Ruas, artistas, democracia: resposta a um Congresso capturado
Protestos em várias cidades contra o PL da Dosimetria revelam a força simbólica e política do engajamento cultural, a retomada das mobilizações de massa pela esquerda – e o isolamento de um Parlamento cada vez mais voltado à autoproteção e distante das demandas sociais
Publicado 15/12/2025 às 19:48

Neste domingo (14), dezenas de milhares de pessoas foram às ruas em diversas cidades do Brasil, nas capitais de estado e em municípios médios, para protestar contra o chamado PL da Dosimetria, que reduz penas para os condenados do 8 de Janeiro, com a intenção explícita de aliviar as punições para o ex-presidente Jair Bolsonaro e outros envolvidos na trama golpista.
Além da pauta principal em comum, as mobilizações exibiam faixas como “Congresso inimigo do povo”, refletindo um mote que já se popularizou nas redes sociais e traduz a insatisfação das pessoas em relação ao Legislativo, ensimesmado em suas próprias pautas e pouco permeável a uma agenda que tenha relação real com a vida e o bem-estar da população.
Os atos podem ser considerados mais um passo na consolidação de uma retomada da mobilização de rua como estratégia de disputa política por parte da esquerda. Com a direita e a extrema direita dominando o espaço público para realizar suas manifestações há anos, o campo progressista já havia levado multidões às ruas em atos contra a PEC da Bandidagem, em um momento no qual os bolsonaristas já não conseguem ocupar as ruas como antes.
Não deixa de ser simbólico que dois atos que aconteceram quase simultaneamente em trechos diferentes da Avenida Paulista, no domingo retrasado (7), tenham sido tão contrastantes. De um lado, a manifestação contra o aumento dos casos de feminicídio e outras formas de violência contra as mulheres reuniu 9,2 mil pessoas, segundo metodologia do Monitor do Debate Político do Cebrap, em parceria com a ONG More in Common. De outro, um ato bolsonarista pela anistia reuniu aproximadamente 1,4 mil pessoas.
Artistas no centro do palco
Um aspecto importante a se destacar, tanto nas mobilizações contra o PL da Dosimetria quanto naquelas contrárias à PEC da Bandidagem, em setembro, é a efetiva participação de artistas na convocação dos atos e nos próprios eventos. No Rio de Janeiro, que contou com os maiores públicos do Brasil tanto em uma quanto em outra ocasião, a manifestação foi batizada de “Ato musical 2: o retorno”, moldando o caráter de continuidade e de adesão de artistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Paulinho da Viola, Emicida, entre muitos outros.
Caetano foi um dos primeiros a convocar o ato anterior, e a produtora Paula Lavigne articulou a presença de boa parte dos artistas que estiveram em ambos os atos. Também houve divulgação nas redes sociais do 342 Artes, coletivo do meio artístico que tem na empresária uma de suas lideranças e aposta no ativismo digital.
Não foi somente em Copacabana que os artistas se mobilizaram. A cidade de Fortaleza (CE), por exemplo, contou com nomes como Selvagens à Procura de Lei, Vanessa A Cantora, Lorena Nunes, Belinho, Natasha Faria e Daniel Groove; em Belo Horizonte (MG), estiveram nos atos Renegado, Rafa Ventura, FBC, Julia Rocha, Clara Tanure, Flávio Boca e Di Souza; em João Pessoa (PB), o ato teve Escurinho, Ruanna, Cida Alves, entre outros. As intervenções têm peso para ampliar o efeito dos atos no meio digital, com diversos trechos de apresentações circulando por muito tempo após os eventos e assegurando maior perenidade. Afinal, nas batalhas políticas atuais, o que acontece no ambiente virtual depois do ato nas ruas é tão ou mais crucial do que a manifestação em si.
A articulação para o chamamento às ruas e a participação de pessoas do meio artístico tem diversas dimensões. A mais óbvia é a capacidade de mobilização, abrindo a possibilidade de atrair um público que, inclusive, poderia estar alheio ao debate político sobre temas fundamentais, seja por falta de interesse, seja em função da corrente contínua de desinformação promovida pela extrema direita nas redes sociais e da omissão da cobertura da mídia tradicional. É possível perceber a forte presença de setores da classe média, algo importante, levando-se em conta que se trata do segmento que costuma ser o principal alvo da captura de atenção exercida pelos extremistas.
