Os planos do Outra Saúde para 2026

Ao se celebrarem 40 anos da 8ª Conferência Nacional de Saúde, que estabeleceu as bases para a construção do SUS, buscaremos resgatar o fôlego daquele encontro histórico para enfrentar as encruzilhadas do presente. Leia nossa retrospectiva

Homem encara o horizonte de frente para o mar. Outra Saúde faz retrospectiva de 2025.
Foto: Araquém Alcântara
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Ao longo de 2025, em meio aos debates internos na redação de Outra Saúde, discutíamos: como o projeto que originou o SUS, em boa parte incorporado à Constituição de 1988, pode contribuir para pensar a saúde no Brasil de hoje? Ou ainda: se o país foi capaz de construir, em um contexto de crise e em meio a suas desigualdades históricas, o maior  sistema universal e público de cuidados do mundo, seria possível resgatar aquele ímpeto para encarar os desafios postos agora?

Essas perguntas nos animaram a construir um primeiro evento que convocou a pensar alguns dos entraves atuais – financiamento, desigualdades, trabalho, indústria… Realizamos em São Paulo, em ótimas companhias*, o Seminário SUS 35 anos. Era uma referência ao aniversário das leis que o regulamentaram. Estendeu-se por dois dias – e resultou em um produto editorial mais vasto, publicado durante todo o ano (veja aqui).

As boas perguntas não têm respostas fáceis. Essas reflexões nos instigaram a ir mais fundo. Anunciamos, então, nossa principal novidade para 2026: resgatar um evento pouco conhecido pela maioria dos brasileiros, mas que foi fulcral para a criação do SUS – a 8ª Conferência Nacional de Saúde. Ela aconteceu em 1986, em Brasília. Movimentou pensadores, sanitaristas, políticos, gestores e a sociedade em geral. Elaboraram, juntos, as principais bases para o que viria a ser nosso sistema de saúde. Afirmaram: saúde é direito universal e dever do Estado. 

Em março, esse acontecimento crucial completará 40 anos. Ao longo de 2026, discutiremos qual foi sua importância e por que é essencial resgatá-lo agora. Teremos, ao nosso lado, o Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz) e a Frente pela Vida como parceiros. Mas queremos envolver todos aqueles que acreditam que a saúde pode ser a chave para lutar por mudanças reais, para garantir dignidade a todos os brasileiros.

Em 2026, o SUS na encruzilhada

Nossa busca por investigar o passado não se justifica se não olharmos para a frente – e encararmos os entraves colossais que se desenham. Em 2026, ano de eleições, nos deparamos mais uma vez com um revés global: a ameaça da ultradireita. Enquanto ela se aproveita do desencanto das maiorias para espalhar o todos contra todos, destrói políticas públicas, direitos, a natureza, o Estado…

Derrotar essa ultradireita, como defende a cientista política e uma das líderes da Reforma Sanitária Brasileira, Sonia Fleury, em texto publicado nesta semana, exigirá ousadia. “Ao se concentrar prioritariamente em erguer instituições democráticas, deixamos de construir um projeto ideológico e político que possa se traduzir em uma luta por significados”, reflete ela.

Um desafio que já está posto é o econômico, mostrou Francisco R. Funcia, em outro artigo publicado neste boletim. O Arcabouço Fiscal, regra que atende aos dogmas financistas de austeridade, armou uma bomba-relógio: em pouco tempo, o piso constitucional de recursos para saúde será incompatível com o limite de 2,5% para o crescimento anual de despesas sociais. Qual dos dois terá de ruir?

Nosso projeto, em 2026, é suscitar debates como esses e, a partir do resgate da 8ª Conferência, construir novas perguntas que apontem para saídas coletivas. Esse projeto resultará em alguns encontros presenciais, uma série de reportagens, entrevistas em vídeo e um livro.

Breve retrospectiva

Há outros desafios no horizonte, que valem ser citados brevemente, em uma espécie de retrospectiva Outra Saúde:

Do ponto de vista das políticas públicas, a marca do ano foi a chegada de Alexandre Padilha no Ministério da Saúde e o lançamento do programa Agora Tem Especialistas – que se propõe, em tese, a dar soluções a uma demanda essencial, mas complexa, da população para o SUS. 

Como nossas matérias buscaram mostrar, o acesso a médicos, exames e cirurgias é central para melhorar a vida dos brasileiros. Mas há de se questionar até que limite as parcerias com o setor privado, ainda que em contexto de emergência, contribuem. E cobrar que não se esqueça de fazer mudanças estruturais para que o sistema público possa, no futuro, cuidar da população sem precisar das corporações…

Muito se falou em soberania, em 2025, e em nossas páginas buscamos levantar o debate da reindustrialização do Brasil, que poderia ter a saúde como uma de suas indutoras. Ela inclusive tem papel prioritário na política do governo. Mas como anda o Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS)? No final deste ano, uma grande notícia: a aprovação de uma vacina brasileira para proteger contra a dengue, a primeira em dose única no mundo, é um grande avanço e pode mudar o jogo no combate à doença. 

No entanto, há ao menos dois questionamentos que levantamos em nossas reportagens e entrevistas. O modelo de Parcerias de Desenvolvimento Produtivo (PDP) adotado para acelerar o CEIS, que transfere tecnologia de empresas estrangeiras para o Brasil, deveria ser prioritário? Perante as ameaças do governo Trump e uma Big Pharma que impede o acesso a medicamentos a quem mais precisa, não seria o momento de questionar o modelo de propriedade intelectual e, como já foi feito anteriormente, quebrar patentes?

Há outros aspectos negativos relacionados à produção de fármacos no Brasil: em um enorme passo atrás, foi desmontado o sistema de controle social das pesquisas e estudos clínicos com voluntários humanos. A instituição, pelo Congresso Nacional, de um Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos extinguiu a Conep, um rico sistema que impede que grandes empresas utilizem brasileiros como cobaias, de forma antiética. O que fazer agora?

Outro flanco em disputa no que diz respeito ao acesso ao SUS é a digitalização da saúde. Como garantir que esse processo sirva para melhorar o atendimento aos brasileiros – e não para entregar um grande volume de dados da população nas mãos das corporações mais poderosas do mundo? O Brasil terá infraestrutura nacional e pública para garantir autonomia de seus sistemas? O atendimento médico será ampliado ou robotizado? Trabalhadores do SUS ficarão reféns de sistemas de controle?

Falando em trabalho: as lutas contra a precarização – impulsionada pela financeirização veloz do setor da saúde – também foram pauta frequente ao longo dos últimos meses. São Paulo é uma vitrine da privatização sorrateira da gestão pública, mas também mostrou que há resistência contra o desmonte. 

Acompanhamos algumas das lutas: dos enfermeiros “quarteirizados” do Hospital Emílio Ribas; contra o desmonte do hospital estadual e da maternidade municipal dos servidores. Nos hospitais universitários do estado, há ataques na USP, Unifesp e Unicamp. E, em meio às disputas, o Conselho Municipal de Saúde da capital também mostrou que deve haver limites à inação da prefeitura.

O mal-estar em 2025

Circularam por nossos boletins reflexões sobre uma outra faceta no que diz respeito ao trabalho: e quando ele próprio é fator de adoecimento? A pergunta remete a questões físicas, como acidentes, por exemplo – que têm aumentado em tempos de uberização. Mas, nos tempos atuais, torna-se incontornável pensar a saúde mental e como o trabalho – precarizado, atomizado, desvalorizado – está sendo fator de aumento do sofrimento psíquico. “Enfrentaremos a questão com mais diagnósticos?”, pergunta Cláudia Braga, uma de nossas colunistas.

E por falar em diagnósticos, como lidar com o que se chama de medicalização da vida? Pensadores da saúde mental vêm questionando o aumento vertiginoso no consumo de medicamentos para tratar transtornos psiquiátricos. O que está por trás dele? Por que as pessoas buscam, nos diagnósticos, a definição de suas identidades? Se é certo que de perto ninguém é normal, quais as alternativas para reverter essa tendência?

Aos 100 anos do filósofo e revolucionário martinicano Frantz Fanon, ajudamos a resgatar uma das influências pouco conhecidas daquele que desvelou os efeitos psíquicos e políticos da violência colonial. Ele teve papel decisivo para que o psiquiatra italiano Franco Basaglia rompesse de vez com as instituições manicomiais. No Brasil, por sua vez, Basaglia foi fundamental para a Reforma Psiquiátrica, que instituiu o cuidado em liberdade de pessoas em sofrimento psíquico. Mas 2025 também mostrou que essa batalha não chegou ao fim…

Nos últimos anos, ganham força e poder as chamadas Comunidades Terapêuticas (CTS) – que nada têm de comunitárias, nem promovem boa terapia. Trata-se de entidades religiosas que perpetuam violência e abusos contra vulneráveis – versão moderna dos manicômios, mas privatizados. Proliferaram, apesar de contrariarem os princípios da Reforma Psiquiátrica. Por que elas continuam a ter tanto respaldo, mesmo em um governo que encampa a defesa do SUS? 

Um ano violento

A escalada de múltiplas violências, aliás, se fez presente no cotidiano brasileiro. O ano ficou marcado pela assombrosa chacina do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro, no final de outubro. Permanecemos aturdidos e sem encontrar uma saída. Um “SUS” da Segurança Pública, com participação social e planejamento federal, pode ser um caminho. Mas, para além da violência policial, como interromper também o aumento nos feminicídios?

Ainda no campo da violência institucional e das possíveis reparações, Outra Saúde fez um esforço para entender as formas de o SUS contribuir para reduzir os efeitos do racismo na sociedade brasileira. Como pessoas negras são atendidas nos serviços públicos, onde são maioria? Por que mães pretas ainda morrem mais e sofrem mais negligência no parto? O que é o racismo ambiental e quais seus efeitos?

Outra luta importante do movimento negro, em 2025, foi pela criação de uma Política Nacional de Saúde Integral para a População Quilombola. Como mostrou recente estudo, essas comunidades vivem em uma situação preocupante para sua saúde, além de serem vítimas de conflitos no campo, mas não recebem a atenção devida do sistema público. O momento pede transformações

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A partir de amanhã, a redação do Outra Saúde desliga os computadores para descansar e se preparar. Em 2026, essas batalhas continuam e outras despontam – estaremos atentos a elas. Em nossa produção editorial, mergulharemos nesses 40 anos que nos separam da 8ª Conferência, mas em especial no que o Brasil pode aprender com ela nos anos que temos adiante.

Contamos com a participação de quem nos lê para que esse esforço alcance mais pessoas. E, mais importante que isso, para nos apontar para onde ainda não conseguimos enxergar. Estamos sempre abertos para novas pautas, publicação de artigos, recomendação de leituras e críticas.

O próximo boletim será disparado em 14/1, uma quarta-feira. Já se inscreveu? Até lá!

Um grande abraço,

Redação Outra Saúde


* Outra Saúde, Instituto Walter Leser (IWL/FESPSP), Fundacentro (MTE) e Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da FCMSCSP foram os organizadores do seminário SUS 35 anos.

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