Habitação: a China enfrenta a bolha imobiliária

Financiamento fácil. Juros reduzidos. Milhões de apartamentos oferecidos pelo Estado, em aluguel social. Medidas anunciadas por Pequim sugerem que há alternativas redistributivas para as crises e joga luz sobre a “economia socialista com mercado”

Trabalhadores da construção civil em Pequim. “Casas são para morar, não para especular”, sustentou Xi Jinping no 19º congresso do PCCh
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Por Antonio Martins

O destino das crises econômicas é produzir cada vez mais desigualdade e pobreza? No Ocidente, a Grande Recessão iniciada em 2008 a partir do setor imobiliário devastou o Estado de bem-estar social, multiplicou a riqueza dos rentistas e tornou ainda mais penosa a luta por um teto. Na Espanha, por exemplo, os aluguéis passaram a consumir em média 40% dos salários da população mais jovem e em consequência 64% dos adultos com até 35 anos são constrangidos a continuar vivendo com seus pais (eram 36%, antes da crise). Mas para enfrentar sua própria bolha imobiliária – que levou, em janeiro, à falência da Evergrande, uma gigante que acumulara 300 bilhões de dólares em dívidas –, o governo chinês está tecendo uma saída distinta.

As medidas foram anunciadas em 17/5, em entrevista coletiva do vice-primeiro-ministro Li Hefeng, e reforçadas por um comunicado conjunto do Banco do Povo da China e da Agência Nacional de Regulação das Finanças. Há três ações fundamentais. Primeiro, as condições para compra de novas moradias foram muito facilitadas. As taxas de juros caíram para 2,35% ao ano, o patamar mínimo das prestações mensais baixou e o valor da entrada, na compra do primeiro imóvel, é agora de apenas 15% do total. O segundo feixe de ações tenta evitar novas quebras de empresas imobiliárias. As cidades agora podem relaxar, caso desejem, as medidas antiespeculativas adotadas nacionalmente em 2020 – entre elas, a restrição à compra de um segundo imóvel. Os projetos de construção inacabados (são milhares, em todo o país) e considerados saudáveis poderão voltar a receber financiamento público.

O terceiro bloco de ações, porém é o mais inovador e anticonvencional. O governo central está estimulando as administrações locais a comprar em massa apartamentos vagos para oferecê-los, em aluguel social, a quem ainda não pode adquiri-los. Onde não há imóveis, mas terra disponível, as prefeituras podem constituir empresas públicas para construir e ofertar nas mesmas condições. Um fundo nacional com recursos iniciais equivalentes a 41,6 bilhões de dólares (15,6 vezes o orçamento do Minha Casa, Minha Vida) financiará estas iniciativas. A expectativa deste conjunto de políticas é esvaziar a bolha imobiliária chinesa por meio da facilidade do acesso à casa – ao contrário do que ocorreu nos países capitalistas. Mas como esta bolha se formou? (Segundo o New York Times, haveria na China 4 milhões de imóveis prontos e não vendidos). Quais são os riscos associados a ela? Como fazê-la desinflar?

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As respostas podem ser encontradas ao analisar as distintas etapas do projeto de socialismo na China – seus avanços, contradições e desafios. Uma inspirada análise publicada no site interna Dong Seng apresenta estas distintas fases. O contexto geral é notável. Em 1949, quando o Partido Comunista (PCCh) chegou ao poder, apenas 11% da população, ou 55 milhões de pessoas, viviam nas cidades. Em 2022, este número já tinha chegado a 921 milhões (65% dos chineses) e a tendência é de que continue crescendo. Como oferecer moradia a tanta gente?

A primeira resposta foi a coletivização, iniciada logo após o triunfo do PCCh. As casas e apartamentos eram construídos pelas empresas estatais para seus empregados, pelas prefeituras e por outras instituições públicas. Os moradores pagavam aluguéis muito baratos. Em 1980, 75% das pessoas viviam nestas condições. Porém, a igualdade estava estabelecida num patamar de pobreza. A área média de teto disponível por pessoa era de apenas 6,7m². O desenvolvimento de novas construções tardava. O modelo retardava a urbanização e bloqueava o projeto de industrializar o país.