Essa disputa pela atenção é essencial no embate político-ideológico atual, no qual a esquerda ainda perde, mas conseguiu reduzir, nos últimos meses, sua desvantagem em relação à direita. Nesse sentido, o potencial do engajamento de artistas não pode ser desprezado, tanto pelo alcance de seus milhões de seguidores nas diversas plataformas quanto por chegarem a nichos muitas vezes refratários à política. Não à toa, o meio artístico costuma ser atacado pelo bolsonarismo, que usou e ainda utiliza o espantalho da Lei Rouanet — imperfeita, mas distorcida de forma venal no discurso extremista — para acuar e censurar adversários.
Existe ainda uma dimensão simbólica importante: integrantes de movimentos culturais foram fundamentais em outros momentos de mobilização popular que marcaram a história recente do Brasil, como nas Diretas Já, na construção da resistência à ditadura e em outras ocasiões, como na própria campanha eleitoral de 1989, a primeira após a redemocratização. Embora muitos, faça-se justiça, jamais tenham deixado de participar de forma ativa da discussão política, o engajamento de novos nomes e o retorno de outros para atuar de forma mais efetiva em um cenário crítico do país são movimentos muito bem-vindos.
O Congresso Nacional na mira
Também é necessário lembrar aquilo que foi o motor das manifestações: a atuação do Congresso Nacional, em particular da Câmara dos Deputados. Já há algum tempo é o Legislativo o centro da crise institucional brasileira, que assumiu caráter permanente. Talvez quem tenha definido com mais precisão e de forma direta seu desempenho tenha sido a atriz Fernanda Torres, na manifestação do Rio de Janeiro. “Nós ainda estamos aqui pelas florestas brasileiras, pelos direitos da mulher, pela democracia. Nós estamos aqui para acordar o Congresso, galera. Eles não podem trabalhar para si mesmos”, disse ela.
Esse alheamento da elite política não constitui novidade nem no Brasil nem em boa parte do resto do mundo, mas o nível e a desfaçatez do atual Parlamento em legislar em causa própria, sim. As chamadas emendas de relator (RP9), que passaram a ser conhecidas como orçamento secreto, após sofrerem restrições em sua utilização, abriram espaço para as emendas Pix, transferências especiais feitas diretamente para estados e municípios, muitas vezes sem necessidade de convênios ou projetos, além das emendas de comissão (RP8). Esses mecanismos representam um avanço nas prerrogativas do Legislativo e, acreditam os parlamentares, lhes dão uma espécie de salvo-conduto. Com recursos públicos, amarram politicamente articulações locais que facilitariam suas reeleições.
Como quase todos os deputados (e também os senadores, em algum nível) precisam de nichos de votos para assegurar seus lugares, julgam-se no direito de propor e votar medidas impopulares que não vão prejudicar seus projetos eleitorais imediatos. É a mobilização social que altera essa balança e faz com que os ocupantes do Parlamento façam algo que têm feito muito pouco: prestar contas de seus atos à sociedade.
Foi assim que se barraram absurdos como o infame PL do Estupro e a PEC da Blindagem/Bandidagem. O presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, Otto Alencar (PSD-BA), tem declarado que, da forma como foi concebido, o PL da Dosimetria não será aprovado pelo colegiado. Os atos realizados neste domingo foram citados por ele em entrevista à GloboNews, nesta segunda-feira (15), na qual afirmou que as manifestações “contribuem bastante, sobretudo com pessoas que estiveram lá no passado, contra a ditadura militar, defendendo a democracia e sabem da sua importância”. Um sinal evidente de que o Parlamento vê o que se passa nas redes e nas ruas.
O fato de o Senado ter sido a Casa que mais vezes evitou que o mal produzido pelos deputados se concretizasse — em geral, como resposta a mobilizações — mostra a importância de se voltar a atenção para as eleições legislativas. O bolsonarismo já assumiu ter como um de seus principais objetivos, se não o principal, conquistar ao menos metade das vagas em jogo para a Câmara Alta nas eleições de 2026, o que tornaria mais difícil barrar iniciativas contrárias ao interesse social e acirraria o conflito institucional.
Este, aliás, talvez seja o desafio político mais complexo para o campo progressista: reduzir o desequilíbrio de forças no Legislativo em um sistema que, pela sua própria concepção e com condições agravadas nos últimos anos, favorece a direita. Nesse contexto, além de sair de uma agenda reativa e passar a defender bandeiras capazes de mobilizar e produzir melhorias concretas na qualidade de vida das pessoas, como o fim da escala 6×1 e a Tarifa Zero, resgatar a reforma política como pauta futura é essencial para discutir, em uma nova legislatura, mudanças que aproximem mais o poder público da população.
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