Como a solidariedade a Gaza chacoalhou a Itália?
Na esteira das greves dos trabalhadores portuários, atos para denunciar o genocídio levaram multidões às ruas. Sua força: a consciência de que “regime de guerra global” impacta as condições de vida locais e de que os bloqueios de portos são grandes armas de pressão política
Publicado 15/12/2025 às 18:44

No dia 28 de novembro, foi convocada uma greve geral pela USB (União Sindical de Base), o sindicato que esteve fortemente envolvido em todas as manifestações ocorridas durante o “bimestre dourado italiano”, entre setembro e outubro deste ano. A Palestina manteve-se como tema central da mobilização, que viu, desta vez, uma maior articulação com outras questões, relacionadas com as condições de vida e de trabalho na Itália — e não só.
Em Gênova, a cidade onde tudo começou com o bloqueio dos navios efetuados pelos estivadores do CALP (Coletivo Autônomo dos Trabalhadores Portuários), mais de 10 mil manifestantes aderiram à greve, com uma elevadíssima presença de estudantes e jovens.
No dia seguinte, houve uma manifestação nacional em Roma, onde participaram cerca de 100 mil pessoas, convocada ainda pela USB e outras organizações políticas e da sociedade civil. Também ali, aquela presença juvenil destacou-se como um dos elementos marcantes da multidão que encheu a Praça de San Giovanni.
Nesses dois dias de mobilização geral, o slogan continuou a ser o que Riccardo Rodino, estivador do porto de Gênova, gritou no megafone, à frente de 40 mil pessoas numa noite dos dias finais de agosto: “Se eles [os militares israelitas] fizerem-lhes alguma coisa [à tripulação da Global Sumud Flotilla], do porto de Gênova não sairá nem um prego. Bloqueemos tudo!”. Uma frase que deu volta ao mundo inteiro, traduzida e gritada em muitas línguas. Riccardo — que os seus companheiros do CALP chamam carinhosamente de “vecchio” (velho) — tornou-se, sem que ele quisesse (com o seu ar um pouco acanhado), uma das pessoas mais conhecidas nos movimentos globais para a Palestina livre.
Quer-se aqui salientar três elementos que caracterizam hoje o movimento que levou às ruas de quase todas as cidades italianas por volta de dois milhões de pessoas, desde o início de setembro. Isso, em função de vislumbrar as perspectivas — se não garantidas, certamente esperadas — do movimento no próximo futuro.
O primeiro tem a ver com a persistência do movimento em si: contrariamente ao que havia sido apressadamente previsto, a mobilização não acabou com a falsa “paz” de Trump na Palestina. A narrativa proposta pela mídia mainstream não foi acolhida favoravelmente por quem acompanha, em outros meios, as execuções a sangue-frio, os abusos, a destruição de casas e terras, perpetradas por colonos protegidos pela IDF — e pela IDF mesma. Algo sedimentou naqueles dois meses, permanecendo vivo na consciência de muitos: não há justiça na paz proclamada pelos assassinos e pelos seus sustentadores.
Este não é um elemento secundário. Marca, aliás, uma consolidação daquilo que foi descrito nessas mesmas páginas como uma postura ética, um orgulho de estar ali, por parte de muitos que nunca haviam participado em manifestações de praça.
A ética está diretamente ligada ao político, sobrepõem-se uma à outra de formas diferentes. Neste caso, a ética toma a função de um “falar a verdade” no espaço público, que se torna logo um ato de crítica. É aí, nas praças, nas escolas e universidades, nos lugares de trabalho, nos bairros, onde aquele ato surge como uma força capaz de transformar a nós mesmos. “Falar a verdade” não é somente propor uma leitura diferente de fatos: é tomar uma posição que não deixa de ser um ato político.
É uma posição que transborda, ainda que utilizando as redes sociais, toma posse de um espaço público, faz da visibilidade o ponto de força. É o mesmo que acontece em muitos contextos pelo mundo afora. As bandeiras da paz, da Palestina, da USB, dos grupos políticos da esquerda são acompanhadas pela bandeira do Jolly Roger de One Piece: crânio sorridente, ossos cruzados e chapéu de palha.
O segundo elemento tem a ver com a acima mencionada articulação de tópicos que entraram nesses dois dias de mobilização.
A Palestina é uma questão global, porque a Palestina é a Palestina Global. Isso significa ver no genocídio do povo palestiniano o aspecto mais trágico de uma lógica que reorganiza a ordem global em torno da guerra. A guerra permanente, portanto, como elemento não excepcional da reestruturação do padrão de relações globais — políticas, econômicas, energéticas, ambientais, raciais — que constituem um verdadeiro “regime de guerra global”, assim definido por Sandro Mezzadra e Michael Hardt.
Essa consciência aparece com clareza em cada manifestação, reunião, assembleia, na medida em que reconhece nesse regime o envolvimento da inteira cadeia de produção, tanto de bens, como da ordem “policial”. Escusado será dizer que no seu topo estão as big techs estadunidenses, como já foi descrito inúmeras vezes — e com muita clareza — nestas páginas. Igualmente, seria redundante relembrar como os governos do mundo multipolarizado jogam — cada um com base no próprio interesse e capacidade de influência — o papel que mais lhes convém.
