Quem trava a tarifa social da água no Brasil?
Aprovada em 2024, lei nacional deveria ampliar o desconto a famílias vulneráveis no acesso ao bem essencial. Mas empresas privadas querem restringi-la. No Rio, casos revelam alinhamento de agências reguladoras para desincentivar o benefício
Publicado 15/08/2025 às 15:46 - Atualizado 15/08/2025 às 18:43

O texto a seguir foi produzido pelo ONDAS – Observatório Nacional dos Direitos à Água, e ao Saneamento, parceiro editorial de Outras Palavras.
O acesso aos serviços públicos de saneamento básico, notadamente ao abastecimento de água, não se concretiza apenas com a presença das redes técnicas, visto que aqueles que não possuem meios para pagar as tarifas cobradas podem ser impedidos de acessar os serviços fornecidos pelas redes existentes. Logo, é de suma importância nas discussões sobre universalização dos serviços de saneamento básico a previsão de mecanismos que assegurem a acessibilidade econômica aos usuários em situação de vulnerabilidade.
O principal mecanismo adotado nesse sentido é a tarifa social de água, que garante uma redução dos valores cobrados, algo previsto em diversos municípios do Brasil, por diferentes prestadores. Os critérios para elegibilidade dos usuários ao benefício são muito heterogêneos, sendo os mais difundidos a inscrição no Sistema do Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico) ou em programas sociais (ex. Bolsa Família) e as características da habitação, como a localização, tamanho, padrão construtivo e o tipo de ligação de energia elétrica (SNIS, 2022). Do mesmo modo, os descontos aplicados variam muito de acordo com o prestador.
Recentemente, as discussões ganharam novo impulso com a aprovação da Lei Nacional de Tarifa Social (LNTS) em junho de 2024 (Lei nº 14.898/2024), que definiu critérios e descontos mínimos a serem adotados em todo o país a partir de dezembro de 2024 (a lei entrou em vigor 180 dias após a sua publicação). De acordo com a referida lei, as famílias com renda per capita de até meio salário-mínimo que possuam integrante inscrito no CadÚnico ou pessoa com deficiência ou pessoa idosa que receba o Benefício de Prestação Continuada (BPC) estão automaticamente aptas ao benefício (art. 2º). Foi estipulado um desconto mínimo de 50% sobre a tarifa aplicável à primeira faixa de consumo, observadas as diretrizes nacionais determinadas pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) (art. 6º).
Entre junho e dezembro de 2024, a lei foi objeto de intenso debate público em diversas audiências promovidas pela ANAi, com vistas a subsidiar o processo de construção da Norma de Referência sobre estrutura tarifária e tarifa social de água/esgoto. A ANA tem uma atribuição de uniformização regulatória e a obrigação de criar uma lista positiva expondo quem está cumprindo ou não suas diretrizes.
Nesse contexto, foram travadas disputas entre diversos atores e observada muita resistência por parte de operadores e reguladores em aplicar efetivamente a lei. Por um lado, movimentos sociais apoiaram a lei, argumentando que com ela o governo brasileiro cumpriria parte das obrigações inerentes aos direitos humanos à água ao criar condições para o acesso universal dos serviços. Por outro lado, operadores e reguladores insistiram que a aplicação da lei deveria ser mais restrita, alegando a insustentabilidade econômica de empresas de água em muitos municípios brasileiros onde quantidade significativa de usuários é beneficiário de programas sociais, o que resultaria em um número insustentavelmente alto de beneficiários da tarifa social.
Embora seja reconhecida a parcela significativa da população que pode estar sendo impedida de acessar os serviços por incapacidade de pagamento das contas de água, foi priorizada a demanda dos operadores frente a necessidade dos usuários. Em fevereiro deste ano, em um Webinárioii, a ANA expôs previamente algumas diretrizes da norma de referência e sinalizou que a lei não seria aplicada imediatamente.
Foi definido que o cumprimento da Lei nº 14.898/2024 seria verificado a partir das seguintes etapas de implementação: (i) não iniciada; (ii) obtenção dos dados do CadÚnico junto às secretarias de assistência social; (iii) em processo de reequilíbrio contratual prospectivo; (iv) em implementação; (v) concluído. Caso o processo de implementação tenha sido iniciado, independentemente da etapa em que ele se encontre (ii, iii, iv ou v), o operador seria positivado pela ANA. Essa diretriz enfraqueceu significativamente o poder coercitivo da lista positiva e os efeitos da lei. Os operadores deixaram de ser incentivados a cumprir plenamente a lei, visto que apenas iniciar o processo já seria suficiente para atender as exigências impostas. Além disso, como agravante, não foram estabelecidos prazos para a realização destas etapas, o que possibilita a postergação da implementação efetiva da lei.
