Saúde mental na democracia das chacinas

Os serviços de atendimento são precários e muitas vezes violentos. As queixas não são legitimadas. Frequentemente, resultam em diagnósticos superficiais e prescrição de remédios psiquiátricos. Como responder ao sofrimento dos que sobreviveram à barbárie?

Chacinas em comunidades abalam a saúde mental de suas populações
Créditos: Tomaz Silva/Agência Brasil
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Título original: Na democracia das chacinas, qual o papel da saúde mental?

Eu fico parindo a dor do meu filho morto todos os dias, porque é a dor de um ser humano que não volta mais”: essa frase poderia ser proferida por uma das diversas mães da última chacina no Rio de Janeiro, mas aparece no livro “Na mira do fuzil: a saúde mental das mulheres negras e questão” 1. No decorrer dos capítulos desta obra é possível ler diferentes depoimentos que narram a dor e a dilaceração ocasionada pelo estado permanente de guerra, tendo a “Guerra às Drogas” a sua principal justificativa, revelando uma certa autorização social, política e econômica para o extermínio, demonstrando que o vivido no mês passado retrata mais um estado permanente de guerra do que algo pontual.

No dia 28 de outubro de 2025, a megaoperação policial realizada declarava o intuito de combater o tráfico nos Complexos da Penha e do Alemão. Como foi extensamente noticiado, foram 121 mortes, dentre policiais e civis, inclusive com marcas de tortura e decapitação. Além disso, grande parte dos mortos foram encontrados em um terreno – que fica localizado entre as favelas – e expostos pela população em praça pública.

Gostaríamos de abordar uma outra questão desta tragédia: como fica a saúde mental de todos e todas aqueles que sobrevivem a esta barbárie?

Primeiramente, é fundamental destacarmos que vivemos em uma democracia que tem como premissa a eliminação, o descarte e a subjugação de parte da população. A dinâmica da destruição é base de sustentação da reprodução do modo de produção capitalista e tem a racialização como justificativa para modular o perfil do criminoso. Ou seja: o “inimigo” é negro, pobre e favelado. Dessa forma, temos a propagação do medo e de estratégias de controle, inclusive através da operacionalização do cuidado em saúde e saúde mental.

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Se não bastasse a opressão, pobreza e violências diárias vividas pelas comunidades das favelas, que são por si só são determinações sociais e importantes causadores de problemas de saúde mental2, a inexistência de políticas públicas para o cuidado destas populações agrava o quadro. Dados preliminares do “Censo Psicossocial dos usuários dos serviços de saúde mental do estado do Rio de Janeiro” realizado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro em parceria com a Secretaria Estadual de Saúde coletou informações de mais de 500 trabalhadores de saúde mental que atuam no Sistema Único de Saúde. No estudo, o tipo de violência mais recorrente nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) é a armada. Dessa maneira, as balas atravessam não apenas literalmente, mas também se fazem presentes como causa de sofrimento dos usuários do sistema. Essas queixas predominam em 7 das 9 regiões de saúde do estado.

Há ainda uma ressalva: o acesso da população negra a estes serviços tem sido demasiadamente precário e insuficiente. Afinal, a maior parte dos serviços de saúde (apesar dos avanços da reforma psiquiátrica) ainda é escasso para as populações vulnerabilizadas. Mesmo quando o acesso acontece, a queixa e sofrimento muitas vezes não são acolhidos considerando a realidade vivida pela pessoa – mas apenas pela lente diagnóstica.

Assim, massacre vira “Transtorno de Estresse Pós-traumático”, medo de sair de casa devido tiroteio vira “Agorafobia” e violências devido ao racismo viram “Transtorno de Ansiedade Generalizado”. Todos, diagnósticos. Para cada diagnostico, uma solução simples, uma prescrição. Com o estado permanente de guerra instalado, é urgente qualificar a escuta e a abordagem das equipes de saúde e o cuidado em saúde mental viabilizado nos serviços. As famílias de vítimas da violência armada ficam no limbo da atenção psicossocial não sendo reconhecidas como perfil de atendimento dos CAPS e quando são acolhidas, tem o seu sofrimento reduzido a queixas e sintomas.

Frantz Fanon, psiquiatra e filosofo que influenciou estudos anticoloniais e a teoria crítica na saúde mental, em seu livro “Medicina e Colonialismo” mostra como as instituições e o trabalho do profissional em saúde podem ser utilizados para reprimir e destituir a humanidade dos colonizados ou dos povos marginalizados. Se por um lado não se legitima a dor ocasionada pela violência como um problema a ser escutado e acolhido, por outro, a redução do dilema a sintomas também exclui da esfera analítica o manejo do entorno racista e violento em que essas comunidades estão inseridas. Estudos apontam, por exemplo, que pessoas negras recebem prescrições de quantidades e dosagens maiores de medicamentos psiquiátricos, mas têm menos probabilidade de receber outros tipos de tratamentos não farmacológicos em comparação com pessoas brancas4.

Trata-se de reconhecermos o lugar da saúde mental como produtora de cuidado e também como estratégia de resistência. Uma Política de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas, sustentada pelos princípios da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial tem como premissa os Direitos Humanos, a Desinstitucionalização e o Cuidado em liberdade. Preza por uma abordagem que levanta, problematiza e dialoga com as incidências de outras políticas públicas, e não apenas a saúde.

Dessa maneira, indagamos: Qual noção de direitos humanos direciona o cuidado em saúde mental? Somos operadores da vida ou da destruição? Somos silenciadores de sofrimentos ou acolhedores de pessoas? “Eles combinaram de nos matar, nós combinamos de não morrer”5.


  1. Passos, R.G. Na mira do fuzil, a saúde mental das mulheres negras em questão. 2023, Editora Hucitec, 1a Edição.
  2. Damasceno MG, Zanello VML. Saúde Mental e Racismo Contra Negros: Produção Bibliográfica Brasileira dos Últimos Quinze Anos. Psicol cienc prof [Internet]. 2018Jul;38(3):450–64. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1982-37030003262017
  3. Fanon, F Medicina e Colonialismo. Medicina e colonialismo. Editora Terra Sem Amos: Brasil, 2020.
  4. French, A et al. Racial and Ethnic Differences in Psychotropic Prescription Receipt Among Pediatric Patients Enrolled in North Carolina Medicaid. Psiquiatry Services. 73(12). 2022. Disponível em: https://doi.org/10.1176/appi.ps.20210047
  5. Evaristo, Conceição. A gente combinamos de não morrer. In.: Olhos d’Água. Rio de Janeiro: Pallas, 2015.

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