Os Fukuyamas brasileiros acreditam em um “fim dos golpes”

troia

Procissão do Cavalo de Troia (Giovanni Domenico Tiepolo, 1773)

Relativistas parecem assistir à tomada de Troia como se pudéssemos minimizar o cavalo e a história das guerras; como se estivéssemos em um observatório distante

Por Alceu Luís Castilho (@alceucastilho)

Francis Fukuyama tornou-se conhecido nos anos 90 com uma tese esdrúxula: a do “fim da história”. Com a queda do Muro de Berlim e da União Soviética, teria vencido o liberalismo. Sucederam-se inúmeros decretos: de que estaríamos vivendo o fim de vários cânones. O fim disto, o fim daquilo. Era uma visão conservadora do mundo. A serviço de supostos consensos. Não à toa, naquele momento tivemos o “consenso” de Washington, a agenda estadunidense que previa uma rota inexorável para os Estados, a reboque dos mercados.

Vivemos agora no Brasil, em meio aos que tomam posição pelo impeachment ou pela democracia (os governistas estão incluídos aqui, não necessariamente pelos mesmos motivos, mas o campo é bem maior), uma curiosa terceira via, capaz de observar um fenômeno histórico muito concreto como se ele não estivesse acontecendo. Como se pudéssemos pairar em torno dele, em uma espécie de Olimpo, decretando que ambos os lados estão errados, as tomadas de posição estão açodadas demais. Lembro-me, então, de Fukuyama. É como se estivessem a decretar o “fim dos golpes”.

Não estou falando dos golpistas que (como sempre) se recusam a pronunciar a palavra “golpe”. Ou que até, cinicamente, remetem a palavra ao campo contrário, como tem feito o Estadão. Esses que, em 1964, chamavam ou chamariam o golpe empresarial militar de “revolução”. Não, estou falando de setores à esquerda, defensores de direitos humanos, de povos tradicionais, com histórico no campo democrático, portanto, que, de repente, não mais do que de repente, decidiram que deve haver algum meio termo entre uma posição e outra, “vamos todos conversar”.

Como se a bola não estivesse na pequena área, quase entrando, e pudéssemos, sei lá, apitar, chamar todos para um convescote e informar, em um ritmo quase filosófico, que, a rigor, aquela partida não está sendo jogada, o mundo mudou e não somente a partida, mas o futebol como um todo não é tão decisivo assim. Algo como: parem, parem, reflitamos sobre t-u-d-o. Trata-se de um esforço de congelamento, quase místico, numa espécie de versão equilibrista e pós-moderna do Cândido de Voltaire: vejam, vocês estão todos muito afobados, e todos errados, respirem fundo.

Como se não tivéssemos uma faca em nossa jugular. Como se quem se posicionasse contra um golpe político muito específico, que vai muito além das qualidades e defeitos do lulopetismo, ou do governo Dilma Rousseff (quase consensualmente desastroso), não tivesse entendido nada, não estivesse ouvindo a voz dos novíssimos tempos, não estivesse refletindo sobre novas categorias necessárias, não pensasse nos esgotamentos, nos impasses, nos limites do Estado; como se pactuássemos com os desmandos e com o modelo predador adotado pelos governantes de plantão.

Como tenho escrito, as vítimas de sempre não ficarão no mesmo lugar, em caso de retrocesso político no Brasil: elas se tornarão mais vítimas ainda. Os povos indígenas, os camponeses, as pessoas violentadas pelos projetos de infraestrutura, os moradores de periferia, os manifestantes (as vítimas da violência de Estado) não ficarão num mesmo lugar em caso de golpe paraguaio (sem militares), midiático-empresarial: eles perderão ainda mais. Não existem territórios livres. Nosso arremedo de democracia perderá algumas de suas ilhas – e são os excluídos os primeiros a serem atingidos.

golpe-laerte

Será necessário lembrar que o líder da extrema direita tem falado diretamente em eliminar o MST, com armas? Que a agenda dos direitos sociais (que já se deteriora com Dilma) encolherá ainda mais, com a chegada do PMDB e da Fiesp ao poder? Que haverá forte retaliação aos resistentes? Por que isso tudo soa indiferente? Como se pudéssemos, a partir da chegada desses golpistas específicos ao poder, viver uma nova correlação de forças, como se o exercício do poder – econômico, político – não fosse algo extremamente palpável, concreto.