Também foi dada orientação para que a lei fosse implementada de forma faseada, de modo que o percentual de famílias contempladas pela tarifa social fosse ampliado gradativamente. Todavia, a ANA não indicou prazos ou metas para estas fases, o que significa excluir do benefício parte dos usuários que teriam direito a ele por tempo indeterminado. Foi ressaltada a necessidade de realização de reequilíbrio econômico-financeiro prospectivo (a priori) dos contratos para aplicação da lei. Novamente, os operadores deixaram de ser incentivados a adotar a tarifa social de forma mais célere. O processo de reequilíbrio dos contratos certamente demanda tempo, mas sem que sejam estabelecidos prazos, adiá-lo pode ser uma maneira de postergar a implementação da lei. Por outro lado, os reequilíbrios econômico-financeiros podem ser retroativos (a posteriori), o que inclusive incentivaria os prestadores a ampliarem o alcance do benefício, pois é grande o interesse deles em reaver a receita direcionada para o benefício.
A minuta da Norma de Referência esteve em Consulta Pública nos últimos dois mesesiii. Chamou atenção a diretriz que estabeleceu que a Lei nº 14.898/2024 não fosse aplicada aos contratos de concessão vigentes (art. 2º, § 1º). Caso aprovada sem alterações, tal norma de referência retirará o efeito da Lei Nacional de Tarifa Social sobre a maioria dos operadores do país e postergaria seu cumprimento indefinidamente.
Implementação da Lei Nacional de Tarifa Social no Estado do Rio de Janeiro: posição da Procuradoria Geral da AGENERSA
O posicionamento da ANA já reverbera entre as agências reguladoras infranacionais. No Estado do Rio de Janeiro (RJ), a AGENERSA, agência reguladora estadual dos serviços de saneamento básico, tem ignorado deliberadamente a Lei Nacional de Tarifa Social em pareceres e decisões, orientando as empresas concessionarias sob sua regulação a não aplicá-la.
A AGENERSA é responsável pela regulação dos serviços de água de onze concessionárias no Estado do RJ. Destas, cinco são operadores do Grupo Águas do Brasil (Águas da Imperatriz, Águas da Condessa, Águas de Paraty, Águas de Juturnaíba e Rio Mais Saneamento – Bloco 3), três do Grupo AEGEA (Prolagos, Águas do Rio – Blocos 1 e 4), um da Iguá Saneamento (Iguá – Bloco 2), um da empresa Fortaleza Ambiental LTDA (Águas de Pádua), e a CEDAE, que segue atendendo aos municípios que não aderiram à concessão regionalizada ocorrida em 2021. Estes operadores atendem a 71 dos 92 municípios do Estado do Rio de Janeiro, incluindo a capital e a maioria dos municípios integrantes da Região Metropolitana. A atuação da AGENERSA abrange aproximadamente 80% da população fluminense.
Conforme exposto anteriormente, assim como no restante do Brasil, as tarifas sociais adotadas pelos operadores regulados pela AGENERSA variam muito quanto aos critérios de elegibilidade e aos descontos praticados. As regras adotadas, por operador, são apresentadas no Quadro 1.
Quadro1.Regras de tarifa social adotadas pelos operadores regulados pela AGENERSA.


Observa-se que as concessionárias Águas de Pádua e Águas de Paraty não possuem previsão de tarifa social na sua estrutura tarifária. A Prolagos e a Águas de Juturnaíba preveem o mesmo desconto da Lei Nacional de Tarifa Social, mas em volumes inferiores de água (10 m³/mensais) e com critérios mais restritivos. A família usuária deve comprovar que faz parte de algum programa social do governo e que reside em imóvel de até 50 m². Já a concessionária Águas da Condessa prevê os mesmos benefícios previstos na LNTS (50% de desconto em 15m³/mensais). Entretanto, os critérios de elegibilidade também são mais restritivos. Além da inscrição no CadÚnico, a família usuária deve comprovar residir em imóvel de até 60 m² e não há previsão do benefício para os inscritos no BPC.
A concessionária Águas da Imperatriz é a que apresenta as melhores condições. São previstos benefícios mais abrangentes, com percentuais de descontos superiores aos estabelecidos na Lei nº 14.898/2024 e critérios mais amplos. A inscrição no CadÚnico independente da renda percapita já assegura direito ao benefício.