A partir dos anos 1980, após anos de debates e conflitos no país e no próprio PCCh, a China adotou reformas que tinham por objetivo a construção de um “socialismo com mercado”. O Estado jamais deixou de coordenar a atividade econômica. Não houve restauração do poder burguês. Mas em muitos setores foram permitidas relações de produção típicas do capitalismo – empresa privada, assalariamento, busca do lucro. Julgou-se que elas eram essenciais para desenvolver as forças produtivas, no estágio em que estava a economia chinesa. E um dos setores típicos onde esta transição se deu foi o imobiliário. Em 1993, já havia 505 construtoras privadas no país. Em 2021, este número havia saltado para 122 mil, com importante presença de capitais estrangeiros e algumas corporações (como a chinesa Evergrande) oferecendo ações também em Wall Street…

Em pouco mais de quatro décadas, o “socialismo com mercado” transformou a China. A produção industrial do país é, de longe, a maior do mundo e supera a das cinco economias seguintes (EUA, Japão, Alemanha, Índia e Coreia do Sul), juntas. O PIB per capita disparou: de US$ 312 (1980) para US$ 12,6 mil agora. A construção imobiliária foi capaz de atender à urbanização e à melhora das condições de vida. Em 2019, 92,6% da população morava em suas próprias casas – em geral, apartamentos com poucos anos de construção e mais espaçosos que a média internacional.

Mas as relações capitalistas cobraram um preço. Um mercado descomunal – onde se vendem bens de alto valor a centenas de milhões de consumidores com renda ascendente – permitiu o surgimento de um punhado de empresas agigantadas. Como é normal em todo o mundo, no setor, elas vendem antecipadamente imóveis entregarão apenas anos depois. A prática é propícia ao surgimento de esquemas tipo “pirâmide”, em que dívidas muito vultosas, assumidas hoje, só serão honradas se as receitas previstas para o futuro se concretizarem. A febre foi retroalimentada pela própria ação do público. Num mercado em ebulição, com preços tendendo à alta, as pessoas com rendas sobrantes tendem a aplicá-las em imóveis não com objetivo de utilizá-los, mas de aguardar sua valorização.

No início da década de 2020, os delírios produzidos por esta bolha haviam tornado boa parte das empresas do setor superendividadas, à beira de se inviabilizarem. Elas corriam o risco de se tornarem “grandes demais para quebrar”, já que sua eventual falência resultaria em grandes perdas ao público e poderia gerar uma espiral de calotes, arrastando outros setores da economia e os próprias finanças dos municípios, que são credores das incorporadoras imobiliárias. As consequências políticas, num país em que o Estado e o Partido Comunista são vistos como responsáveis pelo bem-estar da população, pareciam imprevisíveis.

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A freada de arrumação veio em 2017, já num novo cenário político: o do período Xi Jinping e das mudanças que acabariam gerando o conceito de “prosperidade comum”. A China não rompeu com os mecanismos de mercado; mas adota medidas redistributivas crescentes e aposta no investimento público e num papel ainda mais ativo do Estado na economia como bases para um novo desenvolvimento. “As casas são para morar, não para especular”, disse Xi noo 19º do PCCh, naquele ano. Era o anúncio de uma série de medidas antiespeculativas comandadas por Pequim mas adotadas de modo decentralizado pelas autoridades municipais, segundo sua visão sobre a realidade local. Entre outras, restrições à aquisição de mais de um imóvel e prazos mínimos, após a compra, para vender o bem possuído. Às empresas imobiliárias, foram impostas “linhas vermelhas” – índices máximos de endividamento e uma determinação para que reorganizassem suas finançaas até 2023. Algumas delas não sobreviveram à travessia o deserto.

As medidas de 17 de junho permitem que os municípios revejam em parte as restrições. Dá fôlego (por meio da retomada do crédito) à incorporadoras que persistiram e foram saneadas, em novo sinal de que a China não abre mão da empresa privada. Mas o recurso ampliado ao aluguel social (a solução já havia sido adotada experimentalmente em algumas cidades, após 2017) indica clara preferência por lógicas de redistribuição e de superação do fetiche da propriedade individual.

As medidas chocam no Brasil, onde a concentração de terra é tão abissal, no campo e nas cidades. Num Ocidente em que a ideologia dominante não enxerga vida além do mercado, saber que há alternativas ajuda a despertar a imaginação. As sociedades não estão fadadas a entregar as rédeas da política às grandes empresas, nem a aceitar resignadas a disparada da desigualdade e da pobreza. A China, enquanto isso, começou uma nova transição. Lá, o Estado aposta agora suas fichas numa nova transformação industrial, baseada em bens sofisticados, transição energética e robotização. É assunto para outro texto

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