A segurança alimentar da China e suas repercussões

Com apenas 9% das terras agrícolas, e 7% da água doce, país nutre 18% da população do planeta – e sua alimentação está se enriquecendo rápido. Para tanto, há grandes transformações no campo chinês e nas relações agroalimentares do mundo

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Por Fabiano Escher

Em 1996, quando lançou seu primeiro Livro Branco sobre Segurança Alimentar e Produção de Grãos , a China tinha auto-suficiência alimentar, sendo inclusive exportador líquido de comida. Em 2019, quando saiu a segunda edição do documento, o país já era o maior importador agroalimentar do mundo. O que transformou a situação? Em que consiste a política de segurança alimentar chinesa? Quais são as suas implicações globais? Desde meados dos anos 1990, a China tem respondido exitosamente aos desafios desencadeados pelo deslocamento da “questão agrária” clássica, típica de sociedades majoritariamente rurais, para a “questão agroalimentar” contemporânea, que incide sobre sociedades amplamente urbanizadas, em torno de três problemáticas.

Primeiro, a formação de uma estrutura oligopolista liderando a acumulação de capital no agronegócio chinês. Quatro empresas estatais centrais são controladas diretamente pela Comissão de Supervisão e Administração de Ativos Estatais (SASAC). A Sinograin gerencia reservas de grãos e óleo comestível, a CNADC garante o fornecimento externo de proteína animal, enquanto a SinoChem, que adquiriu a Syngenta, e a COFCO, que adquiriu as traders Noble e Nidera, desafiam o domínio das corporações transnacionais do Atlântico Norte no mercado mundial. Na medida em que o Partido Comunista Chinês tem buscado modernizar a agricultura aumentado as escalas de produção, as antigas fazendas estatais vêm adquirindo renovada importância. As empresas cabeça de dragão (DHEs), certificadas para obter linhas especiais de crédito, subsídios e isenções, estão envolvidas no processamento e distribuição de produtos de alto valor agregado e no controle das cadeias de valor via sistemas de integração vertical e agricultura de contrato. Há ainda milhares de pequenas e médias empresas agrícolas especializadas, que arrendam terras dos camponeses, bem como de cooperativas agrícolas especializadas, algumas consideradas “reais” e a maioria “falsas”.

Segundo, as novas dietas urbanas e a mercantilização da agricultura camponesa gera mudanças nos padrões de reprodução social. Entre 1990 e 2018, o coeficiente de Engel caiu de 54,2% para 27,7% em lares urbanos e de 58,8% para 30,1% em lares rurais. Na média nacional, o padrão dietético passou de 50% grãos, 42% frutas e vegetais e 8% proteínas de origem animal, em 1990, para 34,3%, 46,2% e 19,5% em 2018, com disparidades entre urbano e rural. Esses novos padrões de consumo, aliados ao novo regime de acumulação de capital apoiado pelo Estado, impulsionaram a formação de novos segmentos de classe nas áreas rurais: agricultores familiares especializados de maior escala, agricultores comerciais de pequena escala, agricultores engajados em trabalho migrante, agricultores de subsistência e trabalhadores rurais assalariados. Assim, embora a agricultura chinesa ainda seja essencialmente de base familiar, o velho campesinato comunista homogêneo e indiferenciado não existe mais.

Terceiro, todas essas mudanças vão se refletir no caráter do poder político do Estado e suas estratégias agroalimentares. Enquanto a expansão global do agronegócio alavanca a influência externa do Estado chinês, a sua expansão no mercado doméstico contribui para a política estatal de modernização da agricultura nacional. Além disso, funcionários de governos locais interessados

em obter benefícios específicos selecionam atores econômicos e capitalizam seus empreendimentos agrícolas, transferindo-lhes recursos de projetos financiados pelo governo central. Embora isto torne o Estado mais permeável aos interesses capitalistas, também lhe fornece os instrumentos para operar uma política nacional de segurança alimentar “autoconfiante” dentro de uma estratégia

“neomercantilista” de integração no mercado mundial. Para alimentar 18% da população mundial com apenas 9% das terras agrícolas e 7% da água doce do planeta, a China estabelece a “linha vermelha da terra arável”, reservando 120 milhões de hectares exclusivamente para uso agrícola, e a “linha vermelha da segurança de grãos”, garantindo que 95% do arroz, trigo e milho consumidos

sejam produzidos internamente. A China assim tornou-se o maior produtor mundial de vários produtos (como arroz, trigo, frutas e vegetais, ovos, peixes e frutos do mar, carnes, bebidas e alimentos processados), ao mesmo tempo em que opera importações massivas de commodities agrícolas intensivas em recursos (como a soja brasileira para fabricar ração para suínos e frangos) e se engaja ativamente em investimentos no agronegócio global a fim de exercer controle sobre as cadeias de valor das quais depende (como a Cofco no complexo soja dos países do Cone Sul).

Por fim, as novas estratégias agroalimentares chinesas abrangem desde controle de fontes de recursos estratégicos, diversificação de fornecedores, revitalização da produção doméstica de soja e diretrizes para reduzir o consumo de carne, o desperdício de alimentos e os níveis de proteína crua na fabricação de ração animal, até inovações radicais, como produção de proteínas para ração a partir do monóxido de carbono, avanços em proteínas alternativas e carne de laboratório e agricultura de clima controlado, incluindo fazendas verticais de suínos de 26 andares.

O complexo soja-carne Brasil-China no contexto sul-americano deve enfrentar contestações ambientais crescentes e mercados para novos produtos poderão ser abertos. As exportações do Sudeste Asiático, Ásia Central, Rússia e Europa de Leste devem ganhar posições no mercado chinês. A transferência tecnológica chinesa para países africanos provavelmente vise antes estabilizar o abastecimento no continente do que criar um novo complexo agro-exportador. As relações agroalimentares da China com a Europa e a Oceania, sujeitas à sua atual rivalidade com os EUA, deve ficar cada vez mais tensa e instável. Assim, é possível projetar a contínua erosão do domínio do Atlântico Norte e a crescente influência da China na transformação do regime alimentar internacional.

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