Crônica: A sala de aula como espaço de resistência

Ensinar não é só transmitir saberes, mas habitar linguagens, narrativas, símbolos e memória coletiva. É uma troca. Escola não é prédio, mas encontro. Lá, o professor se reinscreve apesar da pedagogia tecnocrática imposta – e a esperança respira

.

Num país como o Brasil, manter a esperança viva
é, em si, um ato revolucionário.
Paulo Freire

Final de ano… e a contagem regressiva já começou na escola. Nesta época do ano, o cansaço se torna mais visível, ao mesmo tempo em que os corredores parecem respirar com um pouco mais de alívio. Mas o tão esperado sossego é apenas ilusório — sobretudo para os(as) docentes contratados(as). Não há garantias de retorno no próximo ano.

Fazer um bom trabalho não é suficiente quando o mérito é medido apenas por números.

Durante todo o ano letivo, alunos e alunas são subordinados a variadas avaliações, e nós, docentes, também. A educação, cada vez mais, parece girar em torno de índices — e não de pessoas.

Ensinar, hoje, é caminhar sobre um terreno movediço, onde cada passo parece exigir mais fé do que certeza.

Sou professora sob contrato temporário — e, talvez por isso, compreenda mais intensamente o que é o “provisório”. Mas a verdade é que toda a docência é provisória: cada aluno que passa, cada aula que se encerra, cada governo que muda de rumo e reduz ainda mais o espaço das Humanas no currículo escolar.

Ainda assim, sigo tentando resistir.

Há dias em que entro na sala e sinto o peso do desalento pairando sobre as carteiras. O olhar dos estudantes reflete a mesma exaustão que o meu. Tentamos sobreviver num sistema que valoriza o resultado, não o processo; o número, não o sentido. Mesmo assim, sigo apostando que cada conversa, cada provocação e cada silêncio compartilhado ainda podem gerar algum tipo de transformação. Talvez pequena, quase invisível — mas real.

1. O chão movediço da docência contemporânea

A educação brasileira vive uma contradição profunda: é cobrada como salvação nacional, mas é tratada como despesa. Dessa forma, precariza-se ano a ano o trabalho docente. E essa constante insegurança à qual estão sujeitos todos e todas que trabalham na educação, somada à fragmentação das políticas educacionais, corroem o sentido de missão que antes nos movia. Assim, o que deveria ser um projeto coletivo de emancipação tornou-se, para muitos, apenas um emprego de sobrevivência.

Anísio Teixeira, ainda no século XX, já denunciava que sem uma escola pública forte, não há democracia verdadeira. Sua defesa da educação integral e laica era, no fundo, um chamado à dignidade nacional. Hoje, ao ver professores e professoras lutando por contratos temporários e trabalhando em duas ou até três escolas para que possam ganhar um salário que lhes proporcione o mínimo de dignidade, sinto o peso de sua advertência.

Paulo Freire, por sua vez, nos lembra que a esperança não é cruzar os braços e esperar, mas se levantar e lutar. E essa esperança — do verbo esperançar — que ainda me faz permanecer. Sigo nesse caminho onde ensinar se tornou verdadeiramente um ato de resistência: um gesto ético diante da barbárie e da indiferença.

2. O corpo do educador como território de luta

Hoje em dia, ser professora temporária é viver em constante suspensão: não pertencemos totalmente à escola, e ela também não parece nos pertencer. Mas, paradoxalmente, é nesse estado de incerteza que percebi a força do pertencimento simbólico — o que nasce do vínculo com os alunos e alunas, e não do contrato com o Estado.

É nesse espaço, que lanço provocações, mesmo quando o silêncio da sala ecoa o desânimo que também me atravessa. Pois apesar do meu pouco tempo na área educacional, meu corpo já carrega cicatrizes invisíveis: a sobrecarga, a instabilidade, o cansaço de ensinar em tempos de descrença — e, sobretudo, em tempos de ataques constantes aos profissionais da educação, em especial professores e professoras de Humanas. Somos acusados(as) de doutrinar, quando, na verdade, o que vejo é um corpo docente que tem, cada vez mais, se submetido, sem crítica, à lógica mercadológica que tomou a educação de assalto. Não é para menos que muitas escolas — públicas! — passaram a chamar alunos e alunas de clientes.

Esse vocabulário, que tem sido cada vez mais verbalizado pelos(as) docentes tão acriticamente, revela a vitória simbólica do capital sobre o sentido da escola. Quando o estudante vira cliente, o conhecimento se transforma em produto, e o professor em mero prestador de serviço.

Bell hooks chamaria isso de domesticação do espírito: o momento em que o medo e o cansaço nos fazem confundir submissão com profissionalismo. E Boaventura de Sousa Santos diria que vivemos sob uma “epistemologia da cegueira” — uma aceitação passiva das injustiças e absurdos diários como se fossem naturais.

Mas não são!

Nada disso é natural.

A docência ainda é — e precisa continuar sendo — território de luta, lugar de conflito, de reinvenção e de sentido.

3. A sala de aula como microcosmo de resistência

Em sala, tento criar brechas: rodas de conversa, dramatizações, provocações que convidem à escuta e à reconstrução de sentido.

São nesses momentos que sinto o que Vygotsky chamou de Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP): o espaço entre o que os alunos e alunas já sabem e o que podem vir a saber, se houver diálogo, confiança e mediação. É também o espaço entre o que eu sou e o que ainda posso me tornar como professora.

Ao ler James V. Wertsch, percebo que essa ponte se alarga: a Aproximação Sociocultural que ele propõe nos lembra que o pensamento é sempre mediado pela cultura e que ensinar é criar contextos onde o aprender se torna uma prática social. Consequentemente, não se trata apenas de transmitir saberes, mas de habitar linguagens, narrativas, símbolos e memórias coletivas. O saber não surge de forma isolada, mas do coletivo, da troca: muitas vezes, um ajuda o outro a avançar, a lembrar, a interpretar.

A educadora Nilse Mascellani dizia que o aprender deve ser experiência sensível, poética, criadora. E José Pacheco, com sua pedagogia das comunidades de aprendizagem, reafirma que a escola não é prédio, mas encontro.

Quando misturo teatro com debate, quando provoco os estudantes a reconstruírem o que foi dito na aula anterior, estou, ainda que de forma bastante limitada ao tempo dentro da sala de aula, ecoando todos eles: Freire, Vygotsky, Wertsch, Nilse e Pacheco — e também ecoando a mim mesma, naquilo que ainda acredito ser possível.

Nesses momentos, a sala de aula se torna, então, microcosmo de resistência, onde o humano se reinscreve apesar do caos burocrático e de todas as limitações impostas. Ali, entre risos, dúvidas e olhares perdidos, a esperança ainda respira.

4. Contra a pedagogia tecnocrática: o chamado à rebeldia

Vivemos sob o império da pedagogia tecnocrática, que transforma a educação em mercadoria e os professores(as) em meros executores de planilhas. Querem nos convencer que ensinar é somente cumprir metas. Mas não há algoritmo capaz de substituir o brilho de um olhar quando alguém finalmente compreende o que parecia impossível.

Dermeval Saviani já alertava que a pedagogia do capital reduz a formação humana à capacitação técnica. E Anísio Teixeira sonhava com uma escola pública que libertasse, não que domesticasse.

Essa domesticação é o que o neoliberalismo faz conosco: tenta arrancar da escola o que ela tem de mais humano — o encontro, o diálogo, o erro, o tempo do pensar.

Por isso, reafirmo: ensinar é um ato de desobediência amorosa. É dizer “não” ao automatismo, “sim” à dúvida, “sim” à criação.

A educação não cabe nas metas de desempenho porque o pensamento não se mede — ele floresce.

E quando tudo parece ruir —quando as humanas são reduzidas, quando colegas se acomodam e se calam —, procuro lembrar que a resistência começa na palavra, na arte, na conversa, no gesto de não desistir.

Isso não significa que eu não tenha dúvidas… muitas dúvidas. Mas talvez sejam elas que ainda me mantêm em movimento, “esperançando”. Porque esperançar: é verbo, é ação, como apontava Freire.

A escola não é ruína: é trincheira! E cada aula que insisto em dar é, em si, um ato político.

Sigo, dessa forma,

 com a certeza de que a docência é resistência, e resistir é a forma mais bela de ensinar.

“Vem, vamos embora, que esperar não é saber.
Quem sabe faz a hora, não espera acontecer.”
— Geraldo Vandré

Influências teóricas


Este ensaio foi inspirado nas reflexões de Paulo Freire, Lev S. Vygotsky, James V. Wertsch, Boaventura de Sousa Santos, bell hooks, Nilse Mascellani, José Pacheco, Anísio Teixeira e Dermeval Saviani, cujas obras continuam a iluminar os caminhos da educação crítica e humanizadora, além da beleza revolucionária dos versos de Geraldo Vandré.

Sem publicidade ou patrocínio, dependemos de você. Faça parte do nosso grupo de apoiadores e ajude a manter nossa voz livre e plural: apoia.se/outraspalavras

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *