Quem tenta cancelar o Antropoceno?

Após décadas, que remontam a 2,8 milhões de anos, a ciência compreendeu como a ação humana altera ciclos da Terra que duram cem milênios. Duas instituições acadêmicas conservadoras temem as consequências políticas desta descoberta

Arte: Stephanie Dalton Cowan
.

Por Ian Angus, na Monthly Review | Tradução: Marcos Montenegro

Há cerca de 2,8 milhões de anos, o nível de dióxido de carbono na atmosfera da Terra caiu, desencadeando uma Era Glacial. Desde então, mudanças de longo prazo na órbita e inclinação da Terra, chamadas ciclos de Milankovitch, têm produzido oscilações na temperatura global a cada 100.000 anos, aproximadamente. Nas fases glaciais (frias), camadas de gelo com quilômetros de espessura cobriam a maior parte do planeta; em períodos interglaciais (quentes), mais curtos, o gelo recuou em direção aos polos. Nos últimos 11.700 anos, vivemos em um período interglacial que os geólogos chamam de Época Holocena.

Em circunstâncias normais, as geleiras e as calotas polares estariam crescendo lentamente. Como mostram pesquisas recentes, “se não fossem os efeitos do aumento de CO2, a formação de geleiras atingiria uma taxa máxima nos próximos 11.000 anos”.1Em vez de aquecimento global, o futuro da Terra seria o congelamento global, mas apenas em um futuro distante.

No entanto, como qualquer pessoa minimamente atenta às questões ambientais sabe, as geleiras e calotas polares do mundo não estão se expandindo; elas estão encolhendo — rapidamente. Entre 1994 e 2017, a Terra perdeu 28 trilhões de toneladas de gelo, e a taxa de declínio aumentou 57% desde a década de 1990.2Mesmo que as emissões de gases de efeito estufa sejam reduzidas rapidamente, as condições que impedem o retorno das camadas de gelo continentais provavelmente persistirão por pelo menos 50.000 anos. Se as emissões não cessarem, o gelo não retornará por pelo menos meio milhão de anos.3

Em suma, como resultado direto das emissões de gases de efeito estufa causadas pela atividade humana, a Era Glacial foi cancelada.

Esta é a prova concreta de uma das conclusões mais radicais da ciência do século XXI: “A Terra já deixou sua época geológica natural, o atual estado interglacial chamado Holoceno. As atividades humanas tornaram-se tão penetrantes e profundas que rivalizam com as grandes forças da natureza e estão empurrando a Terra para terra incógnita planetária .”4

Os cientistas que chegaram a essa conclusão chamaram a nova era de Antropoceno. Um volume avassalador de evidências mostra que uma nova fase na história do sistema terrestre começou, caracterizada por grandes mudanças em muitos aspectos do mundo natural, caminhando para condições às quais os humanos podem não sobreviver. Eles demonstraram que muitas das maiores mudanças são irreversíveis em qualquer escala de tempo humana. Dataram o início dessa transformação radical em meados do século XX. Também demonstraram que registros físicos da mudança podem ser vistos em estratos geológicos.

Para qualquer observador razoável, o caso é irrefutável. No entanto, alguns cientistas proeminentes negam que tenha ocorrido uma mudança qualitativa, e uma das maiores organizações científicas do mundo votou contra o reconhecimento formal da nova era. As pesquisas e os debates que levaram a esse resultado perverso ajudam a iluminar os desafios que cientistas e ecossocialistas enfrentam em nosso tempo.

Ciência do Sistema Terrestre

Durante as décadas de 1970 e 1980, um número crescente de cientistas chegou à conclusão de que os métodos científicos tradicionais focados em questões locais ou regionais eram insuficientes para entender os problemas ambientais — que a Terra como um todo havia entrado em um período de crise extrema causada pela atividade humana.