Como se os nossos desejos nobres por uma terceira via – humana, igualitária – pudessem fazer frente à realpolitik apenas por serem expressados; como se fosse possível, após a derrubada de um governo e assentada a poeira (uma suposição otimista, aliás, a de que a poeira seja assentada), a nau dos sensatos pudesse reencaminhar as reivindicações históricas a partir de novos patamares, de novos paradigmas; como se nos encaminhássemos para a confortável posição de mover os pauzinhos em uma situação onde os horrores já estejam desconstruídos.

Não, gente. As coisas vão piorar muito. E alguém precisa salvar aquela bola explosiva que está quase entrando em nossa meta.

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15 comentários para "Os Fukuyamas brasileiros acreditam em um “fim dos golpes”"

  1. Renata disse:

    É isso. Essa ideia de que dá pra ficar olhando lá de cima do Olimpo numa hora como essa também me impressiona.
    Escrevi em outro canto o seguinte, que pode servir pra cá:
    lendo alguns textos de análise sobre a situação atual, me dá a impressão de que falta a certas pessoas óculos da distância apropriada: alguns focam perto demais e perdem contexto; outros, longe demais e perdem especificidades.

  2. fernando disse:

    O que me espanta nao e o dialogo deles, pois sempre se repetem. O que me espanta e que o pessoal de esquerda parece ainda nao ter percepcionado o real perigo da situaçao. E o contra ataque do Governo(inexistente) peca por tardio. Esperando que a banda passe por si mas ela nao vai passar nao. Parece que todo o mundo quer olhar apenas para a arvore e ninguem enxerga a floresta. O certo e que a iniciativa tem pertencido ate agora aos golpistas e o Governo so tem jogado na defesa(e mal). Ha que inverter as situaçoes e o Governo deve passar a ofensiva, e tem muito por onde avançar mas tem que QUERER.
    Sabe-se que existem ONGs no terreno e sabe-se quem as financia, e entao…, sabe-se o papel dos midia e quem os financia, e entao… e por ai fora…
    A luta ao nivel do poder judiciario e importante mas so ai vai perder-se a guerra. Avancem para a luta no terreno ou ja era…
    Digo eu que sou simples

    • Ruy Mauricio de Lima e Silva Neto disse:

      Perfeito, perfeito. Haveria tanto o que fazer IMEDIATAMENTE, HOJE, JÁ! Quero dizer, o Governo Federal, os defensores da Ordem Jurídica, os Chefes Militares incumbidos pela Constituição de defendê-la e o regime democrático : cadeias de rádio, de TVs locais, de sites na Internet criados especialmente para a reação legalista, ostensivamente e alardeada por todo o país, de todas as maneiras possíveis, manter o povo informado do que realmente acontece, a cobiça do pré-sal, os programas sociais que estavam erradicando a miséria e promovendo a ascensão política e social de numerosos contingentes humanos. Tudo isso poderia, DEVERIA estar sendo feito, já, hoje, agora, de alguma maneira, por iniciativa pública ou privada. Mas ficamos aqui, como bons panacas, assistindo pela TV o MPB-4, quero dizer, o PMDB “desembarcar” do Governo, o que logo em seguida será alardeado como mais uma fulminante derrota para o Governo Dilma (quando o será para a Ordem Legal, para a Democracia, em última análise).E assim vamos nos acostumando a esta nova e inesperada condição de Paraguaios. Mas vamos?

  3. fernando disse:

    O que me espanta nao e o dialogo deles, pois sempre se repetem. O que me espanta e que o pessoal de esquerda parece ainda nao ter percepcionado o real perigo da situaçao. E o contra ataque do Governo(inexistente) peca por tardio. Esperando que a banda passe por si mas ela nao vai passar nao. Parece que todo o mundo quer olhar apenas para a arvore e ninguem enxerga a floresta. O certo e que a iniciativa tem pertencido ate agora aos golpistas e o Governo so tem jogado na defesa(e mal). Ha que inverter as situaçoes e o Governo deve passar a ofensiva, e tem muito por onde avançar mas tem que QUERER.
    Sabe-se que existem ONGs no terreno e sabe-se quem as financia, e entao…, sabe-se o papel dos midia e quem os financia, e entao… e por ai fora…
    A luta ao nivel do poder judiciario e importante mas so ai vai perder-se a guerra. Avancem para a luta no terreno ou ja era…
    Digo eu que sou simples

    • Ruy Mauricio de Lima e Silva Neto disse:

      Perfeito, perfeito. Haveria tanto o que fazer IMEDIATAMENTE, HOJE, JÁ! Quero dizer, o Governo Federal, os defensores da Ordem Jurídica, os Chefes Militares incumbidos pela Constituição de defendê-la e o regime democrático : cadeias de rádio, de TVs locais, de sites na Internet criados especialmente para a reação legalista, ostensivamente e alardeada por todo o país, de todas as maneiras possíveis, manter o povo informado do que realmente acontece, a cobiça do pré-sal, os programas sociais que estavam erradicando a miséria e promovendo a ascensão política e social de numerosos contingentes humanos. Tudo isso poderia, DEVERIA estar sendo feito, já, hoje, agora, de alguma maneira, por iniciativa pública ou privada. Mas ficamos aqui, como bons panacas, assistindo pela TV o MPB-4, quero dizer, o PMDB “desembarcar” do Governo, o que logo em seguida será alardeado como mais uma fulminante derrota para o Governo Dilma (quando o será para a Ordem Legal, para a Democracia, em última análise).E assim vamos nos acostumando a esta nova e inesperada condição de Paraguaios. Mas vamos?

  4. Joaquim disse:

    Os movimentos sociais foram as ruas na mesma semana que o governo aprovou a lei antiterrorismo. E ai, o que fazemos? Cade a orientação da qual o partido que se diz de esquerda teria a obrigação de fazer? Já tem muita gente cedendo ao golpe justamente pela fraqueza do governo e do seu partido. Não tem perspectivas para o Brasil sair desta encruzilhada.

  5. Joaquim disse:

    Os movimentos sociais foram as ruas na mesma semana que o governo aprovou a lei antiterrorismo. E ai, o que fazemos? Cade a orientação da qual o partido que se diz de esquerda teria a obrigação de fazer? Já tem muita gente cedendo ao golpe justamente pela fraqueza do governo e do seu partido. Não tem perspectivas para o Brasil sair desta encruzilhada.

  6. Marcus Telles disse:

    Fala, Alceu, tudo bom?

    Cara, confesso que fiquei bem incomodado com o seu texto hahahaha. Escrevi algo há alguns dias que vai numa direção contrária – caso queira dar uma olhada:
    https://medium.com/@marcustelles/n%C3%A3o-h%C3%A1-passividade-alguma-em-recusar-narrativas-f%C3%A1ceis-6014a75bc6dc#.anc8sxlsr

    Eu destacaria quatro coisas que acho importante levar em conta:
    1. As pessoas não-aderentes ao binarismo que conheço defendem algo bem diferente do que é caracterizado no texto.
    2. Os movimentos desta “terceira via” em relação ao atual contexto (seus movimentos de curto prazo, especificamente) dependem acima de tudo da margem que o PT e a FIESP dão a eles. A não-adesão deles resulta também do que PT e FIESP têm a oferecer.
    3. Ações políticas só são eficazes se articularem as exigências de curto prazo em “ações de longo prazo”. A defesa da democracia nunca pode (como demandam as principais narrativas propostas pelo PT) resultar no esquecimento de ações anti-democráticas e anti-minorias do governo. Uma ação de recusa à adesão é consequência também do gesto anterior de quem propõe a narrativa – não se dá num vácuo.
    4. Curiosamente, o governo do PT é extremamente fukuyamista, no sentido que concebe como “irreal” qualquer cogitação de mudança estrutural. Se vamos considerar que a história não acabou e portanto há risco de golpes, precisamos também considerar que, pelo mesmo motivo, podemos nos mobilizar para além do medo.

    O que acha?

    Abraço!

    • Alceu Castilho disse:

      Olá, Marcus. Os itens 2, 3 e 4 giram em torno do PT, e insisto que a defesa da democracia não possa ser pautada pelo que faz um determinado partido no poder. (E provavelmente compartilho da maioria das críticas que você faz ao PT.) Que ela consiste um valor, em si, independente do governo de plantão. O texto abaixo detalha um pouco melhor a visão que tenho de democracia: http://outraspalavras.net/alceucastilho/2016/03/13/vivemos-um-arquipelago-de-democracia-e-mesmo-esse-arremedo-corre-hoje-serio-risco/

      A narrativa do golpe é central, no momento. Não é a mesma do voto crítico, por exemplo. Nunca caí nesse discurso, inclusive nunca votei em Dilma – e sim à esquerda dela. Podemos nos mobilizar além do medo em condições habituais de temperatura e pressão – não com golpistas e fascistas dando as cartas.

      O texto se baseia em consequências concretas – mas também em frases escritas, basta ler o texto da Eliane Brum de hoje – da minimização do golpe. Uma coisa é dizer que não basta resistir ao golpe, que é preciso encaixar outras pautas, outras reivindicações, visar uma democracia mais plena. Outra, minimizar as consequências (para a democracia, para as pautas de esquerda, para os direitos fundamentais) do próprio golpe.

