Napoli-New York: Desterrados num mundo hostil
Novo filme é baseado em argumento não filmado de Fellini. Duas crianças embarcam clandestinamente para os EUA, em busca da irmã. A hostilidade aos imigrantes e negros dialoga com o que africanos vivem na Europa. No Festival de Cinema Italiano, em todo o país e por streaming
Publicado 30/10/2025 às 16:23

Por José Geraldo Couto, no Blog do IMS
A vigésima edição do Festival de Cinema Italiano no Brasil, que vai até 29 de novembro, exibirá gratuitamente doze filmes inéditos e doze clássicos em mais de cem cidades brasileiras. Os títulos estão disponíveis também na plataforma de streaming Belas Artes à la Carte.
Curiosamente, apenas quatro dos novos longas-metragens são ambientados no presente: A última rodada, de Francesco Sossai, Verão na Sicília, de Margherita Spampinato, Amada, de Elisa Amoruso, e Irmãos, de Greta Scarano. Os outros oito abordam episódios históricos que vão desde uma batalha de Garibaldi até as mulheres encarregadas de provar a comida de Hitler, passando por uma passagem da guerra da Etiópia e pelo momento em que Pirandello se encaminha à Suécia para ganhar seu Nobel – sem contar um documentário sobre o “pai de todos”, o cineasta Roberto Rossellini.
Na mostra retrospectiva estão alguns títulos essenciais, como Ladrões de bicicleta, de Vittorio de Sica, Paisà, de Rossellini, e Antes da revolução, de Bernardo Bertolucci.
De Nápoles a Nova York
Talvez o inédito mais interessante de toda a programação seja Napoli-New York, de Gabriele Salvatores (do oscarizado Mediterrâneo), pela conexão que suscita entre a rica tradição cinematográfica italiana e temas candentes da atualidade.
Baseado num argumento não filmado de Federico Fellini e Tullio Pinelli, o filme se situa em 1949, quando uma Nápoles em escombros tentava se reerguer depois dos bombardeios da Segunda Guerra, e conta a saga de duas crianças pobres e órfãs – Carmine (Antonio Guerra), de uns 13 anos, e Agnese (Anna Lucia Pierro), de uns 10 – que embarcam clandestinamente num navio com destino a Nova York.
Se a primeira parte do filme, ambientada em Nápoles, tem uma abordagem neorrealista, a viagem transatlântica assume o caráter de uma jornada quase mítica rumo a uma América idealizada – sem perder a observação social crítica. Cabe lembrar que, quando escreveu seu argumento, Fellini não tinha jamais pisado na América, e além disso forjou sua fabulação do ponto de vista do olhar das crianças. Em consonância com isso, a Nova York do filme foi toda criada em estúdio – mais precisamente na Cinecittà de tantas produções fellinianas. Com a ajuda de imagens geradas em computador, claro.
O melodrama pessoal vivido pelas duas crianças nas ruas da metrópole americana, à procura da irmã mais velha de Agnese, desvela as duras condições dos imigrantes pobres italianos no pós-guerra e, lateralmente, a opressão que os negros norte-americanos sofriam em seu próprio país. No filme, a distância entre a Little Italy e o Harlem é menor do que no mapa real de Manhattan.
“Continuação” de Paisà
Um dos momentos mais inspirados de Napoli-New York é aquele em que a pequena Agnese entra num cinema que exibe Paisà, o clássico de Rossellini que, aliás, tem Fellini como co-roteirista. No segmento ambientado em Nápoles – em que um menino de rua rouba as botas de um soldado negro americano embriagado – Agnese reconhece lugares e pessoas familiares e proclama isso em voz alta, sendo retirada à força da sala. Napoli-New York, percebemos então, pode ser visto como uma espécie de continuação daquele episódio napolitano – com o personagem do soldado de Paisà replicado no cozinheiro negro (Omar Benson Miller) que ajuda os meninos no navio e, depois, em Nova York.
Em outra passagem, ainda na embarcação que leva os pequenos clandestinos, ouvimos a canção Smile, de Charles Chaplin, na voz de Jimmy Durante, o que nos remete, por associação, ao clássico curta chapliniano O imigrante, também sobre um europeu pobre recebido aos pontapés na “terra da liberdade”.
É disso, afinal, que trata o filme: a condição do desterrado num mundo hostil. Os italianos que sofreram as agruras de reconstruir a vida na América se assemelham nisso aos imigrantes africanos que hoje tentam sobreviver em países europeus, inclusive na Itália. “De onde vocês vêm? Da África?”, alguém pergunta aos meninos a certa altura do filme, ecoando uma indagação feita à família meridionale recém-chegada a Milão, em Rocco e seus irmãos, de Visconti.
A trilha sonora ostensivamente anacrônica (com The Ronettes, Tom Waits, Procol Harum, etc.) é algo que dificilmente ouviríamos se o diretor fosse Fellini. O mesmo se pode dizer de certos clichês melodramáticos, como as cenas de tribunal no julgamento da irmã mais velha de Agnese. Conclusão: para apreciar Napoli-New York como um digno e envolvente “romance de formação” que tem como pano de fundo (e de frente) o tema da imigração, o essencial é não pensar no que teria feito Fellini com esse argumento.
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