EUA: O paradoxo da hegemonia monetária
A maior economia do mundo enfrenta uma contradição: para que o dólar funcione como reserva mundial, é preciso inundar o mundo com ele. Trump faz o oposto e arrisca bases que mantêm o “Império”. E o Sul global já busca alternativas
Publicado 05/11/2025 às 15:50 - Atualizado 05/11/2025 às 15:59

É irônico o fato de que a maior economia do mundo se encontre aprisionada por sua própria moeda. As tarifas propostas por Trump revelam não apenas uma estratégia comercial questionável, mas expõem a ferida aberta de um sistema monetário internacional que há décadas caminha sobre uma corda bamba. O desejo de reduzir o déficit comercial americano esbarra em uma contradição fundamental: para que o dólar funcione como reserva mundial, os Estados Unidos precisam inundar o planeta com sua moeda, e isso só acontece quando o país compra mais do que vende. É como tentar encher um copo enquanto se tapa o buraco por onde a água entra.
Robert Triffin não foi um profeta, mas um observador atento o suficiente para perceber o óbvio que todos preferiam ignorar. Nos anos 1960, ele alertou que o sistema de Bretton Woods carregava em si as sementes de sua própria destruição. O dilema que leva seu nome é elegante em sua simplicidade cruel: o país emissor da moeda de reserva global deve aceitar déficits crescentes para fornecer liquidez ao mundo, mas esses mesmos déficits eventualmente corroem a confiança naquela moeda. É o equivalente monetário de um malabarista que precisa continuar lançando bolas ao ar até que inevitavelmente suas mãos não consigam mais acompanhar o ritmo.
Durante cinco décadas, os Estados Unidos têm vivido nesse limbo desconfortável, sustentando déficits comerciais crescentes que são financiados pelo resto do mundo. Países como China, Japão e nações exportadoras de petróleo acumulam trilhões em dólares, não necessariamente por amor à bandeira americana, mas por falta de alternativa viável. Essa dependência criou uma relação simbiótica e tóxica: o mundo precisa do dólar para comerciar, e os Estados Unidos precisam que o mundo aceite seus déficits para manter a máquina funcionando. É um castelo de cartas construído sobre a areia da confiança.
A política tarifária de Trump ignora essa realidade complexa com a sutileza de um elefante em uma loja de cristais. Ao tentar forçar um equilíbrio comercial através de barreiras protecionistas, ele não apenas arrisca desencadear guerras comerciais, mas mina o próprio fundamento do privilégio exorbitante americano. Como pode o dólar permanecer como moeda de reserva se os Estados Unidos fecham suas portas para as exportações do mundo? O déficit comercial não é um acidente da história americana; é o preço que se paga pela hegemonia monetária. Trump quer comer o bolo e mantê-lo inteiro ao mesmo tempo.
A desconfiança que Triffin previu está se materializando diante de nossos olhos. China e Rússia já realizam transações bilaterais em suas próprias moedas. Países emergentes discutem criar cestas de moedas para o comércio internacional. A própria União Europeia, ainda que timidamente, busca fortalecer o euro como alternativa ao dólar. Não se trata de conspiração ou antiamericanismo; é pura racionalidade econômica. Quando o hegemônico age de forma errática, quando ele vampiriza sua moeda através de sanções, quando ele não aceita as responsabilidades que vêm com o privilégio, o mundo naturalmente busca alternativas.
A declaração de Trump sobre perder a condição de padrão monetário ser equivalente a perder uma guerra mundial não é exagero retórico; é uma admissão assustadoramente honesta. O dólar como moeda de reserva permite que os Estados Unidos financiem seus déficits a custos irrisórios, mantenham gastos militares colossais sem consequências inflacionárias imediatas e exerçam poder geopolítico através de sanções financeiras. Abrir mão disso seria, de fato, o fim de uma era de dominação sem paralelos na história moderna. Mas a pergunta que ninguém quer fazer é: essa dominação é sustentável? E mais importante: é justa?
A solução proposta por Triffin há mais de meio século continua sendo ignorada porque exigiria que os Estados Unidos compartilhassem seu poder monetário. A criação de uma nova unidade de reserva internacional, independente de qualquer moeda nacional, permitiria expansão econômica global sem depender dos déficits americanos. Seria como criar uma moeda global genuína, talvez gerida pelo Fundo Monetário Internacional, que forneceria liquidez baseada nas necessidades da economia mundial e não nos caprichos políticos de Washington. Mas isso significaria que os Estados Unidos perderiam seu poder de imprimir dinheiro e fazer o mundo aceitá-lo.
A resistência americana a qualquer reforma fundamental do sistema monetário internacional não é irracional; é a defesa desesperada de um privilégio extraordinário. Imagine poder pagar suas dívidas em uma moeda que você mesmo imprime, sem sofrer consequências inflacionárias porque o resto do mundo precisa dessa moeda. É o sonho de qualquer devedor. Mas como todo sonho, este também precisa eventualmente encontrar a realidade. A questão não é se o sistema atual vai colapsar, mas quando e quão dolorosamente. Cada tarifa de Trump, cada sanção unilateral, cada ameaça comercial aproxima esse momento.
O que torna tudo isso tragicamente humano é que não existem vilões nesta história, apenas atores presos em suas próprias lógicas. Trump quer proteger trabalhadores americanos que viram suas fábricas fecharem. Chineses querem desenvolvimento econômico e segurança monetária. Europeus buscam autonomia estratégica. Todos agem racionalmente dentro de seus próprios paradigmas, mas coletivamente caminham para um precipício. É o clássico dilema do prisioneiro em escala planetária, onde a cooperação beneficiaria todos, mas a desconfiança leva cada um a proteger apenas seus interesses imediatos.
Chegamos assim ao momento crítico que Triffin previu e que todos preferiram ignorar. O sistema monetário internacional precisa de reforma não porque seja teoricamente imperfeito, mas porque está praticamente quebrando. As fissuras são visíveis: volatilidade cambial crescente, acumulação insustentável de reservas, desequilíbrios globais monumentais, e agora um hegemônico que não aceita mais as responsabilidades de sua posição. A solução existe há décadas nas páginas amareladas dos textos de Triffin, esperando que a humanidade tenha coragem suficiente para escolher a cooperação sobre a dominação. Mas essa coragem, ao que parece, continua sendo o recurso mais escasso de todos.
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