Em 1972, por exemplo, Barbara Ward e René Dubos escreveram que “os dois mundos do homem — a biosfera de sua herança, a tecnosfera de sua criação — estão desequilibrados, na verdade potencialmente em profundo conflito”. A Terra enfrentou “uma crise mais repentina, mais global, mais inescapável e mais desconcertante do que qualquer outra já enfrentada pela espécie humana e que tomará forma decisiva durante o período de vida das crianças que já nasceram”.5

Vários livros best-sellers de James Lovelock promoveram o que ele chamou de “hipótese Gaia” — a de que a matéria viva regula ativamente o ambiente planetário para garantir as condições ideais que sustentam a vida. Suas ideias foram rejeitadas pela maioria dos cientistas, mas sua popularidade incentivou o estudo do planeta como um todo. Alguns cientistas ainda usam a palavra Gaia como sinônimo do Sistema Terrestre.6

A NASA formou um Comitê de Ciências do Sistema Terrestre em 1983, declarando que seu objetivo era “obter uma compreensão científica de todo o Sistema Terrestre em escala global, descrevendo como seus componentes e suas interações evoluíram, como funcionam e como se espera que continuem a evoluir em todas as escalas de tempo”.7Milhões de imagens de alta resolução da Terra obtidas pelos satélites Landsat, lançados pela primeira vez em 1972, contribuíram para esse esforço.

Em 1986, o Conselho Internacional de Uniões Científicas aprovou a formação do Programa Internacional Geosfera-Biosfera (IGBP) “para descrever e entender os processos físicos, químicos e biológicos interativos que regulam todo o sistema da Terra, o ambiente único que ele fornece para a vida, as mudanças que estão ocorrendo neste sistema e a maneira como elas são influenciadas pelas atividades humanas”.8

O IGBP iniciou suas operações em 1990, com um secretariado em Estocolmo e uma variedade de grupos de trabalho internacionais que envolviam milhares de cientistas. Em qualquer medida, foi “o maior, mais complexo e mais ambicioso programa de cooperação científica internacional já organizado”. Nos seguintes vinte e cinco anos, o trabalho mais importante na ciência do Sistema Terrestre foi realizado sob a égide do IGBP.

Uma das declarações fundadoras do IGBP começava assim: “A humanidade encontra-se hoje numa posição sem precedentes. No espaço de uma única geração humana, espera-se que o ambiente de sustentação da vida na Terra mude mais rapidamente do que em qualquer período comparável da história humana.”10Essa afirmação provou ser mais perspicaz do que qualquer um poderia imaginar em 1990. Em 2000, em uma reunião em que os diversos grupos de trabalho relataram uma década de pesquisas aprofundadas, o químico atmosférico Paul Crutzen, ganhador do Prêmio Nobel, concluiu que as mudanças acumuladas haviam ultrapassado os limites da era geológica atual. “Não estamos mais no Holoceno”, declarou ele. “Estamos no Antropoceno!”11

A importância dessa percepção não pode ser exagerada. Antropoceno não era apenas uma palavra nova, era uma nova realidade e uma nova maneira de pensar sobre a crise do Sistema Terrestre. Vários participantes importantes no desenvolvimento da Ciência do Sistema Terrestre escreveram recentemente:

A ESS [Ciência do Sistema Terrestre], facilitada por suas diversas ferramentas e abordagens, introduziu novos conceitos e teorias que alteraram nossa compreensão do Sistema Terrestre, particularmente o papel desproporcional da humanidade como impulsionadora de mudanças. O conceito mais influente é o de Antropoceno, introduzido por P. J. Crutzen para descrever a nova era geológica na qual os humanos são os principais determinantes das mudanças biosféricas e climáticas. O Antropoceno tornou-se um conceito unificador excepcionalmente poderoso que coloca as mudanças climáticas, a perda de biodiversidade, a poluição e outras questões ambientais, bem como questões sociais como o alto consumo, as crescentes desigualdades e a urbanização, dentro da mesma estrutura. É importante ressaltar que o Antropoceno está construindo as bases para uma integração mais profunda das ciências naturais, ciências sociais e humanidades, e contribuindo para o desenvolvimento da ciência da sustentabilidade por meio de pesquisas sobre as origens do Antropoceno e suas potenciais trajetórias futuras.12

Crutzen sugeriu inicialmente que o Antropoceno pode ter começado com a Revolução Industrial na década de 1700, mas pesquisas subsequentes concentraram a atenção em meados do século XX.