A CEDAE e as concessionárias dos blocos de concessão leiloados em 2021 (Águas do Rio, Iguá e Rio Mais Saneamento) possuem critério de elegibilidade totalmente diverso daquele previsto na LNTS. A tarifa social é regulamentada pelo Decreto Estadual nº 25.438/1999, sendo pautada em critério socioespacial e não na situação socioeconômica das famílias e previsto desconto superior ao estabelecido (60% em 15 m³/mensais).
Para o alinhamento com a Lei nº 14.898/2024, o critério vigente e o percentual de desconto, se for mais vantajoso, devem ser mantidos e os usuários inscritos no CadÚnico [até ½ SM] ou no BPC devem ser incorporados como beneficiários (art. 6º, § 2º). No entanto, em flagrante contradição com a LNTS, no Parecer Nº 70/2025/AGENERSA/PROCiv, de 06/04/2025, a Procuradoria Geral do Estado (PGE-RJ) dispensou todas as concessionárias com previsão editalícia ou contratual de tarifa social a adequação obrigatória e imediata à Lei nº 14.898/2024. Se enquadram nesse caso as prestadoras: CEDAE; Águas do Rio – Blocos 1 e 4; Iguá Saneamento; Rio Mais Saneamento; Águas de Juturnaíba; Prolagos; Águas da Condessa; Águas da Imperatriz. Já as concessionárias Águas de Paraty e Águas de Pádua, que não preveem o benefício em seus contratos e editais, foram instadas a se manifestar confirmando se tem interesse [ou não] na adoção dos critérios de elegibilidade e parâmetros para definição do valor da tarifa social previstos na LNTS.
Em Decisão do Conselho Diretor da AGENERSA (CODIR)v, de 06/06/2025, o posicionamento vergonhoso da PGE do Parecer nº 70, foi acatado e aprovado por unanimidade pelos conselheiros da agência. Em um contexto de forte privatização dos serviços, a tarifa passou a ser um elemento central de disputa. A tarifa social, que poderia assegurar o acesso de famílias de baixa renda aos serviços, tem sido restrita a um público muito aquém da demanda. E mesmo com a aprovação de uma lei nacional, grupos vulnerabilizados não estão tendo seus direitos assegurados. Verifica-se, portanto, no Rio de Janeiro, um evidente alinhamento da agência reguladora aos interesses dos prestadores por ela regulados, a maior parte empresas privadas. Por outro lado, até o momento, a ANA, que deveria orientar e fiscalizar a implementação da Lei nº 14.898/2024, não tem demonstrado o rigor necessário ao cumprimento dessa função.
BROWN, C; HELLER, L. Affordability in the provision of water and sanitation services: evolving strategies and imperatives to realise human rights. International Journal of Water Governance v.5, n.2, p. 19-38, 2017.
Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS). Diagnóstico Temático Serviços de Água e Esgoto (Tabelas). Ministério das Cidades. Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental (SNSA). 2022. Disponível em: https://www.gov.br/cidades/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e- programas/saneamento/snis/produtos-do-snis/diagnosticos-snis
BRASIL. Lei Federal nº. 14.898, de 13 de junho de 2024. Institui diretrizes para a Tarifa Social de Água e Esgoto em âmbito nacional, DF: Presidência da República, [2024]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2023-2026/2024/Lei/L14898.htm
i Estas audiências, denominadas ‘Diálogos com o Setor’, foram segmentadas por tipo de público (operadores, reguladores e demais atores) e estão disponíveis no canal do Youtube da agência: https://youtu.be/ZKi6lYma8WU?si=5q2iJWN8IXU6ESBx – Operadores https://youtu.be/vDHMKgvDN8o?si=OYPfglWyv3T2H-Cz – Reguladores https://youtu.be/i4OPEEiqJto?si=YrjInfrQxtOaSfie – Demais atores
ii O Webinário está disponível no canal do Youtube da agência: https://www.youtube.com/watch?v=D_Jqyxpv- aQ&list=PLdDOTUuInCuwBO8SrTAR7FrFuBs5XxCAf&index=20
iii Consulta Pública nº 003/2025. Disponível em: https://participacao-social.ana.gov.br/Consulta/222
iv Processo SEI nº 480002/001047/2025. Documento 93674918. Disponível em: https://sei.rj.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?GL1OGpA1t27_rOtfzN4oyNS eqE5NT-gftYuXYZb2oNN5-
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v Processo SEI nº 480002/001047/2025. Documento 101999929. Disponível em: https://sei.rj.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?GL1OGpA1t27_rOtfzN4oyNS eqE5NT-
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