Qual Saúde Digital o Brasil constrói?
Ana Estela Haddad, secretária do Ministério da Saúde que comanda a transformação digital do SUS, fala sobre seu trabalho e os próximos planos – que incluem a unificação de prontuários, a segurança dos dados e tentativas de diminuir a dependência das Big Tech
Publicado 13/10/2025 às 08:46 - Atualizado 13/10/2025 às 08:47

Ana Estela Haddad em entrevista a Gabriela Leite
As novas tecnologias digitais podem contribuir para a ampliação do acesso à saúde e impulsionar pesquisas científicas, mas também servir para entrega de dados sensíveis para as Big Techs e representar um risco à soberania do país. Podem ser úteis para para o atendimento médico e para diagnósticos mais precisos, mas também deixar o cuidado menos humano ao transformar pessoas em dados e torná-las ainda mais vulneráveis.
Diante desses dilemas e de uma pressão cada vez maior das grandes corporações, uma das primeiras medidas do Ministério da Saúde no novo governo Lula, em 2023, foi criar a Secretaria de Informação e Saúde Digital, a Seidigi. Ana Estela Haddad, professora titular da Faculdade de Odontologia da USP, foi nomeada para comandá-la e está no cargo desde então. Ela foi uma das convidadas para o Seminário SUS 35 anos, organizado por Outra Saúde e seus parceiros, para participar de um debate sobre a transformação digital da saúde (assista e saiba mais).
À ocasião do debate, a secretaria concedeu uma entrevista exclusiva para este boletim, na qual refletiu sobre o trabalho desempenhado por sua gestão e quais os planos para os próximos meses. Ana Estela falou especialmente sobre uma das principais mudanças em andamento: a incorporação do número do CPF dos brasileiros para unificar os cadastros no SUS, integrando todos os prontuários de forma a facilitar o atendimento nos serviços públicos.
A medida é importante porque, hoje, um usuário pode ter mais de um registro no SUS, o que prejudica seu cuidado. O trabalho que está sendo feito para reduzir a fragmentação ainda levará alguns meses, explica a secretária: “Havia 340 milhões de registros, e já limpamos 54 milhões. Muitos eram duplicados, com pessoas tendo quatro ou cinco registros diferentes. Esperamos que até abril de 2026 o número chegue a cerca de 234 milhões, próximo ao total de CPFs ativos na Receita Federal”.
Como os dados de saúde são considerados extremamente sensíveis, é preciso que haja cuidado para seu tratamento. Ana Estela reafirma que “qualquer compartilhamento de dados atende exclusivamente ao interesse do usuário do SUS, para um atendimento seguro e para subsidiar políticas públicas”.
Ter cuidado com o tratamento dos dados é importante, mas não haverá soberania plena enquanto o seu armazenamento estiver em servidores das megacorporações do Norte Global. Hoje, o Brasil não possui tecnologia e nem data centers suficientes para guardar os dados de sua população.
Trata-se de uma preocupação declarada pela Seidigi: “Vínhamos de uma situação de desvantagem tecnológica e dependência de infraestrutura de outros países. Agora há um movimento do governo para mudar isso. Foi publicada uma medida provisória que oferece incentivos para empresas que investirem em infraestrutura de data centers e tecnologia no Brasil”, afirma Ana Estela, citando também o plano do governo para construir uma Inteligência Artificial nacional, “baseada na nossa língua, população e dados – e que seja usada para o bem coletivo, com transparência e sem manipulação dos usuários”.
Fique com a entrevista completa
A saúde digital é uma realidade relativamente nova para o SUS, e vem se tornando cada vez mais importante, inclusive nesse novo governo do Lula. Queria que você falasse um pouco sobre a importância para o futuro que queremos construir para a Saúde brasileira.
Essas mudanças ao longo dos anos para mim estão marcadas nas minhas duas incursões no Ministério da Saúde. A primeira aconteceu há 20 anos, quando a Secretaria de Gestão do Trabalho e Educação na Saúde (SGTES) também estava recém-criada, dando consequência ao inciso do artigo 200 da Constituição, que diz que cabe ao SUS ordenar a formação de recursos humanos.
De lá para cá, muita coisa foi se consolidando na política de formação e educação permanente no trabalho em saúde. E agora, 20 anos depois da criação da SGTES, o Ministério cria uma nova secretaria, a de Informação e Saúde Digital.
É importante marcar que seria muito diferente criar uma secretaria como essa em um país que não tivesse um sistema público de saúde como o nosso. Podemos fazer a transformação digital porque temos uma base robusta sobre a qual construir. O DataSUS tem mais de 400 sistemas de informação que monitoram ações e serviços de saúde, acompanhando a linha da vida da população brasileira.
Há 20 anos, começamos também a aplicar e usar a telessaúde, acumulando uma experiência que hoje permite juntar tudo isso. Temos um marco teórico que começa com a Reforma Sanitária Brasileira e a criação do SUS, o que nos permite pensar e construir essa transformação de forma única e original em relação a outros países.
Queria que você falasse um pouco sobre a novidade do uso do CPF no cartão do SUS. O que isso significa e o que vem pela frente?
Hoje há um esforço do governo de implantar a carteira de identificação nacional, digital, unificada e ligada a dados biométricos. Isso permite uma identificação única e integração dos serviços públicos para o cidadão. A saúde participa desse movimento e há ganhos diretos para as pessoas.
Um deles é a agilidade no atendimento: o CPF é um número que todos sabem de cor, diferente do número extenso do cartão do SUS. É um número único e vitalício. Além disso, evita a fragmentação dos registros de saúde, algo que ainda ocorre quando são gerados diferentes números de cartão para uma mesma pessoa. Com o CPF como número único, teremos o prontuário unificado.
Isso é importante porque o cidadão poderá conhecer seu histórico de atendimentos, exames e tratamentos, e o profissional poderá realizar atendimentos com continuidade e qualidade, baseados nesse histórico.
Isso ajuda na integração, inclusive da Atenção Primária, certo?
Exatamente. Por exemplo, se o paciente é atendido na Atenção Primária e depois em outro serviço ou hospital, os registros poderão ser integrados. Com a interoperabilidade dos sistemas e o CPF como identificador único, os profissionais terão acesso em tempo real a essas informações, em diferentes locais e momentos.
E quanto tempo isso deve levar para ser implementado?
São vários passos. O primeiro, já em vigor, é que os novos cartões de saúde passam a trazer o CPF junto ao nome. O segundo é a higienização do Cadastro Nacional de Usuários, iniciado em julho. Havia 340 milhões de registros, e já limpamos 54 milhões. Muitos eram duplicados, com pessoas tendo quatro ou cinco registros diferentes. Esperamos que até abril de 2026 o número chegue a cerca de 234 milhões, próximo ao total de CPFs ativos na Receita Federal.
A higienização será contínua, mas esse é um bom patamar. Ao mesmo tempo, estamos “fechando a torneira”: o CPF será o identificador padrão e novos números só poderão ser gerados de forma temporária, sendo depois desativados.
O terceiro passo, até o fim de 2026, é ajustar os sistemas do SUS que ainda não usam o CPF como identificador. Alguns exigem pequenas mudanças, outros têm impacto alto, com mais de 40 alterações necessárias. Até o final de 2026, queremos concluir isso e realizar capacitações com profissionais de saúde e campanhas com a população sobre o uso do CPF.
Você falou um pouco sobre soberania digital, mas queria retomar a questão da relação entre a saúde pública e a saúde privada. No governo Bolsonaro houve a tentativa de implementar o chamado Open Health, que integrava – ou, na verdade, entregava – dados do SUS ao setor privado. Como vocês veem isso hoje?
Temos total preocupação com isso. O que estamos fazendo não tem nada a ver com o Open Health. Escolhemos um modelo de interoperabilidade baseado na Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS). O decreto 12.560, que institui a RNDS, é claro ao afirmar que qualquer compartilhamento de dados atende exclusivamente ao interesse do usuário do SUS, para um atendimento seguro e para subsidiar políticas públicas. A arquitetura é totalmente compatível com a LGPD [Lei Geral de Proteção de Dados], e não está no nosso horizonte de forma alguma o compartilhamento de dados com o setor privado.
E quanto à soberania digital?
Vínhamos de uma situação de desvantagem tecnológica e dependência de infraestrutura de outros países. Agora há um movimento do governo para mudar isso. Foi publicada uma medida provisória que oferece incentivos para empresas que investirem em infraestrutura de data centers e tecnologia no Brasil. Isso reduz custos e estimula o desenvolvimento nacional.
Além disso, Dataprev e Serpro estão desenvolvendo suas próprias nuvens de governo, o que chamamos de “nuvem soberana”. Isso significa que os dados e servidores estão no país e que buscamos autonomia sobre a tecnologia usada. Ainda não completamos esse movimento, mas estamos caminhando nessa direção.
O governo também conduz o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial, com investimento de R$ 23 bilhões, liderado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. A ideia é desenvolver uma IA própria, inclusive generativa, baseada na nossa língua, população e dados – e que seja usada para o bem coletivo, com transparência e sem manipulação dos usuários.
Quais são os planos da secretaria para o próximo ano e até o fim da gestão?
Precisamos consolidar o componente do SUS Digital dentro do programa “Agora Tem Especialistas”, fortalecendo a comunicação direta com o paciente, o monitoramento e avaliação e a expansão da telesaúde. Ao mesmo tempo, queremos deixar bem consolidada a direcionalidade da nossa arquitetura de interoperabilidade e da Rede Nacional de Dados em Saúde, dentro de uma infraestrutura que represente a soberania digital. Esses são alguns dos objetivos que pretendemos entregar até o final do mandato do presidente Lula.
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