“Reforma” Administrativa: desmonte do Estado em nome da ‘eficiência’

Apresentada como proposta de combate a “privilégios”, a PEC 38/25 retoma a ideia de submeter o serviço público à lógica de mercado. E busca consolidar uma mudança de paradigma: o Estado passa a operar sob a ótica empresarial, subordinando a política pública às demandas privadas

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Protocolada na Câmara dos Deputados na sexta-feira (24) com o número mínimo de assinaturas (171 parlamentares), a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Reforma Administrativa começou a tramitar na Casa e a lista dos proponentes iniciais já sofreu as primeiras deserções. Dez deputados federais pediram que seus nomes fossem retirados do rol de apoiadores, inclusive dois integrantes do Republicanos, partido do presidente da Câmara, Hugo Motta (PB), um dos principais articuladores da proposta. As desistências não têm poder para derrubar a PEC, o que aconteceria apenas se mais da metade dos signatários pedisse a retirada do apoio, mas são sintomáticas em relação às inúmeras dificuldades que o texto deve ter para ser aprovado em seu formato atual, já que sua íntegra vem sendo conhecida e dissecada aos poucos.

A PEC 38/25 ganhou notoriedade na mídia ao ser apresentada como uma proposta que combate os chamados privilégios, válidos apenas para uma parcela muito pequena de carreiras da administração pública e ilustrado em casos como o da aposentadoria compulsória de juízes, promotores e procuradores em forma de punição e o pagamento de determinadas verbas indenizatórias que fazem com que a remuneração de algumas dessas carreiras acabe ultrapassando o teto constitucional. Embora esta seja a parte mais divulgada pelos defensores do texto, até por ser uma forma simples de conseguir adesão da opinião pública e da mídia, existem diversos outros pontos que alteram, profundamente, a estrutura do Estado brasileiro.

Na justificativa da proposta, os autores apontam que o novo desenho constitucional é estruturado em quatro eixos complementares: governança e gestão, transformação digital, profissionalização e extinção de privilégios, que seriam “orientados para o aumento da eficiência, da transparência e da legitimidade da Administração Pública brasileira e, consequentemente, melhoria dos serviços públicos prestados à população brasileira”. Contudo, segundo especialistas, sindicatos e entidades de defesa dos servidores públicos, o texto busca retirar direitos e pode prejudicar o acesso a serviços públicos, limitando ainda a capacidade de administrações municipais e estaduais nesse sentido.

Mas a reforma não se limita apenas à PEC, sendo um “pacote completo”. Existe também um Projeto de Lei Complementar (PLP), que cria uma Lei de Responsabilidade por Resultados da Administração Pública Brasileira, cuja ideia seria “celebrar, no âmbito de cada órgão ou entidade pública, acordo de resultados anual, com a definição de objetivos e metas institucionais a serem alcançados no exercício”. Já o Projeto de Lei Ordinária (PL) estabelece um Marco Legal da Administração Federal. Segundo análise da LBS Advogadas e Advogados, “regulamenta o ciclo completo da gestão de pessoas no serviço público, estruturando políticas de planejamento da força de trabalho, racionalização dos concursos públicos, alteração nas carreiras e estágio probatório, bem como regras para cargos de liderança e contratações temporárias”. Tanto o PLP quanto o PL ainda não foram protocolados na Câmara.

A lógica do mercado aplicada ao serviço público

A avaliação da LBS tem servido de subsídio a entidades sindicais para uma análise dos riscos representados pela reforma. Segundo os advogados, “ao atacar supostos privilégios que têm permitido a uma parcela da elite do funcionalismo público operar fora dos limites remuneratórios reduz direitos e remuneração de parcela significativa dos servidores e servidoras de todo país”. “A proposta constitucionaliza a celebração de acordo de resultados, com responsabilização ao servidor pela governança, na mesma ótica do setor privado”, pontuam.

De acordo com a avaliação, é possível perceber que o cerne da dita reforma é a adaptação do funcionamento do estado a uma lógica do mercado, como se sua relação com o cidadão fosse baseada sob uma ótica meramente transacional e não baseada em direitos e deveres constitucionais. “[A proposta] amplia o controle e microgerenciamento sobre o trabalho, haverá uma lei específica para responsabilização dos gestores pelos resultados alcançados, exigência essa que se refletirá também nas avaliações de desempenho, especialmente com a inserção da possibilidade de avaliação da qualidade da prestação do serviço público pelo cidadão em pesquisas de satisfação. A população passa a ser vista como um ‘consumidor’ de um produto, no caso, do serviço público, em verdadeiro desmonte do Estado”, destaca a análise, apontando para a consolidação de uma mudança na concepção que vem sendo pretendida há tempos, em outras reformas e propostas de reformas.

Dentro desse contexto, carreiras da administração pública podem ser afetadas, comprometendo o acesso à cidadania. “Dentro das possibilidades de reorganizações de carreiras e das políticas públicas, é evidente o risco de extinção daquelas que não servem ao capital financeiro. Essas reestruturações se darão sob a justificativa de necessidade de transversalidade ou economicidade, tendem a extinguir aquelas que não são consideradas atividades tipicamente estatais e que podem ser capturadas por empresas terceirizadas mediante contratação, consórcio, concessão. Em síntese, quem decidirá o que é atividade do Estado ou não será o capital, atraindo para si atividades que geram lucratividade”, pontuam os advogados.

O professor de Direito Financeiro e ex-reitor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Ricardo Lodi, afirma ainda, em artigo publicado na Revista Fórum, que a aprovação do pacote da Reforma Administrativa pode afastar pessoas do serviço público. “Além da perda de direitos, a PEC propõe uma estrutura de carreira em que o servidor vai demorar muito mais tempo para chegar ao topo da carreira e progredir na tabela remuneratória, reduzindo a capacidade de atração dos jovens talentos, pela drástica redução do salário inicial, e promovendo o desestímulo ao servidor, condenado a viver vários anos com os baixos salários”, diz.

Risco de colapso da gestão pública

A reforma propõe ainda um Arcabouço Fiscal Local, no qual os Poderes Legislativo, Judiciário e órgãos autônomos (Ministério Público, Tribunais de Contas e Defensoria Pública) dos entes subnacionais também vão ter que seguir uma regra de crescimento das despesas, inspirada no Arcabouço Fiscal federal. Assim, se a variação da receita ajustada, ou seja, a receita primária menos as extraordinárias, estiver abaixo da inflação, o estado ou município terá seu orçamento limitado à variação da inflação.

Em artigo publicado no Jota, o advogado na área do Direito Público e do Direito Sindical e doutor pela Universidade de Brasília (UnB), Robson Barbosa, fala sobre esta parte da PEC. “Este dispositivo impõe aos municípios que apresentarem resultados fiscais negativos uma drástica limitação no número de suas secretarias. Um município com até 10 mil habitantes, por exemplo, só poderia ter cinco secretarias. No jargão técnico, isso é uma reorganização; na vida real, é o colapso da gestão de políticas públicas. Uma secretaria não é um custo burocrático, mas a ferramenta de desconcentração administrativa para que o gestor dê atenção específica a uma política”, pontua.

Segundo a proposta, cidades com até 10 mil habitantes poderão ter apenas cinco secretarias ou órgão equivalentes e, em municípios com até 50 mil habitantes, o número de pastas pode chegar a seis. A “permissão” dada pela reforma progride conforme a dimensão das cidades: os municípios que têm entre 50.001 e 100 mil habitantes podem ter sete secretarias; entre 100.001 e 300 mil, até oito; entre 300.001 e 500 mil habitantes, podem chegar a nove pastas e o número de secretarias pode ser de dez em municípios com mais de 500 mil habitantes.

Ricardo Lodi também observa que isso constitui “graves limitações à autonomia local” e, além disso, “reduz substancialmente a auto-organização administrativa”. “Todas essas medidas de austeridade, com a redução das despesas com pessoal, não consideram que as necessidades públicas, assim como a população, são crescentes. E se o Brasil deseja melhorar o grau de bem-estar do seu povo, não tem como deixar de ampliar os investimentos no serviço público, notadamente nas áreas sociais, como educação, saúde e assistência, bem como em segurança pública”, pontua.

Isso amplia a possibilidade de se aumentar o nível de terceirizações participando do setor público. “Assim como a austeridade não estanca a demanda por serviços, abre-se uma porta para todo o tipo de contratação não submetida às regras constitucionais e legais aplicadas ao serviço público, inclusive ao mesmo grau de controle interno e externo, com custo financeiro substancialmente maior e eficiência duvidosa. Daí o seu caráter seletivo. Assim, quando o limite de pessoal for atingido, o gestor irá contratar serviços por meio de uma empresa terceirizada, com custos maiores e trabalho precarizado”, explica Lodi.

Tramitação acelerada e contradições

Por enquanto, a maior parte da Reforma Administrativa não é de conhecimento público e mesmo o que sai em veículos da mídia tradicional é parcial (em mais de um sentido). Também por isso, a tramitação acelerada, como pretende fazer Hugo Motta, sem que ela passe pela criação de uma comissão especial ou que tramite nos colegiados da Casa, é grave. Embora tenha prometido um amplo debate, o presidente da Câmara, responsável por tirar a PEC do “ponto morto” em que estava com o relator, deputado Pedro Paulo (PSD-RJ), ao articular o apoio de parlamentares para que o texto fosse protocolado, não descarta incluí-la em uma outra proposta mais avançada e em tramitação na Casa. “Estamos também decidindo, vamos conversar com os líderes”, disse, nesta segunda-feira (27). O comprometimento de Motta com a pauta é tamanho que mesmo no site da Câmara existe uma descrição que mais se assemelha a uma defesa do que um detalhamento da PEC, algo pouco usual para uma PEC que está em tramitação. “A reforma não faz ajuste fiscal, não mexe no tamanho do Estado nem ataca direitos dos servidores – mas pretende maior eficiência, combate privilégios e institui a meritocracia”, diz o texto no site.

A avaliação, contudo, não é unânime. “A PEC protocolada tem um viés fiscalista e punitivo. Ao impor um teto rígido de despesas com pessoal para União, Estados e Municípios, na prática inviabilizará reajustes salariais necessários e investimentos em pessoal. A avaliação individual vinculada exclusivamente à chefia imediata abre espaço para perseguições, assédio e favorecimentos. Já a possibilidade de extinção de cargos ocupados por decreto põe em xeque a atuação imparcial e autônoma de servidores em áreas estratégicas, como a defesa do meio ambiente”, pontua o líder da bancada do PT na Câmara, deputado Lindebergh Farias (PT-RJ).

“No campo das Políticas Públicas, a Reforma é temerária por prever uma revisão contínua de gastos com foco na economia de recursos. Nessa lógica, programas sociais como Luz para Todos jamais teriam sido implementados. Além disso, a avaliação prévia obrigatória pode tornar políticas públicas inviáveis na prática, engessando o processo de formulação. E ao definir um modelo de gestão único para todos os entes da Federação, o texto ignora a diversidade e heterogeneidade da realidade brasileira, gerando um grave risco de paralisia e burocratização, principalmente na esfera municipal, com graves prejuízos aos serviços públicos”, afirmou ainda.

Impulsionada por lobbies sempre poderosos do setor privado, a proposta da Reforma Administrativa pode naufragar com a proximidade do período eleitoral. Mas o fato de sempre pairar uma ameaça sobre o setor público demonstra a necessidade de se debater o fortalecimento do Estado e a orientação de seus investimentos e esforços para toda a sociedade.

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