Como a prefeitura de S.Paulo ataca a Cultura
Bloco Ilú Obá, Festa da Consciência Negra, Flipei, Teatro Contêiner … Multiplicam-se as restrições arbitrárias a eventos na capital paulista. E investigação sugere padrão: recursos para produções ligadas à diversidade caem 70%
Publicado 27/11/2025 às 17:18

Por Lucas Veloso, no Nonada
São Paulo (SP) — Na tarde de 1º de agosto, tudo parecia certo. Depois de seis meses de reuniões, vistorias e trocas de e-mails com a Fundação Theatro Municipal, vinculada à Secretaria Municipal de Cultura, a equipe da Festa Literária Pirata das Editoras Independentes (Flipei) deixava a última reunião técnica às 17h com a confirmação de que o evento estava aprovado para começar cinco dias depois.
Às 20h, o telefone tocou. Do outro lado da linha, a superintendente da Organização Social Sustenidos informava que o festival havia sido cancelado. Nenhum aviso prévio, nenhuma reunião. O ofício, assinado pelo diretor da Fundação, Abraão Mafra, comunicou a decisão unilateral de romper a parceria, a apenas três dias da montagem.
A justificativa dizia que o festival “atrapalharia o cronograma pedagógico das escolas de música e dança” e apresentava “caráter político-ideológico”. Na prática, significava barrar uma feira gratuita, com 180 editoras independentes e debates sobre temas como literatura, feminismo, segurança pública, Palestina e o direito de existir na cidade.
A notícia caiu como um raio entre os organizadores. A programação estava toda divulgada nas redes sociais e aprovada há quinze dias. As escolas citadas no ofício, inclusive, tinham participado das tratativas para dividir os espaços.Na manhã seguinte, o que seria montagem virou operação de emergência: transferir, em tempo recorde, uma estrutura para outro local, sem perder os 50 mil visitantes esperados.
Segundo artistas e coletivos culturais ouvidos nesta reportagem, o episódio da Flipei expôs mais do que o veto a um evento, revelou um modo repetitivo de cancelamento das ações culturais em São Paulo, sobretudo quando envolve atividades que discutem pautas sociais, como racismo e machismo, além de ações ligadas à comunidade LGBTQIA+.
“Esse tipo de arbitrariedade não é isolado. A política cultural da atual gestão municipal tem se mostrado hostil à produção independente e às expressões populares. A tentativa de fechamento do Teatro de Contêiner, na região central, e a demolição do Teatro Vento Forte, histórico espaço da resistência artística paulistana, são exemplos claros de uma mesma lógica: uma cidade onde o teatro ou é para ricos — ou é demolido”, pontua Rafael Limongelli, um dos diretores da FLIPEI. “A perseguição à nós, portanto, não é exceção: é sintoma de uma tentativa sistemática de silenciar a cultura crítica, coletiva e libertária”. emenda.
Dados obtidos via LAI confirmam queda
Dados obtidos pelo Nonada via Lei de Acesso à Informação, com informações do período entre 2020 e 2025, mostram uma sequência de cancelamentos e reduções significativas em eventos voltados à cultura negra e à população LGBTQIA+ na cidade. As informações incluem planilhas de atividades suspensas e dados orçamentários de projetos temáticos.
No total, a planilha “Atrações Canceladas” lista dezenas de eventos cancelados ou impedidos de ocorrer mesmo após aprovação. O padrão se acentua entre 2023 e 2025, atingindo principalmente programações da Virada Cultural, da Virada da Consciência, divulgado como o ‘maior festival de Consciência Negra da América Latina’, e a Feira Cultural da Diversidade LGBT+. Entre os casos estão o cancelamento do show do rapper Dexter na Virada da Consciência 2023, a suspensão de apresentações da 24ª Feira Cultural da Diversidade LGBT+, como Amanda Mittz, Julian Santt e Pagode da Sasa, da Parada do Orgulho LGBT+, e da 4ª Parada LGBT+ do Grajaú.
Em 2024, a Festa da Consciência Negra da Vila Matilde teve toda a programação musical suprimida, afetando artistas como Bloco das Cachorras, Be Lourenço, Kako Chocolata, Anderson Tobias e Fabiana Bombom .
Os motivos oficiais registrados nestes documentos são descritos como “ajustes orçamentários”, “duplicidade de reserva”, “problemas de documentação” ou “falta de retorno do proponente”, sem maiores justificativas sobre a tomada de decisão. Na prática, o resultado é a suspensão às vésperas de atividades culturais realizadas por trabalhadores da cultura de grupos historicamente marginalizados.
