Gilberto Mendes (1922-2016) e a homenagem aos sem-terra de Eldorado
Publicado 04/01/2016 às 10:21
Falecido no dia 1º, compositor musicou poema de Haroldo de Campos sobre os 19 sem-terra assassinados em 1996 no sudeste do Pará; foi militante do PCB
Por Alceu Luís Castilho (@alceucastilho)
O compositor vanguardista Gilberto Mendes (1922-2016) deixou também sua marca na história social da música brasileira, ao musicar, em 1997, o poema “O Anjo Esquerdo da História”, de Haroldo de Campos. O texto é uma homenagem aos 19 sem-terra assassinados no dia 17 de abril de 1996, em Eldorado dos Carajás (PA). A data é considerada o Dia Mundial da Luta Camponesa e Dia Nacional de Luta pela Reforma Agrária.
Mendes faleceu no primeiro dia do ano, aos 93 anos, em Santos (SP). Era professor aposentado da Universidade de São Paulo e foi militante do Partido Comunista Brasileiro entre os anos 40 e 60. Um dos pioneiros da música concreta no Brasil, destacou-se também no teatro musical. Segundo o crítico Sidney Molina, da Folha de S. Paulo, a música sobre os sem-terra é uma de suas melhores obras. Ele diz que a força da elegia fez Mendes “passar abruptamente de um registro sacro para a pura declamação do rap”.
Em “Vila Socó, Meu Amor”, Gilberto Mendes prestou homenagem aos 93 mortos no incêndio da favela Vila Socó, de Cubatão (SP), em 1984, que ele chegou a definir como uma Bomba de Hiroshima. Ele escreveu a música dias após a catástrofe: “Não devemos esquecer os nossos irmãos da Vila Socó, transformados em cinzas, lixo em pó. A tragédia da Vila Socó mostra como o trabalhador é explorado, esmagado sem nenhum dó”.
Confira aqui o poema de Haroldo de Campos para os sem-terra:
O ANJO ESQUERDO DA HISTÓRIA
Os sem-terra afinal
estão assentados na
pleniposse da terra:
com-terra: ei-los
enterrados
desterrados de seu sopro
aterrados
terrorizados
terra que à terra
torna
pleniposseiros terra-
tenentes de uma
vala (bala) comum:
pelo avesso afinal
entranhados no
lato ventre do
latifúndio
que de im-
produtivo re-
velou-se assim u-
bérrimo: gerando pingue
messe de
sangue vermelhoso
lavradores sem
lavra ei-
los: afinal con-
vertidos em larvas
em mortuá-
rios despojos:
ataúdes lavrados
na escassa madeira
(matéria)
atocaiou-os
mortiassentados
sitibundos
decúbito-abatidos pre-
destinatários de uma
agra (magra)
re(dis)(forme) forma
-fome- a-
grária: ei-
los gregária
comunidade de meeiros
enver-
gonhada a-
goniada
avexada
-envergoncorroída de
imo-abrasivo re-
morso-
a pátria
(como ufanar-se da?)
apátrida
pranteia os seus des-
possuídos párias-
pátria parricida:
que talvez só afinal a
espada flamejante
tória cha-
mejando a contravento e
afogueando os
agrossicários sócios desse
fúnebre sodalício onde a
morte-marechala comanda uma
torva milícia de janízaros-ja-
gunços:
somente o anjo esquerdo
contrapelo com sua
multigirante espada po-
derá (quem dera!) um dia
convocar do ror
nebuloso dos dias vin-
douros o dia
afinal sobreveniente do
justo
ajuste de
contas
Aqui, um pouco de Gilberto Mendes, em entrevista a Antonio Abujamra, na TV Cultura. Ele diz, por exemplo, que os negros criaram a música popular urbana no Brasil:
https://www.youtube.com/watch?v=Y8SU76Ua9Pk
Gostou do texto? Contribua para manter e ampliar nosso jornalismo de profundidade: OutrosQuinhentos
A transcendente beleza da música que alimenta a resistência: o Anjo Esquerdo da História de Haroldo Campos de Gilberto Mendes