Radiografia da Grande Demissão à brasileira
Pedidos voluntários de desligamento começaram a disparar na pandemia. Maioria são mulheres e jovens. Chance real de empregos melhores é um fator. Mas também o adoecimento mental e o desejo de não viver só para trabalhar. 76% não se arrependem da decisão
Publicado 30/10/2025 às 17:43 - Atualizado 30/10/2025 às 18:04

Este texto, originalmente intitulado Fractais do tempo: Jornadas, sofrimento e a Grande Demissão no Brasil, foi produzido pelo Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho (Cesit) da Unicamp e publicado em parceria com o Outras Palavras. Com dados sólidos, os autores analisam o recorde de pedidos de demissão mesmo em um contexto de desemprego relativamente alto. O pico foi registrado em abril de 2024, com 734.853 solicitações; um aumento de 29,4% em relação ao mesmo mês de 2023. Houve um crescimento consecutivo nos últimos quatro anos: um aumento de 125,0% em abril de 2021 na comparação com 2020; 57,1% em 2022; e 2,6% em 2023. Além disso, identifica que as más condições de trabalho — especialmente jornadas extensas, intensas e com flexibilidade unilateral a favor do empregador — são motivações centrais para os desligamentos. Dados oficiais mostram que fatores como adoecimento mental, falta de flexibilidade e dificuldade de conciliação entre vida pessoal e profissional impulsionam essa onda de demissões. Leia aqui a série completa
Introdução
A jornada de trabalho, muitas vezes tratada como uma condição técnica ou jurídica é, na verdade, o resultado de processos históricos marcados por intensas disputas entre capital e trabalho. Nesse sentido, Marx (1996, p. 384) afirma que “o estabelecimento de uma jornada normal de trabalho é o resultado de uma luta multissecular entre o capitalista e o trabalhador”, destacando que os limites ao tempo de trabalho não são naturais nem decorrentes de imperativos tecnológicos, mas sim fruto da luta de classes. Com base nessa perspectiva, este texto não se propõe a discutir a jornada sob sua concepção jurídica no Brasil contemporâneo, tampouco a explorar detalhadamente os mecanismos legais que regulam sua amplitude, distribuição ou intensidade. Adota-se, em vez disso, a noção de jornada normal como equivalente à jornada legal, conforme definição apresentada por Fracalanza (2001), compreendida como o período de labor permitido por lei em seus principais elementos normativos.
O simples aumento do número de pessoas solicitando demissão é comum em períodos de baixa taxa de desemprego, devido à maior probabilidade de se encontrar uma ocupação melhor. O que se procura discutir são os motivos que têm levado o número de pedidos de demissão a superar o observado em momentos historicamente favoráveis, marcados por expansão econômica e baixo desemprego.
Esse texto tem como objeto de pesquisa o fenômeno da Grande Demissão [1]. Por se tratar de um fenômeno ainda presente e de grande impacto no mercado de trabalho brasileiro, faz-se necessário compreender como a questão do tempo de trabalho está presente na motivação dos trabalhadores ao pedirem demissão. O objetivo deste estudo é identificar se os pedidos de desligamento têm, entre suas causas, a rejeição a empregos que oferecem más condições de trabalho, particularmente aqueles com jornadas extensas, intensas e com flexibilidades definidas de forma a atender apenas aos interesses dos capitalistas, e, se esse alto número de pedidos de demissão reflete a busca dos trabalhadores por uma vida além do trabalho.
Adota-se a compreensão do tempo de trabalho como um fractal do tempo: suas partes reproduzem o todo, diferenciando-se apenas pelas escalas temporais. Suas fronteiras são, ao mesmo tempo, limitadas, infinitas e permeáveis. Por isso, toda luta que envolve a modificação do tempo de trabalho, seja em sua duração, intensidade ou distribuição, tem em comum o mesmo objetivo: a apropriação, pelo trabalhador, do seu próprio tempo.
Assim, coloca-se no mesmo patamar de importância para os trabalhadores os movimentos pela redução da jornada de trabalho (extensão), pela adoção da escala 4×3 (distribuição) e os movimentos pela melhoria das condições de trabalho, que podem impactar tanto a extensão quanto a distribuição e a intensidade da jornada. Por isso, traz-se para este Dossiê, cuja proposta é discutir a alteração da escala 6×1 e a redução da jornada de trabalho, o movimento espontâneo conhecido como a Grande Demissão. Esse movimento é considerado espontâneo porque não é organizado, não é coordenado e, em sua origem, não é coletivo. São ações individuais que se tornam coletivas a partir da soma das partes.
No Brasil, o evento da Grande Demissão iniciou no período da pandemia de Covid-19 [2], mas, diferentemente dos Estados Unidos, permanece até os dias de hoje (Franke, Pinheiro e Calvete, 2025). Nos Estados Unidos, o fenômeno da Grande Demissão foi observado, sobretudo, em 2021 e 2022, quando os pedidos de demissão registraram recordes históricos. Portanto, para estudar o mercado de trabalho brasileiro a pesquisa recorreu à análise descritiva de dados secundários do Caged e do Novo Caged, disponibilizados pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE, 2024). Os dados, observados são referentes a janeiro de 2004 até maio de 2024, estabelecendo o filtro do tipo de desligamento a pedido e desligamentos totais. Ademais, cabe a ressalva de que esta análise se detém apenas aos dados do mercado de trabalho formal.
Para atingir o objetivo de entender qual é o papel do descontentamento dos trabalhadores com as más condições de trabalho e, particularmente, com a forma como é gerida a utilização do seu tempo de trabalho, o estudo apresenta, além desta introdução, a segunda seção, que traz dados que caracterizam o fenômeno da Grande Demissão; a terceira seção, que analisa as informações obtidas pelo Ministério do Trabalho sobre as motivações dos pedidos de demissão; e, por fim, as considerações finais, elaboradas a partir da análise conjunta dos dados sobre o perfil dos trabalhadores que pedem demissão e suas motivações.
Identificando o fenômeno da Grande Demissão no Brasil
Ng e Stanton (2023) indicam que o termo Grande Demissão foi utilizado pela primeira vez por Anthony Klotz, que previu uma grande onda de pedidos de demissão a partir da pandemia de Covid-19. O fenômeno faz referência ao que ocorreu nos Estados Unidos em 2021, quando se observou um número sem precedentes de pedidos de demissão por parte dos trabalhadores. Esse movimento foi impulsionado por diversos fatores e a pandemia de Covid-196 atuou como catalisadora: a insatisfação com as condições de trabalho, a busca por um melhor equilíbrio entre vida pessoal e profissional e a percepção de falta de respeito no ambiente de trabalho (Formica e Sfodera, 2022; Needelman, 2022; Smith, 2022; Sull, Sull e Zweig, 2022; Tessema et Al., 2022; Toulmé, 2025).
Contudo, nos Estados Unidos, a dinâmica dos pedidos de demissão parece indicar que o fenômeno chegou ao fim. De acordo com dados do Bureau of Labor Statistics (BLS, 2025), as taxas de pedidos de desligamento começaram a diminuir e se normalizaram aos níveis pré-pandemia em maio de 2023. Em entrevista, Klotz afirmou que os números gerais de demissões retornaram aos patamares de 2019, sugerindo que o fenômeno da Grande Demissão está efetivamente se encerrando, tendo ficado caracterizado como um acontecimento associado a um período específico (Morgan, 2023). Segundo Toulmé (2025), o descontentamento com os empregos persiste, no entanto, a inflação e o contexto mundial conturbado desencorajam os pedidos de demissão.
Para identificar a ocorrência do fenômeno da Grande Demissão no Brasil, foram utilizados dados sobre o número de pedidos de demissão realizados entre janeiro de 2004 e maio de 2024 (Gráfico 1). Nesse intervalo, o pico foi registrado em abril de 2024, com 734.853 pedidos de demissão – um aumento de 29,4% em relação ao mesmo mês de 2023. Além disso, observa-se um crescimento consecutivo nos últimos quatro anos: em abril de 2021, o número de pedidos aumentou 125,0% em comparação a 2020; em 2022, o crescimento foi de 57,1%; e, em 2023, de 2,6%.

O Gráfico 1 ilustra uma tendência de aumento no número de pedidos de demissão entre 2004 e 2014, acompanhando o período de crescimento da economia brasileira iniciado nos anos 2000. Esse movimento é relevante para o mercado de trabalho, pois contribui para sua dinamização e fortalece o poder de barganha dos trabalhadores frente às empresas. A partir de 2015, contudo, o cenário se altera, com o agravamento das crises políticas e econômicas, impactando negativamente as condições do mercado de trabalho. Soma-se a isso a flexibilização da legislação trabalhista, que favoreceu o avanço da informalidade e a precarização das relações de trabalho.
Na série histórica, observa-se uma inflexão no início do período de distanciamento social no Brasil, adotado como medida para conter o contágio da Covid-19, especialmente nos meses de abril e maio de 2020. Esses dois meses registraram os menores números de pedidos de demissão desde maio de 2004. No entanto, a natureza excepcional desses resultados se confirma à medida que, nos meses subsequentes, verifica-se uma tendência de elevação contínua nos pedidos de demissão, que culmina em seu ponto mais alto em abril de 2024.
Para completar a análise, apresenta-se o detalhamento dos perfis populacionais – ou seja, quem são os trabalhadores e as trabalhadoras que estão pedindo demissão. A Tabela 1 apresenta esse recorte, considerando variáveis como sexo, etnia, escolaridade, idade e região do país. Buscou-se realizar comparações entre períodos distintos, abrangendo: 2023 (último ano com dados completos disponíveis); 2020 (ano marcado pela pandemia de Covid-19, quando surgiram os primeiros indícios do fenômeno da Grande Demissão); 2014 (último ano com baixa taxa de desemprego antes da recessão de 2015-2016); e 2004 (início da fase de melhora no mercado de trabalho, impulsionada pelos efeitos do Plano Real).

Ao se comparar o percentual de pedidos de demissão em relação aos desligamentos em todas as categorias analisadas, observa-se que o ano de 2023 apresentou os maiores índices entre os quatro anos considerados. Esse resultado reforça a evidência da presença do fenômeno da Grande Demissão no Brasil. Destaca-se, em especial, a comparação com 2014, ano em que a taxa de desemprego era de 7,0% (IBGE, 2024). É amplamente reconhecido que, em contextos de baixa taxa de desemprego, os trabalhadores tendem a se sentir mais seguros para pedir demissão, uma vez que aumenta a expectativa de encontrar uma ocupação mais bem remunerada ou com melhores condições de trabalho. Além disso, ao comparar os dados de 2014 com os de 2004 e 2020, observa-se que o percentual de pedidos de demissão foi consistentemente superior naquele ano em todas as categorias analisadas.
No entanto, ao confrontar os dados de 2014 com os de 2023, verifica-se que, em todas as categorias, os percentuais de pedidos de demissão foram ainda mais elevados em 2023. É importante destacar que, segundo o IBGE (2024), a taxa de desemprego em 2023 foi de 7,8%, superior à registrada em 2014. Esse dado reforça a presença e a relevância do fenômeno da Grande Demissão no contexto recente, uma vez que o aumento dos pedidos de desligamento ocorreu mesmo em um cenário de maior insegurança no mercado de trabalho.
A movimentação ao longo do tempo apresentou uma dinâmica semelhante para todos os perfis ocupacionais analisados. Apesar das diferenças percentuais entre os grupos, não foi possível identificar um padrão claro ao comparar as diversas características. Observou-se que trabalhadores brancos registraram taxas de pedidos de demissão superiores às de pretos e pardos; nas regiões Sul e Sudeste, os percentuais foram mais elevados do que nas regiões Norte e Nordeste; e, quanto maior o nível de escolaridade, maior foi o percentual de pedidos de demissão.
Esses dados sugerem que, mesmo quando o fenômeno da Grande Demissão se apresenta de forma generalizada, são as pessoas com maior facilidade de inserção no mercado de trabalho que lideram os pedidos de desligamento. Em parte, isso se explica pela lógica tradicional: em períodos de baixas taxas de desemprego, esses trabalhadores têm mais possibilidades de se recolocar em melhores condições. Entretanto, esse padrão não se confirma em dois perfis, o que coloca em xeque essa suposição: as pessoas do sexo feminino apresentaram percentuais superiores aos do sexo masculino em todos os anos analisados, assim como os trabalhadores mais jovens registraram índices mais elevados. Esses dados indicam que há fatores adicionais, possivelmente de natureza cultural e comportamental, influenciando as dinâmicas do fenômeno.
Pode-se levantar a hipótese de que as mulheres solicitam, proporcionalmente, mais desligamentos do que os homens porque as jornadas extensas e intensas de trabalho as penalizam mais, dado que enfrentam maior discriminação, maior incidência de assédio moral e sexual e ainda acumulam maior responsabilidade com o “terceiro turno”, relacionado aos afazeres domésticos. Essa suposição é, em certa medida, reforçada pelos dados da Tabela 3, que indicam que o percentual de mulheres que pedem demissão por adoecimento físico e mental é superior ao dos homens.
No caso dos jovens, que também têm maior dificuldade de inserção no mercado de trabalho, levantam-se algumas hipóteses para tentar explicar o maior número de pedidos de demissão nessa faixa etária. Uma das possibilidades é o comportamento mais relutante que a nova geração apresenta em relação à ideia de viver para o trabalho, especialmente em contextos de jornadas longas, intensas e imprevisíveis. Outro fator explicativo pode ser a crescente exigência das empresas por dedicação absoluta de seus “colaboradores”, ao mesmo tempo em que, de forma contraditória, demonstram cada vez menos compromisso com a estabilidade, a segurança e o desenvolvimento de carreira desses profissionais. Como já discutido por Linhart (2021), tais exigências refletem transformações no campo da gestão, marcadas pelo novo gerencialismo, que reconfigura as relações de trabalho ao acionar a subjetividade dos trabalhadores como instrumento de controle. Além disso, a mudança de comportamento das novas gerações pode ser influenciada pela valorização da meritocracia, do empreendedorismo e da disposição para o risco. Essas ideias, fortemente associadas ao discurso neoliberal, estimulam a busca constante por novas oportunidades percebidas como mais vantajosas no curto-prazo.
As motivações
O simples aumento no número de pessoas solicitando demissão é algo comum em períodos de baixa taxa de desemprego. O que se busca desvelar são os motivos que têm levado o número de pedidos de demissão a superar o observado em contextos semelhantes, ou seja, em contextos de crescimento econômico e baixas taxas de desemprego.
O MTE realizou uma sondagem entre novembro de 2023 e abril de 2024 para investigar os motivos que levaram trabalhadores a solicitar desligamento. Os dados foram coletados entre os dias 10 e 21 de julho de 2024, por meio de contato direto com todos os trabalhadores que pediram demissão no referido período, obtendo-se retorno de 53.692 respondentes. Embora não tenha sido conduzida com o rigor metodológico de uma pesquisa estatística, o que justifica sua denominação como sondagem, o elevado número de respostas obtidas oferece um panorama confiável das principais motivações para os pedidos de desligamento.
A primeira pergunta da sondagem foi: “Quais os motivos mais importantes que o levaram a pedir seu desligamento do emprego?”. Para respondê-la, os participantes escolheram entre as opções listadas na Tabela 2.

Como era esperado, em períodos de crescimento econômico e baixa taxa de desemprego, o principal motivo apontado para o pedido de demissão foi “já tinha outro emprego em vista”. Esse dado indica que muitos trabalhadores aproveitam o cenário favorável para migrar para ocupações consideradas melhores, seja por oferecerem maior remuneração, seja por proporcionarem melhores condições de trabalho. Entre as demais motivações, destacam-se duas diretamente relacionadas ao tempo de trabalho: “a inexistência de flexibilidade da jornada” (15,7%) e “queria permanecer em teletrabalho” (1,0%). Após essa primeira pergunta, os participantes responderam a uma segunda: “Algum dos motivos abaixo também foi considerado?”. Para essa questão, foram apresentados os fatores listados na Tabela 3.

Na análise dos dados, o MTE interpretou a segunda pergunta como referente a fatores externos ao ambiente de trabalho. No entanto, essa categorização revela-se relativa, uma vez que a influência de elementos considerados “externos” está frequentemente interligada às condições laborais.
Embora a resposta mais frequente tenha sido “não ter sido afetado por fatores externos” (27,8%), a segunda mais mencionada foi “adoecimento mental provocado pelo estresse do trabalho” (23,0%). Quando somados os percentuais de adoecimento mental e físico, o total atinge 31,2%, sugerindo que o adoecimento relacionado ao trabalho constitui, de fato, a principal causa “externa”. Esse tipo de adoecimento pode ser diretamente associado à extensão da jornada, mas, principalmente à intensidade do trabalho e às responsabilidades excessivas atribuídas aos trabalhadores. Destaca-se, ainda, a significativa maior prevalência de casos de adoecimento mental e físico entre as mulheres, em comparação aos homens. Esse dado evidencia não apenas uma disparidade de impacto entre os gêneros, mas também a persistência do tratamento desigual entre homens e mulheres no ambiente de trabalho.
Outras motivações também estão associadas às dimensões do tempo de trabalho: “dificuldade de mobilidade entre casa e trabalho”, que aponta para o grande número de horas dedicadas ao trabalho (jornada, transporte, qualificação etc.); “deixei de trabalhar para estudar”, que revela a incompatibilidade das jornadas extensas com a qualificação profissional; e “necessidade de cuidar de criança ou outra pessoa da família”, que evidencia a dificuldade de conciliar o tempo de trabalho com os cuidados familiares – tarefa que recai, sobretudo, sobre as mulheres.
A sondagem também investigou o grau de satisfação dos trabalhadores em relação à decisão de pedir desligamento. Os resultados indicaram que 76% dos respondentes estavam satisfeitos com a decisão, 14% não estavam satisfeitos e 10% ainda não tinham uma avaliação formada. Esses dados evidenciam um elevado nível de contentamento entre os que optaram pelo desligamento, reforçando a percepção de que, para muitos, a decisão atendeu a expectativas pessoais ou profissionais.
As informações apresentadas nas Tabelas 2 e 3 corroboram a hipótese de que parte dos pedidos de demissão foi impulsionada pelo aquecimento do mercado de trabalho e pela redução da taxa de desemprego, fenômenos frequentemente associados a períodos de crescimento econômico. Contudo, os dados também sugerem que uma parcela significativa dos desligamentos reflete um novo contexto, no qual se contrapõem a crescente precarização dos postos formais de trabalho, marcada por jornadas mais extensas e intensas, e a valorização de uma vida além do trabalho, bem como a demanda por melhores condições laborais.
Considerações finais
Este estudo teve como objetivo principal identificar se o fenômeno da Grande Demissão ocorreu no Brasil e se os pedidos de desligamento têm, entre suas causas, a rejeição a empregos que oferecem más condições de trabalho, particularmente no que se refere ao tempo de trabalho: jornadas extensas, intensas e com flexibilidades definidas de forma discricionária, que atendem apenas aos interesses dos empregadores. A partir dessa hipótese, procurou-se compreender se esse fenômeno expressa, ainda que de forma difusa, a busca dos trabalhadores por uma vida além do trabalho.
Os principais resultados indicam que o fenômeno da Grande Demissão teve início no Brasil a partir de setembro de 2020 e se manteve, pelo menos, até maio de 2024, data dos últimos dados coletados. As evidências apontam que o fenômeno é generalizado, ocorrendo entre ambos os sexos, em todas as etnias, regiões, faixas etárias, níveis de escolaridade e na quase totalidade das ocupações.
Na tentativa de compreender quais são as motivações que levam ao aumento significativo dos pedidos de demissão, observou-se uma diversidade de fatores. A principal razão, como era de se esperar é a possibilidade de obtenção de novas e melhores ocupações em períodos de baixa taxa de desemprego. No entanto, a esse motivo somam-se as más condições de trabalho, os baixos salários, a busca por maior equilíbrio entre vida profissional e pessoal, e a falta de respeito no ambiente laboral.
Podem-se sintetizar esses fatores como reflexos da precarização dos contratos formais no mercado de trabalho. Em paralelo a esse processo, observa-se o crescimento das possibilidades de ocupações informais em plataformas digitais que, em comparação com os empregos formais precarizados, podem, em muitos casos, apresentar-se como vantajosos, dadas as fragilidades dos vínculos tradicionais. Essa aparente vantagem, seja real ou ilusória, decorre da promessa de maior controle do tempo de trabalho por parte do trabalhador, em suas três dimensões: extensão, intensidade e flexibilidade.
Portanto, pode-se concluir que o fenômeno da Grande Demissão resulta da soma de decisões individuais de trabalhadores em busca de melhores condições laborais e de uma vida além do trabalho. A centralidade do tempo de trabalho nessa dinâmica é evidenciada pelas motivações destacadas na sondagem do MTE: dificuldade de mobilidade entre casa e trabalho (21,7%), inexistência de flexibilidade da jornada (15,7%), necessidade de cuidar de crianças ou familiares (9,1%), desejo de estudar (2,4%) e preferência pelo teletrabalho (1,0%). A essas razões soma-se o adoecimento físico e mental (31,2%), amplamente associado à extensão e, sobretudo, à intensidade e às exigências excessivas do trabalho.
Entender o tempo e, particularmente, o tempo de trabalho, como um fractal nos ajuda a perceber que toda luta, seja individual ou coletiva, e toda forma de resistência, contra as gestões do tempo de trabalho que o tornam mais extenso, mais intenso e com distribuição discricionária atendendo apenas aos interesses dos capitalistas faz parte de um mesmo movimento: a luta dos trabalhadores pela apropriação do seu tempo. Essa luta pode se manifestar por meio da reivindicação pela redução da jornada de trabalho, da adoção de escalas mais humanas ou da busca por ocupações que ofereçam jornadas melhores para os trabalhadores, seja em termos de extensão, intensidade ou distribuição. É sob essa perspectiva que se compreende o fenômeno da Grande Demissão e se o insere no conjunto das lutas dos trabalhadores pela apropriação do seu tempo.
Agradecemos as valiosas contribuições da Ana Cláudia Moreira Cardoso e dos pareceristas anônimos. Salientamos que os erros e omissões que porventura permaneceram são de total responsabilidade dos autores.
Notas:
[1] A expressão A Grande Demissão é como está sendo traduzida a expressão original “The Great Resignation” que faz referência ao fenômeno ocorrido nos EUA. Mais detalhes na página 3 a seguir.
[2] Esse fenômeno surge concomitantemente a outro de natureza semelhante: o movimento da demissão silenciosa, que ocorre no local de trabalho (Gallup, 2022; Johnson, 2023; Toulmé, 2025).
Referências
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