Menos dinheiro para Cultura
Nos arquivos enviados, a própria Secretaria reconhece queda no investimento e no número de atividades culturais ligadas à diversidade a partir de 2024. Nos projetos voltados à população LGBTQIA+, os recursos caíram de R$ 236,5 mil, em 2023, para R$ 65,2 mil, em 2024, e R$ 67 mil, em 2025, com o total de eventos reduzido de 64 para 19 e depois para 17. Em dois anos, a queda de investimentos ligados à diversidade foi de 70%.
No caso das Culturas Negras, houve alta pontual em 2024, com R$ 623,8 mil e 157 ações, mas o número de eventos despencou em 2025 para 60, com o orçamento reduzido a R$ 276 mil. A mesma tendência aparece no eixo de Povos Originários, que teve 113 eventos, em 2023, e apenas 21, em 2025, com queda de mais de 60% no investimento.
A Fundação Theatro Municipal, em resposta própria, negou a existência de qualquer “norma interna” que oriente vetos por conteúdo político, racial ou de gênero. No entanto, admitiu cancelamentos pontuais, sempre atribuídos a causas logísticas ou ao próprio proponente, como “falta de verba” ou “incompatibilidade de agenda” .
Entre 2022 e 2025, o total de eventos apoiados por esses projetos caiu de mais de 100 por eixo para menos de 20 em alguns casos, enquanto a execução orçamentária foi reduzida em até 70%. O padrão sugere mudanças de prioridade e falta de continuidade institucional, com efeitos diretos sobre os coletivos periféricos e artistas que dependem de políticas públicas para garantir presença nos espaços culturais da cidade.
Cancelamentos, sem som e nem luz
Em caráter de anonimato, uma pessoa próxima ao grupo afro Ilú Obá De Min — fundado em 2014 e liderado por mulheres negras — relatou que, nos últimos três anos, o coletivo tem enfrentado cancelamentos recorrentes e mudanças de local de última hora em seus ensaios no Vale do Anhangabaú. O grupo, que reúne cerca de 400 integrantes entre bateria e corpo de dança, sempre teve no viaduto do Anhangabaú um espaço simbólico e histórico de encontro. “O Ilú Obá De Min ensaiava ali desde sua fundação, mas, após a privatização da área, perdeu o direito de utilizá-la como local fixo de ensaio”, conta.
A mudança ocorreu em dezembro de 2021, quando o prefeito Ricardo Nunes entregou a gestão do Vale do Anhangabaú ao consórcio Viva o Vale, vencedor de uma concessão de R$ 55 milhões com validade de dez anos. O contrato prevê a manutenção e a ativação sociocultural de mais de 70 mil m² de áreas públicas no centro de São Paulo e autoriza o consórcio a alugar espaços para comércio e eventos, dentro da política municipal de concessões que busca transferir à iniciativa privada a gestão de equipamentos públicos.
“Desde então, temos lidado com uma série de dificuldades impostas pela administração do espaço: cancelamentos repentinos, mudanças arbitrárias de local, negativa de fornecimento de som e, ainda, a inclusão de cláusulas contratuais que preveem multa caso o Ilú não realize o ensaio, mesmo diante das condições precárias oferecidas”, exemplifica a fonte.
‘Repentino’ é uma palavra que passou a definir a rotina do bloco. Cancelamentos de ensaios com apenas 24 horas de antecedência tornaram-se comuns, assim como mudanças de local na manhã do próprio evento. Em uma das últimas ocasiões, o grupo foi informado, no dia anterior, de que não haveria som disponível, junto da ameaça de multa de R$ 1.000 caso optasse pela suspensão da atividade. Além disso, segundo a fonte ouvida pelo Nonada, muitas ações são realizadas em condições precárias, sem fornecimento de energia elétrica, suporte técnico ou estrutura de som adequados.
Procurado pela reportagem, o Consórcio Viva o Vale afirmou que mantém política de incentivo à ocupação cultural transparente, mas diz que não comenta casos individuais.
“Toda cultura é política”
A pedido do Nonada, três pesquisadores da área cultural analisaram os dados obtidos via Lei de Acesso à Informação sobre cancelamentos de eventos e retração de políticas culturais em São Paulo. As leituras convergem em um diagnóstico comum: a cultura paulistana tem se tornado cada vez mais dependente de lógicas políticas e comerciais, o que restringe o acesso de coletivos periféricos, negros, indígenas e LGBTQIA+ aos espaços públicos.
