Uma voz singrando as águas

Filme de Letícia Simões, no Festival Mulheres no Cinema, hipnotiza ao narrar as memórias de um escritor da Ilha de Marajó e seu amor particular

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Por Inês Castilho


O Chalé é uma ilha batida de vento e chuva, da carioca Letícia Simões – um dos seis filmes da mostra competitiva nacional do Festival Internacional de Mulheres no Cinema (FIM), que acontece em São Paulo até dia 11 – me cativou com seu afeto, ritmo, delicadeza.
“O título vem de um capítulo do primeiro livro de Dalcídio, Chove nos Campos de Cachoeira, em que ele narra a enchente que acometeu sua casa, o chalé, levando com as águas suas memórias e as parcas roupas” – explica Letícia sobre o título perturbador que escolheu para seu filme.
O Chalé narra cartas de Dalcídio Jurandir (1909-1979), escritor nascido na Ilha de Marajó com 11 livros publicados, amados na Amazônia mas pouco conhecidos por aqui. Em 1939, recém-saído da prisão por protestar contra a ditadura Vargas, aceita o único emprego que lhe aparece: o de inspetor das escolas da maior ilha fluvio-marítima do mundo. São as cartas que escreve à mulher amada, Guiomarina, e ao filho de 9 meses, Alfredo, que Letícia Simões narra nesse filme.

O que vemos são poças trêmulas de luz resplandescente no negrume de águas sem começo nem fim, enquanto o cotidiano da vida se desenrola nos barcos, nas escolas, na roça, nas praças. Imagens se sucedem enquanto a voz encarnada de Letícia lê as cartas de Dalcício, numa entonação que flutua no balanço das águas, territórios e rostos que a imagem vai revelando – “sem uma devorar a outra”, como disse Letícia em rápida conversa depois da projeção.
O olhar vai em busca do que há de permanente, e é como se acompanhássemos agora Dalcídio em sua viagem. Assim ficamos sabendo como ele detestava aquele emprego, em que era constantemente convidado a mentir sobre os parcos recursos das escolas visitadas, sobre o salário minguado que mal dava pros gastos – e contudo resistia seu encantamento e amor pela vida e por aquele povo. Ficamos sabendo sobretudo do profundo, delicado afeto que devota a Guiomarina e Alfredo. Esse o presente maior deste filme: o amor de um homem sábio e gentil por uma mulher de dedos ágeis, olhos profundos, juntos em sua luta pela vida.
Letícia Simões estudou cinema na PUC-Rio e na Academia de Artes de Londres. Está em montagem de novo filme, mais um em sua já extensa filmografia: além do Chalé (2018), realizou Manual (2016), Tudo vai ficar da cor que você quiser (2014), A geografia é algum lugar entre o coração e aquilo que já foi (2013) e Bruta aventura em versos (2011). É ainda escritora com vários livros publicados.

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4 comentários para "Uma voz singrando as águas"

  1. Inês Castilho disse:

    Agradeço seu comentário, André, assim como o do Rogério, pouco antes de você. Já corrigi o texto, abraços!

  2. andré disse:

    desculpe o comentário, mas dalcidio jurandir é escritor esquecido só se for no sudeste.Na região amazônica ele é conhecido e reconhecido como um dos nossos maiores literários…

  3. Inês Castilho disse:

    Olá Rogério, agradeço sua correção, falei como se só o Sudeste existisse. Grata também pelas contribuições sobre estudantes da obra de Dalcídio Jurandir. Veja o filme quando tiver oportunidade, vai gostar muito. Forte abraço! inês

  4. Olá Inês, sempre que posso leio as suas contribubuições no site . Permita-me discordar com relação ao fato de você avaliar que o Dalcídio é um escritor esquecido. Talvez isso ocorra nos principais centros produtores irradiadores do conhecimento do país. Mas, mesmo nele, a exemplo do trabalho do professor Willie Bolle/USP vai de encontro à sua interpretação. Na capital de origem do autor em foco no filme de Simões, há vários coletivos de diferentes campos que se inquietam com a significativa contribuição de Jurandir…Fraterno abraço

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