irvine, nos Estados Unidos, tendo atuado anteriormente como professora visitante em outras instituições acadêmicas nos Estados Unidos, entre elas a Universidade da Califórnia em Berkeley, The New School, Universidade do Estado de Nova York em Buffalo, Universidade de Wisconsin em Madison, Universidade da Califórnia em Los Angeles e Universidade Johns Hopkins. Desde 2017, é professora de filosofia na European Graduate School (EGS).


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