O arte-educador Weslley Silva de Jesus, mestrando em Processos Artísticos e Mediação Cultural, aponta que a gestão dos equipamentos culturais é moldada por indicações políticas, e isso impacta diretamente a diversidade da programação. “As gestões das casas de cultura são feitas por cargo político. Se é um governo de direita, esses cargos vão ser de direita. E aí é muito difícil que coletivos de esquerda consigam atuar, porque já existe esse crivo”, afirma.
Segundo ele, essa dinâmica tem levado a um esvaziamento da presença de artistas independentes, sobretudo em regiões periféricas. “As atividades até acontecem, mas de forma pontual e sem estrutura. Quando algum coletivo pede o espaço, há uma canseira muito grande e, quando consegue, é difícil ter cachê, som ou apoio técnico”, completa.
A percepção é aprofundada por Layne Gabriele, mestranda em Linguística Aplicada pela Unicamp, que vê uma mudança estrutural na forma como o poder público administra os espaços culturais. Para ela, a lógica de fomento e curadoria pública vem sendo substituída por um modelo de locação e patrocínio privado, que favorece quem opera com estrutura empresarial.
“Quando o espaço passa a funcionar como uma empresa, a lógica deixa de ser de incentivo à diversidade e passa a seguir um fluxo comercial”, explica. Layne avalia que exigências como seguros, alvarás e prazos curtos acabam se tornando barreiras invisíveis para coletivos de base. “O que aparece como ‘declínio do cliente’ pode, na verdade, ser um veto estrutural”, diz.
A desigualdade também se reflete na assimetria de poder entre grandes marcas e produtores independentes. “Grandes empresas conseguem reagendar e absorver cancelamentos sem prejuízo. Já os grupos comunitários perdem o evento, o investimento e o público”, observa Layne. Essa disparidade, segundo ela, se agrava quando o conteúdo tem recorte político ou social. “Mesmo quando a palavra ‘censura’ não é usada oficialmente, esses projetos enfrentam um tipo de veto indireto que restringe a pluralidade e a liberdade cultural”, afirma.
A jornalista e produtora cultural Lívia Lima, mestre em Estudos Culturais, compartilha a mesma leitura. Para ela, o argumento de que a Flipei teria “uso político” foi “totalmente distorcido”. “Esse termo só caberia se o orçamento público estivesse sendo usado com fins eleitorais. Trazer temas como Palestina, feminismo ou desigualdade não é fazer política partidária, é debater sociedade. Toda cultura é política”.
Sem lucro, nada liberado
Lívia relaciona o enfraquecimento das políticas culturais à redução de investimentos e ao avanço das concessões privadas. “Mesmo quando há orçamento, ele é destinado a eventos de outra natureza, com menos vínculo comunitário”, analisa. Ela lembra que o caso do Ilú Obá De Min é simbólico desse processo. “Só interessam à prefeitura os eventos que gerem retorno financeiro. E como o Ilú traz manifestações de matriz africana, isso reforça a resistência institucional a temas de diversidade, raça e gênero”, explica.
Segundo as três leituras, o ponto de encontro indica que a cultura em São Paulo tem sido tratada cada vez menos como política pública e cada vez mais como produto. Para Weslley, Layne e Lívia, essa mudança redefine o papel do Estado, de promotor da diversidade para mediador de interesses econômicos e ideológicos. O resultado é um campo cultural menos plural, mais burocrático e mais vulnerável à censura disfarçada de gestão.
Em nota, a Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa nega a redução de iniciativas voltadas às culturas negra, indígena, periférica, popular e LGBTQIA+. O órgão afirmou que “é precipitada qualquer análise dos números de 2025, pois os dados disponíveis até o momento são parciais e, por essa razão, não devem ser comparados aos anos anteriores”. Diz ainda que os eventos voltados às culturas negra, periférica, popular, indígena e LGBTQIA+ cresceram 23% entre 2022 e 2024, totalizando 413 atividades e R$ 5,4 milhões investidos.
No entanto, tanto a nota quanto os documentos enviados à reportagem incluem dados referentes a 2025, com números, eixos temáticos e valores investidos assinados pela Coordenadoria do Sistema Municipal de Bibliotecas (CSMB). A pasta cita, inclusive, iniciativas lançadas neste ano, como editais de fomento e programas com cotas destinadas a grupos minorizados. Porém, as planilhas, obtidas via LAI, mostram que, entre 2024 e 2025, as quedas foram superiores a 60% no número de eventos e nos recursos destinados a projetos ligados à diversidade racial, de gênero e territorial.
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