Uma consciência que, enfim, não poupa as escolhas tomadas pelo governo italiano e os centros de poder econômico e financeiro (igualmente a outros países europeus, com a Alemanha a liderar o rol dos piores) em relação às prioridades no planejamento orçamentário do Estado. A relação entre as medidas tomadas no cenário exterior e as que têm um impacto direto sobre a vida cotidiana das pessoas não deixa dúvidas a ninguém.
Eis, então, a multidão que encheu as ruas nos dias finais de novembro e enxergou, como parte da mesma estratégia tanatopolítica, os povos vítimas das brutalidades e do cinismo assassino; as famílias que renunciam aos tratamentos médicos e hospitalares; que mudam hábitos de alimentação; que não conseguem pagar a renda da casa onde moram, por falta de meios financeiros. Da mesma maneira, ligam-se àquelas de trabalho e de vida — e de morte — nos países do Sul Global, os primeiros elos da longa cadeia de abastecimento do capitalismo belicista das plataformas.
Mas há também um outro nível de consciência, que constitui o terceiro elemento de caracterização do movimento. O regime de guerra, na sua forma multifacetada, necessita de um aparato logístico plenamente em função. A guerra e a logística, como se sabe, andam de mãos dadas há séculos. Não há guerra sem logística, assim como não há logística sem uma organização “militar” dos fluxos de abastecimento ao longo das inteiras cadeias.
A estrutura que a logística assumiu na era da intermodalidade pressupõe uma ligação estreita entre as diferentes fases que a compõem. Os portos, neste sentido, têm desempenhado um papel central. Isso, a partir da revolução introduzida pelo contêiner nos anos 80, como meio de arrumação, manuseamento e transporte de quase qualquer tipo de mercadoria. O contentor transformou o transporte — antes fragmentado — numa única linha ininterrompida, como escreve Andrea Bottalico no seu ensaio La logistica in Italia.
Para termos uma ideia clara da importância do transporte marítimo por meio dos contêineres, basta recordarmos os dias em que um navio em avaria bloqueou o Canal de Suez em março de 2021. Houve o pânico geral, com os preços disparando por causa da escassez de componentes essenciais para muitos setores industriais. E isso durou somente uma semana.
O porto, em suma, deixa de ser apenas uma etapa na linha que conduz do escoamento das matérias-primas até à entrega ao cliente final, para se tornar o centro estratégico das operações logísticas. A privatização dos portos — e Gênova não constitui uma exceção — com a entrega da movimentação nos cais aos operadores privados, foi a guinada que sublinhou essa centralidade.
Disso têm plena consciência os estivadores do CALP — que organizam o bloqueio dos navios com carga de armas desde 2019 — assim como todos os outros sujeitos que articularam as próprias lutas com a dos estivadores. “Articular entre” é diferente de “convergir em”.
Uma consciência que contagiou os trabalhadores de outros portos, tanto na Itália, como em outros países europeus (Grécia, Chipre, França, Espanha e, em alguma medida, Portugal). O “bloqueemos tudo” do Riccardo tornou-se a palavra de ordem que acompanhou as mobilizações em muitas cidades contra o regime de guerra para o qual querem nos arrastar — ou para o qual já estamos arrastados.
O destino deste movimento não é uma questão facilmente previsível. Inúmeras são as variáveis de diferente natureza que poderão afetá-lo. O que parece não deixar dúvidas é a visão que temos de reforçar sobre o contexto de referência da luta mesma. A tarefa de cada um de nós é trabalhar para sua crescente extensão e internacionalização, como, de resto, já está acontecendo.
Isso passa pela construção de mais articulações ao longo da cadeia de abastecimento, a montante e a jusante, no interior e no exterior. Seria fundamental procurar alianças com os trabalhadores da indústria siderúrgica que estão vivendo dias dramáticos, com os do “último milha”, dos armazéns das grandes centrais de distribuição, que têm sofrido ameaças, violência, despedimentos, para terem organizado greves ou piquetes.
Da mesma maneira, as forças da sociedade civil estão produzindo conteúdos que enriquecem e deslocam a luta para outros níveis, como no caso da Weapon Watch e das demais organizações de voluntariado.
A força do movimento está no seu devir, na sua capacidade de mudar os seus alvos, as suas articulações, as suas estratégias, sempre que for preciso.
A logística não estará parada no que ela é hoje, tampouco o inteiro ciclo de valorização de que a logística constitui o centro nevrálgico. Como sempre ocorreu nos momentos de alta conflictualidade, os adversários das classes populares encontrarão as medidas para tentar travar as mobilizações.
Isso sucederá tanto nos portos, como nos outros lugares de trabalho, nas escolas e universidades, assim como em qualquer outra realidade onde haja alguém que queira bloquear tudo, em nome de um futuro que queremos começar a frequentar desde já.
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