O Agente Secreto: Dias quentes num país brutal

Enfim, chega aos cinemas o thriller político de Kleber Mendonça Filho sobre a ditadura. Uma singularidade são os pequenos desvios: um cadáver esquecido, a lenda da “perna cabeluda”, a madame negligente… Sempre com erudição, crítica contundente e apreço pelo cinema B

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Por José Geraldo Couto, no Blog do IMS

Depois de uma carreira de prêmios internacionais e de concorridas pré-estreias pelo país afora, chega finalmente a centenas de salas nesta quinta-feira um dos filmes do ano: O agente secreto, de Kleber Mendonça Filho.

Muito já se falou sobre ele e muito se haverá de falar ainda. Para não chover no molhado, só quero destacar dois ou três aspectos que, a meu ver, garantem a singularidade dessa obra arrebatadora.

O enredo, como se sabe, trata de um especialista em tecnologia, Marcelo (Wagner Moura), que retorna ao Recife para reencontrar o filho pequeno e fugir de órgãos da repressão política, depois de ter entrado em confronto com um grande empresário corrupto e ligado ao regime militar. O ano é 1977, e o retrato do ditador Geisel assombra várias paredes “oficiais”. É o que dá para dizer por enquanto sem entregar muitos spoilers. Uma das virtudes de O agente secreto é a desvelar aos poucos os antecedentes e os porquês do que vemos na tela.

O filme tem sido definido corretamente como um thriller político, pois essa é, de fato, a sua tonalidade predominante, seu principal eixo narrativo. Mas seu encanto maior é o de transitar com notável fluência por outros gêneros, da comédia de erros ao terror gore (sangue e vísceras), passando pela crônica social e pelo drama familiar.

Pequenos desvios

Como em seus longas-metragens anteriores, Kleber Mendonça exibe aqui sua habilidade em criar pequenos desvios, breves digressões, que enriquecem a tessitura da obra sem perder a linha narrativa, a progressão rumo a um desfecho lógico. Sua história tem começo, meio e fim, mas não necessariamente nessa ordem, e dedica um tempo precioso aos acidentes do percurso.

A rigor, o filme já começa com uma dessas digressões: na estrada, antes de chegar ao Recife, Marcelo para seu fusca num posto para abastecer. No chão de terra batida, um cadáver de dias, mal coberto por folhas de papelão, alvoroça as moscas e os cães da região. Nunca saberemos quem é, nem por que morreu.

Policiais chegam numa radiopatrulha e tentam extorquir dinheiro do recém-chegado, sem ligar a mínima para o corpo em decomposição. Pois bem: a cena não é importante para o desenrolar da história, mas sim para o estabelecimento de um contexto e de uma atmosfera: estamos num dia quente de Carnaval num país brutal, em que a vida humana parece valer pouco e os agentes do Estado se sentem seguros para transgredir a lei a seu bel prazer.

Há inúmeros outros exemplos de digressões, alguns cômicos – como os ataques da “perna cabeluda” – e outros trágicos, como o da madame que deixou sozinho o filho da empregada e este acabou atropelado por um carro (referência clara ao rumoroso caso do menino que morreu ao cair de um prédio por negligência da patroa de sua mãe, em 2020, no Recife).

Perna cabeluda

A história da “perna cabeluda” merece um comentário à parte. Seria, segundo consta, uma lenda urbana surgida no Recife (como o “bebê diabo” de São Paulo) depois que capturaram um tubarão com uma perna humana em seu aparelho digestivo. Mortes e sumiços estranhos passaram a ser atribuídos à “perna cabeluda”, transformada em entidade folclórica.

Ao que parece, era também um modo de a imprensa local, sob censura, referir-se a crimes cometidos pelos órgãos de repressão e esquadrões da morte. A essa leitura sócio-política Kleber Mendonça acrescenta duas outras camadas: os pesadelos do filho de Marcelo com tubarões e a estreia nos cinemas do blockbuster de Steven Spielberg.

A atestar a segurança e a desenvoltura do diretor, às vezes a mudança de registro se dá no interior de uma mesma cena, como no caso do intercurso entre Marcelo e sua vizinha Claudia (Hermila Guedes), que começa parecendo um exame odontológico e acaba por se revelar um ato sexual furtivo, mediante sutis movimentos de câmera e enquadramento.

Apenas uma das cenas digressivas me pareceu forçada, para não dizer gratuita: aquela em que um delegado (Robério Diógenes) leva Marcelo para conhecer um alfaiate judeu (Udo Kier), vítima dos nazistas, que ele, delegado, julga erroneamente ser um ex-soldado alemão. Dá a impressão de que Kleber Mendonça quis introduzir a fórceps em seu filme, como uma homenagem, o ator alemão com quem havia trabalhado em Bacurau.

Outro aspecto não negligenciável, e que contribui para a eficácia e a originalidade do todo, é o uso criativo da trilha musical, que vai de Donna Summer a Waldick Soriano, passando por Chicago, Ennio Morricone e o Conjunto Concerto e Viola. A sequência mais violenta, filmada com câmera nervosa pelas ruas do centro do Recife, não é acompanhada por música convencional de suspense, e sim pela extraordinária “Briga do cachorro com a onça”, da Banda de Pífanos de Caruaru.

Soma-se a isso a habitual sensibilidade do diretor para a composição do elenco, quase perfeito do protagonista aos figurantes, com destaque para a encantadora veterana Tânia Maria, no papel da “síndica” do prédio onde Marcelo se refugia, e também para Kaiony Venâncio, como operário e matador de aluguel, e para Roney Villela e Gabriel Leone, como uma dupla de pistoleiros vindos do sul. Dos tarimbados Carlos Francisco e Buda Lira nem é preciso falar.

A reconstituição de época é mais de atmosfera do que de detalhes naturalistas. A filmagem em Panavision 35mm de lente anamórfica – segundo o diretor, uma câmera idêntica à usada por Spielberg em Tubarão – contribui para a amplitude e a textura “anos 70” da imagem.

Catarse precoce

Há mais um detalhe significativo a comentar. Todos os longas anteriores de Kleber Mendonça Filho terminam com uma catarse que traduz um acerto de contas mais ou menos violento (mais violento em Bacurau, menos em Aquarius). Em O agente secreto essa catarse vem bem antes do fim, na cena em que Marcelo e sua mulher (Alice Carvalho) reagem à arrogância xenófoba e machista do grande empresário e seu filho num restaurante do Recife.

A coda ou epílogo nos dias atuais, em que o mesmo Wagner Moura encarna o agora adulto filho de Marcelo, não apenas reforça a ideia de que certas constantes político-sociais seguem em curso em nosso tempo, mas também conecta a cena final ao documentário Retratos fantasmas e conclui a homenagem ao próprio cinema que perpassa todo o filme, com referências a TubarãoA profeciaOs trapalhõesDona Flor e uma porção de outras produções da época. Não é por acaso que o sogro de Marcelo (Carlos Francisco) é projecionista do venerável Cine São Luiz.

Com O agente secreto, Kleber Mendonça Filho demonstra que chegou à plena maturidade artística sem perder uma certa picardia juvenil, equilibrando erudição cinematográfica, contundência política e apreço pelo cinema B de entretenimento. Não é literatura, não é teatro, não é ensaio sociológico nem tampouco libelo político, embora possa ter um pouco de tudo isso. Para usar a expressão de Rogério Sganzerla, é “um filme de cinema”.

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