      Abraço.

  7. Marcus Telles disse:

    Fala, Alceu, tudo bom?

    Cara, confesso que fiquei bem incomodado com o seu texto hahahaha. Escrevi algo há alguns dias que vai numa direção contrária – caso queira dar uma olhada:
    https://medium.com/@marcustelles/n%C3%A3o-h%C3%A1-passividade-alguma-em-recusar-narrativas-f%C3%A1ceis-6014a75bc6dc#.anc8sxlsr

    Eu destacaria quatro coisas que acho importante levar em conta:
    1. As pessoas não-aderentes ao binarismo que conheço defendem algo bem diferente do que é caracterizado no texto.
    2. Os movimentos desta “terceira via” em relação ao atual contexto (seus movimentos de curto prazo, especificamente) dependem acima de tudo da margem que o PT e a FIESP dão a eles. A não-adesão deles resulta também do que PT e FIESP têm a oferecer.
    3. Ações políticas só são eficazes se articularem as exigências de curto prazo em “ações de longo prazo”. A defesa da democracia nunca pode (como demandam as principais narrativas propostas pelo PT) resultar no esquecimento de ações anti-democráticas e anti-minorias do governo. Uma ação de recusa à adesão é consequência também do gesto anterior de quem propõe a narrativa – não se dá num vácuo.
    4. Curiosamente, o governo do PT é extremamente fukuyamista, no sentido que concebe como “irreal” qualquer cogitação de mudança estrutural. Se vamos considerar que a história não acabou e portanto há risco de golpes, precisamos também considerar que, pelo mesmo motivo, podemos nos mobilizar para além do medo.

    O que acha?

    Abraço!

    • Alceu Castilho disse:

      Olá, Marcus. Os itens 2, 3 e 4 giram em torno do PT, e insisto que a defesa da democracia não possa ser pautada pelo que faz um determinado partido no poder. (E provavelmente compartilho da maioria das críticas que você faz ao PT.) Que ela consiste um valor, em si, independente do governo de plantão. O texto abaixo detalha um pouco melhor a visão que tenho de democracia: http://outraspalavras.net/alceucastilho/2016/03/13/vivemos-um-arquipelago-de-democracia-e-mesmo-esse-arremedo-corre-hoje-serio-risco/

      A narrativa do golpe é central, no momento. Não é a mesma do voto crítico, por exemplo. Nunca caí nesse discurso, inclusive nunca votei em Dilma – e sim à esquerda dela. Podemos nos mobilizar além do medo em condições habituais de temperatura e pressão – não com golpistas e fascistas dando as cartas.

      O texto se baseia em consequências concretas – mas também em frases escritas, basta ler o texto da Eliane Brum de hoje – da minimização do golpe. Uma coisa é dizer que não basta resistir ao golpe, que é preciso encaixar outras pautas, outras reivindicações, visar uma democracia mais plena. Outra, minimizar as consequências (para a democracia, para as pautas de esquerda, para os direitos fundamentais) do próprio golpe.

      Abraço.

  8. Lídia disse:

    Faz tempo que não me sinto contemplada por uma reflexão sobre o atual momento brasileiro. Acho que tocou num ponto nevrálgico da questão, que é o silenciamento ou atraso suicida de uma boa parte da esquerda. Em cima do muro quanto a pontos cruciais para não se identificar ou colar suas imagens ao PT. Lamentável!! Mesquinhos!!! O que se observa é traição em cima de traição! Mas, como bem falou e acrescento, com a conivência de parte da esquerda, os mais fracos, excluídos, serão as primeiras vítimas!!! Só por enquanto os em cima do muro gozam do falso descanso de não assumir lado algum… As próximas cenas serão amargas….

  9. Lídia disse:

    Faz tempo que não me sinto contemplada por uma reflexão sobre o atual momento brasileiro. Acho que tocou num ponto nevrálgico da questão, que é o silenciamento ou atraso suicida de uma boa parte da esquerda. Em cima do muro quanto a pontos cruciais para não se identificar ou colar suas imagens ao PT. Lamentável!! Mesquinhos!!! O que se observa é traição em cima de traição! Mas, como bem falou e acrescento, com a conivência de parte da esquerda, os mais fracos, excluídos, serão as primeiras vítimas!!! Só por enquanto os em cima do muro gozam do falso descanso de não assumir lado algum… As próximas cenas serão amargas….

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