A chave para esse entendimento foi a descoberta de uma forte subida em uma infinidade de indicadores socioeconômicos globais e de tendências do Sistema Terrestre naquela época; um fenômeno denominado “Grande Aceleração”. Ele coincide com aumentos massivos na energia global consumida pelo homem e mostra o Sistema Terrestre agora em uma trajetória que excede em muito a variabilidade anterior da Época do Holoceno e, em alguns aspectos, de todo o Período Quaternário.13

Em 2004, o IGBP publicou Global Change and the Earth System: A Planet Under Pressure , que sintetizou os resultados de sua pesquisa sobre mudanças globais e argumentou que “o Sistema Terrestre está agora em uma situação sem paralelo, melhor referida como uma nova era na história geológica da Terra, o Antropoceno”.14

Após delinear o que os pesquisadores do IGBP aprenderam sobre a dinâmica complexa do Sistema Terrestre, os autores descreveram como as atividades humanas estão agora mudando-o de maneiras fundamentais. Seu relato incluiu os famosos gráficos da “Grande Aceleração”, mostrando os aumentos sem precedentes na atividade econômica e na destruição ambiental que começaram por volta de 1950. Os grandes ciclos metabólicos que sustentam a vida na Terra — carbono, nitrogênio, água e outros — foram interrompidos, e “a mudança mais rápida e abrangente na relação homem-meio ambiente começou… Nos últimos 50 anos, os humanos mudaram os ecossistemas do mundo de forma mais rápida e extensa do que em qualquer outro período comparável da história humana”.15

Um novo reinado de caos climático?

O Gráfico 1, adaptado de um estudo de dados de núcleos de gelo realizado por cientistas do Instituto Potsdam para Pesquisa de Impacto Climático, mostra a temperatura média anual na Groenlândia nos últimos 100.000 anos.16Os primeiros 90% desse período corresponderam ao fim do Pleistoceno, uma época de 2,6 milhões de anos caracterizada por repetidos avanços e recuos glaciais. Nesse período, o clima global não era apenas frio, mas, em geral, extremamente variável.

Os humanos modernos caminharam sobre a Terra durante todo o tempo mostrado neste gráfico, mas até o Holoceno viveram em pequenos grupos nômades de caçadores-coletores. O historiador climático William J. Burroughs, que chama o período anterior ao Holoceno de “reino do caos”, argumenta convincentemente que, enquanto as mudanças climáticas rápidas e caóticas persistissem, a agricultura e a vida sedentária seriam impossíveis. Para ter sucesso, a agricultura precisa não apenas de estações quentes, mas de um clima estável e previsível — e, de fato, não muito tempo depois do início do Holoceno, humanos em cinco continentes adotaram a agricultura de forma independente como seu modo de vida permanente. “Uma vez que o clima se estabilizou em uma forma que é, em muitos aspectos, reconhecível hoje, todos os elementos do nosso desenvolvimento subsequente (agricultura, cidades, comércio, etc.) puderam florescer.”17

Gráfico 1. Temperatura média anual da Groenlândia, de 100.000 anos atrás até o presente

Notas e Fontes: Registro de temperatura dos últimos 100.000 anos mostrando oscilações drásticas entre períodos frios (glaciais) e quentes, seguidos pela Época Holocena mais quente, iniciada há aproximadamente 11.700 anos. Andrey Ganopolski e Stefan Rahmstorf, “Rapid Changes of Glacial Climate Simulated in a Coupled Climate Model”, Nature 409, n.º 6817 (janeiro de 2001): 153–58.

O Holoceno foi um dos períodos quentes estáveis ​​mais longos dos últimos meio milhão de anos.18De 11.700 anos atrás até o século XX, a temperatura média global não variou mais de um grau Celsius — para cima ou para baixo, meio grau. Isso não quer dizer que o clima do Holoceno não tivesse extremos: a variação média de um grau incluiu secas, fome, ondas de calor, ondas de frio e tempestades intensas. Mas, no geral, foi marcado por um clima nem muito quente, nem muito frio, do tipo “Cachinhos Dourados”.

Em 2009, vinte e nove cientistas renomados do Sistema Terrestre definiram nove limites planetários que, se ultrapassados, poderiam desestabilizar o Sistema Terrestre. Permanecer dentro desses limites manteria condições semelhantes às do Holoceno, o único ambiente que sabemos com certeza que pode sustentar sociedades humanas grandes e complexas. A atualização mais recente, publicada em 2023, constatou que seis dos nove limites foram ultrapassados. O Sistema Terrestre deixou o espaço operacional seguro para mudanças climáticas, integridade da biosfera, mudanças no sistema terrestre, mudanças na água doce, fluxos biogeoquímicos (nitrogênio e fósforo) e novas entidades, e está próximo do limite para a acidificação dos oceanos. Essas mudanças prenunciam um clima mais quente, mais variável e menos previsível do que qualquer sociedade humana estabelecida já experimentou — um novo reinado de caos.

Raramente um novo conceito científico conquistou amplo apoio tão rapidamente quanto o Antropoceno. A década seguinte à declaração espontânea de Crutzen produziu um vasto conjunto de pesquisas sobre o Sistema Terrestre explorando aspectos do conceito. Um ponto de inflexão ocorreu em 2012, quando o IGBP e outras organizações científicas do Sistema Terrestre realizaram uma conferência sobre mudanças globais em Londres. Mais de três mil pessoas compareceram presencialmente e outras três mil compareceram online. A declaração final da reunião foi inequívoca:

Pesquisas demonstram agora que o funcionamento contínuo do Sistema Terrestre, como tem sustentado o bem-estar da civilização humana nos últimos séculos, está em risco. Sem medidas urgentes, podemos enfrentar ameaças à água, aos alimentos, à biodiversidade e a outros recursos essenciais: essas ameaças podem intensificar crises econômicas, ecológicas e sociais, criando o potencial para uma emergência humanitária em escala global…

O impacto da humanidade no Sistema Terrestre tornou-se comparável a processos geológicos em escala planetária, como eras glaciais. Cresce o consenso de que conduzimos o planeta a uma nova era, o Antropoceno, na qual muitos processos do sistema terrestre e o tecido vivo dos ecossistemas são agora dominados por atividades humanas. O fato de a Terra ter experimentado mudanças abruptas e em larga escala no passado indica que poderá experimentar mudanças semelhantes no futuro. Esse reconhecimento levou pesquisadores a dar o primeiro passo para identificar limites e fronteiras planetárias e regionais que, se ultrapassados, podem gerar mudanças ambientais e sociais inaceitáveis.19

Mas a Geologia…

Ainda assim, faltava algo. “Holoceno” é um termo geológico : designa os últimos 11.700 anos, o estágio mais recente da história geológica do planeta. É uma época na Escala de Tempo Geológico, criada para garantir que todos os geólogos tenham uma compreensão comum dos estágios da história física da Terra e usem os mesmos termos para descrevê-la. Qualquer alteração na Escala de Tempo Geológico deve ser formalmente aprovada pela Comissão Internacional de Estratigrafia (ICS) e pela União Internacional de Ciências Geológicas (IUGS), ambas notoriamente conservadoras e resistentes a mudanças.

Foi somente em 2009 que o ICS pediu ao paleobiólogo Jan Zalasiewicz, da Universidade de Leicester, no Reino Unido, para presidir um grupo de trabalho para investigar e relatar se os geólogos deveriam reconhecer formalmente o Antropoceno como uma nova época.

O Grupo de Trabalho do Antropoceno (AWG) teve que começar do zero: grupos de trabalho anteriores baseavam suas deliberações em décadas de pesquisas existentes, mas ninguém ainda havia buscado evidências geológicas de uma ruptura entre o Holoceno e uma possível nova era. Nos anos que se seguiram à formação do AWG, geólogos de todo o mundo conduziram dezenas de projetos de pesquisa sobre o assunto, com resultados publicados em periódicos revisados ​​por pares e em livros editados por membros do AWG.

Havia uma quantidade imensa de dados e análises para assimilar, especialmente porque o grupo era pequeno e seus membros eram voluntários não remunerados. No entanto, em 2015, eles já haviam acumulado e avaliado uma massa de evidências geológicas — fortes indicadores físicos de que uma mudança radical estava ocorrendo. Um artigo resumindo essas evidências foi publicado na revista Science em janeiro de 2016.

O aparecimento de materiais manufaturados em sedimentos, incluindo alumínio, plástico e concreto, coincide com picos globais de radionuclídeos e partículas radioativas provenientes da combustão de combustíveis fósseis. Os ciclos do carbono, nitrogênio e fósforo foram substancialmente modificados ao longo do último século. As taxas de elevação do nível do mar e a extensão da perturbação humana no sistema climático excedem as mudanças do Holoceno Superior. As mudanças bióticas incluem invasões de espécies em todo o mundo e taxas de extinção aceleradas. Esses sinais combinados tornam o Antropoceno estratigraficamente distinto do Holoceno e de épocas anteriores…

As assinaturas estratigráficas descritas acima são inteiramente novas em relação àquelas encontradas no Holoceno e em épocas preexistentes, ou quantitativamente fora da faixa de variação das subdivisões propostas para o Holoceno. Além disso, a maioria das forças próximas dessas assinaturas está atualmente se acelerando. Esses atributos distintivos do registro geológico recente corroboram a formalização do Antropoceno como uma entidade estratigráfica equivalente a outras épocas geológicas formalmente definidas. O limite deve, portanto, ser estabelecido seguindo os procedimentos da Comissão Internacional de Estratigrafia.20

Em 2023, o AWG decidiu, por uma maioria esmagadora, que uma nova era geológica começou por volta de 1950, e que o melhor sinal estratigráfico para o início da nova era geológica era a presença de isótopos de plutônio, criados e espalhados pelos testes de bombas de hidrogênio atmosféricas que os Estados Unidos e a União Soviética conduziram entre 1952 e 1963.

Doze locais em cinco continentes foram estudados detalhadamente para verificar sua adequação como sítios de referência. O início do Antropoceno pôde ser claramente identificado em todos os doze, mas os pesquisadores selecionaram o Lago Crawford, no sudoeste de Ontário, como o melhor local para um “pico dourado”. Durante séculos, condições únicas ali preservaram camadas anuais de sedimentos, incluindo camadas intactas contendo plutônio. Três outros locais, no Japão, na China e na Polônia, foram selecionados como sítios auxiliares.

Oposição

O argumento mais comum contra a nova era foi que os seres humanos sempre mudaram o meio ambiente, portanto, o Antropoceno não é novidade. Mais tarde no debate, esse argumento assumiu a forma de uma proposta de que o Antropoceno deveria ser considerado um “evento” informal, que se estendeu por milhares de anos. Nesse contexto, a Grande Aceleração foi, no máximo, uma intensificação de mudanças contínuas de longo prazo, não uma mudança qualitativa.21

Os membros do AWG responderam: “o Antropoceno é de fato uma nova época, não um encapsulamento de todos os impactos antropogênicos na história da Terra”. De fato, essa ideia “contraria o significado central do Antropoceno”, estendendo-o a todas as mudanças induzidas pelo homem ao longo de milhares de anos e ignorando “a mudança abrupta causada pelo homem para um novo estado do Sistema Terrestre que excedeu a variabilidade natural do Holoceno”.22

Em suma, a proposta preservou a palavra, mas apagou seu significado fundamental e conteúdo radical.

Outros argumentos contra a formalização do Antropoceno variaram de triviais (o nome não é apropriado; a ideia vem de fora da geologia; outras épocas são mais longas) a insultuosos (tudo isso é apenas para obter publicidade). Em 2017, membros do AWG reuniram os argumentos publicados contra o Antropoceno e prepararam respostas para cada um. O artigo resultante foi educado e respeitoso, mas ainda assim devastador. Deixou os críticos sem base científica para continuar a oposição.23

No entanto, como Zalasiewicz escreveu mais tarde: “nem esta base de evidências reforçada, nem as evidências adicionais posteriormente reunidas, fizeram algo para diminuir a oposição direta ao Antropoceno por parte de uma minoria de membros do AWG e seus colegas”. Ele continuou:

Isso sugeriu que essa oposição e a de outros membros do ICS — a forte oposição do influente presidente do ICS, Stanley Finney, foi um fator significativo —, mesmo quando respondida e rebatida, não se baseou na quantidade e na qualidade das evidências estratigráficas. Em vez disso, pareceu refletir aspectos mais arraigados do Antropoceno proposto cronoestratigraficamente…

Refutações baseadas em evidências não fizeram nada para impedir novas reiterações da sugestão de “evento”, sugerindo novamente que o conjunto de evidências estratigráficas reunidas pelo AWG era de pouca relevância para a questão central de se uma época do Antropoceno deveria existir.

O Antropoceno claramente toca em nervos que estratos mais antigos não alcançam.24

Em novembro de 2023, quando o AWG apresentou sua proposta formal para reconhecer a nova era, também apresentou uma queixa à Comissão de Geoética, alegando que os executivos do ICS e do IUGS haviam deliberadamente dificultado e prejudicado seu trabalho. A Comissão teria apoiado a queixa e recomendado que nenhuma votação fosse realizada. O IUGS parece ter ignorado a recomendação.

Se os procedimentos normais tivessem sido seguidos, a proposta do AWG deveria ter iniciado um período de discussão aberta. Em vez disso, em março de 2024, a proposta do AWG foi abruptamente rejeitada após uma breve discussão a portas fechadas. O IUGS não respondeu à proposta do AWG, apenas anunciou sua rejeição.

Só podemos especular sobre os motivos que levaram a essa decisão absurda, mas, como os arqueólogos Todd Braje e Jon Erlandson apontaram, esse debate “tem o potencial de influenciar opiniões públicas e políticas relacionadas a questões críticas como mudanças climáticas, extinções, interações humanas e ambientais modernas, crescimento populacional e sustentabilidade”.25Nesse sentido, é certamente relevante que a geologia — uma ciência profundamente implicada na descoberta e exploração de combustíveis fósseis — tenha sido, digamos, conservadora na questão das mudanças climáticas.

Em 2016, o presidente do ICS alegou que “o impulso para reconhecer oficialmente o Antropoceno pode, na verdade, ser político e não científico”.26O oposto parece mais provável: a oposição à ideia do Antropoceno é política, não científica. Certamente, ele e seus colegas garantiram que ninguém possa usar o prestígio do ICS e do IUGS para apoiar ações decisivas para prevenir o caos climático. O preço pago por essa vitória política é uma derrota para a credibilidade da geologia — a Escala de Tempo Geológico não reflete mais com precisão a história da Terra.

O AWG não desapareceu. Ele continua operando como um grupo independente e publicou diversos artigos importantes desde as decisões do ICS e do IUGS.27Assim como Charles Darwin em outra época, eles estão desafiando uma comunidade científica que está empenhada em proteger uma visão de mundo não científica — uma contribuição difícil, mas essencial, para o avanço da ciência.

* * *

Oito anos antes de os principais burocratas da geologia organizada tomarem sua decisão, encerrei um resumo dos debates do Antropoceno com estas palavras:

Ainda é possível que a geralmente conservadora Comissão Internacional de Estratigrafia rejeite ou decida adiar qualquer decisão sobre adicionar o Antropoceno à escala de tempo geológico, mas, como escreve a maioria do AWG, “o Antropoceno já tem uma base geológica sólida, é amplamente utilizado e, de fato, está se tornando um conceito central e integrador na consideração das mudanças globais…”

Em outras palavras, o fracasso em vencer uma votação formal não fará com que o Antropoceno desapareça.28

Desde que escrevi isso, o volume e a persuasão das evidências só aumentaram. As temperaturas mais altas da história da humanidade, extinções de espécies em escala sem precedentes, um excesso global de plásticos e produtos químicos sintéticos que a natureza não consegue absorver, múltiplas pandemias de doenças até então desconhecidas e muitas outras crises confirmam que uma enorme interrupção dos sistemas de suporte à vida na Terra está em andamento, em uma nova e mais mortal etapa da história planetária.

O Antropoceno pode não ser oficial, mas é real.


Notas

  1. Stephen Barker et al., “Distinct Roles for Precession, Obliquity, and Eccentricity in Pleistocene 100-kyr Glacial Cycles,” Science 387, no. 6737 (February 28, 2025).
  2. Thomas Slater et al., “Review Article: Earth’s Ice Imbalance,” Cryosophere 15 (January 25, 2021): 233–46.
  3. C. P. Summerhayes et al., “The Future Extent of the Anthropocene Epoch: A Synthesis,” Global and Planetary Change 242 (November 2024): 104568.
  4. Will Steffen, Paul J. Crutzen, and John R. McNeill, “The Anthropocene: Are Humans Now Overwhelming the Great Forces of Nature?,” Ambio 36, no. 8 (December 2007): 614.
  5. Barbara Ward and Rene Dubos, Only One Earth: The Care and Maintenance of a Small Planet (New York: W. W. Norton, 1972), 12.
  6. For a detailed scientific evaluation, see Toby Tyrrell, On Gaia: A Critical Investigation of the Relationship Between Life and Earth (Princeton: Princeton University Press, 2013).
  7. National Research Council, Earth System Science—Overview: A Program for Global Change (Washington, DC: National Academies Press, 1986), 4.
  8. National Research Council, Global Environmental Change: Research Pathways for the Next Decade (Washington, DC: National Academies Press, 1999), 3.
  9. Juan G. Roederer, “ICSU Gives Green Light to IGBP,” Eos 67, no. 41 (October 14, 1986): 777–81.
  10. International Geosphere-Biosphere Programme, IGBP Global Change: The Initial Core Projects, Report no. 12 (Stockholm: International Council of Scientific Unions,1990), 1–3.
  11. Descrevi esse processo com mais detalhes no primeiro capítulo deFacing the Anthropocene (New York: Monthly Review Press, 2016).
  12. Will Steffen et al., “The Emergence and Evolution of Earth System Science,” Nature Reviews Earth & Environment 1 (January 2020): 59.
  13. Martin Head et al., “The Great Acceleration Is Real and Provides a Quantitative Basis for the Proposed Anthropocene Series/Epoch,” Episodes Journal of International Geoscience 45, no. 4 (December 2022): 359–76.
  14. Will Steffen et al., Global Change and the Earth System: A Planet Under Pressure (New York: Springer, 2004), 93.
  15. Steffen, Crutzen, and McNeill, “The Anthropocene: Are Humans Now Overwhelming the Great Forces of Nature?,” 617.
  16. Andrey Ganopolski and Stefan Rahmstorf, “Rapid Changes of Glacial Climate Simulated in a Coupled Climate Model,” Nature 409 (January 11, 2001): 153–58.
  17. William J. Burroughs, Climate Change in Prehistory: The End of the Reign of Chaos (Cambridge: Cambridge University Press, 2005), 13, 102.
  18. J. R. Petit et al., “Climate and Atmospheric History of the Past 420,000 Years from the Vostok Ice Core, Antarctica,” Nature 399 (June 3, 1999): 429–36.
  19. Final Issues Statement from Planet Under Pressure Conference, London, 2012,” EarthSky, March 29, 2012, earthsky.org.
  20. Colin N. Waters et al., “The Anthropocene Is Functionally and Stratigraphically Distinct from the Holocene,” Science 351, no. 6269 (2016).
  21. Matthew Edgeworth et al., “The Anthropocene Is More Than a Time Interval,” Earth’s Future 12, July 18, 2024.
  22. Jan Zalasiewicz et al., “Reply to Edgeworth et al. 2024: The Anthropocene Is a Time Interval, and More Besides,” ESS Open Archive, December 23, 2024.
  23. Jan Zalasiewicz et al., “Making the Case for a Formal Anthropocene Epoch: An Analysis of Ongoing Critiques,” Newsletters on Stratigraphy 50, no. 2 (April 2017): 205–26.
  24. Jan Zalasiewicz, foreword to Martin Bohle, Boris Holzer, Leslie Sklair, and Fabienne Will, The Anthropocene Working Group and the Global Debate Around a New Geological Epoch (New York: Springer, 2025), ix, xii, xiv.
  25. Todd J. Braje and Jon M. Erlandson, “Looking Forward, Looking Back: Humans, Anthropogenic Change, and the Anthropocene,” Anthropocene 4 (December 2013): 116–21.
  26. Stanley C. Finney and Lucy E. Edwards, “The ‘Anthropocene’ Epoch: Scientific Decision or Political Statement?,” GSA Today 26, no. 3 (March 2016): 4–10.
  27. Among others: Summerhayes et al., “The Future Extent of the Anthropocene Epoch”; Francine McCarthy Martin J. Head, Colin N. Waters, and Jan Zalasiewicz, “Would Adding the Anthropocene to the Geologic Time Scale Matter?” AGU Advances 6, no. 2 (February 2025); Mark Williams et al., “Palaeontological Signatures of the Anthropocene Are Distinct from Those of Previous Epochs,” Earth-Science Reviews 225 (August 2024): 104844.
  28. Angus, Facing the Anthropocene, 58.

Outras Palavras é feito por muitas mãos. Se você valoriza nossa produção, contribua com um PIX para [email protected] e fortaleça o jornalismo crítico.

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *