Genocídio: a mão oculta do sistema financeiro

Investigação inédita revela a cumplicidade de grandes rentistas internacionais com o massacre. Bancos, fundos e seguradoras compram ou intermediam títulos que alimentam a máquina da morte. Itaú está envolvido, diz um dos levantamentos

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Por Siem Eikelenboom e Casper Rouffaer , no Follow the Money | Tradução: Antonio Martins

Os títulos do governo israelense estão se mostrando vitais para o financiamento da guerra do país em Gaza. A alemã Allianz e grandes bancos europeus como Deutsche Bank e BNP Paribas estão investindo ou chancelando os títulos, o que suscita preocupações sobre possíveis violações das diretrizes de direitos humanos para multinacionais.

Gigantes financeiros, entre eles a seguradora alemã Allianz e grandes bancos norte-americanos, podem ter violado diretrizes corporativas ao comprar ou intermediar títulos do governo israelense enquanto o país conduz a guerra em Gaza, alertam especialistas.

Dias depois dos ataques do Hamas em 7 de outubro de 2023, uma campanha para venda de títulos israelenses foi lançada. A Israel Bonds – uma empresa afiliada ao governo – comercializa os títulos com o slogan “Israel está em guerra. Nós apoiamos Israel”.

O slogan usado para comercializar os títulos do governo israelense

O volume de títulos emitidos e vendidos disparou nos últimos dois anos, atraindo críticas de grupos da sociedade civil, parlamentares de países da União Europeia e da principal especialista da ONU em direitos palestinos, à medida que a guerra de Israel em Gaza se intensificava.

A Allianz é de longe a maior compradora, tendo adquirido 960 milhões de dólares por meio de sua subsidiária PIMCO – uma empresa norte-americana de gestão de investimentos –, de acordo com uma análise do grupo de pesquisa financeira Profundo, sediado na Holanda. A pesquisa foi publicada pela ONG holandesa BankTrack [ou Rastreamento dos Bancos]

Embora a Allianz seja a principal compradora de títulos do governo israelense, três quartos da lista consistem em empresas de serviços financeiros sediadas nos EUA.

A Vanguard (com um investimento de 546 milhões de dólares), a Wellington Management (250 milhões de dólares), a Franklin Resources (173 milhões de dólares) e a Capital Group (124 milhões de dólares) completam os cinco maiores investidores.

Além da Allianz, há outros três compradores europeus. São eles o banco italiano BPER Banca (com um investimento de 99 milhões de dólares), o banco francês Crédit Agricole e o alemão DZ Bank (com 27 milhões de dólares, respectivamente).

O Itaú Unibanco do Brasil (31 milhões de dólares) é o único comprador na lista que não sediado nos EUA ou na Europa.

Relação dos maiores investidores privados em bônus emitidos por Israel desde 7/10/2023. Fonte: Profundo (https://profundo.nl), Janeiro de 2025 (últimos dados disponíveis)

Mas os responsáveis por abastecer os cofres de guerra de Israel não são apenas investidores como a Allianz. Sete grandes bancos atuam como intermediários ao subscrever os títulos para o governo israelense, mostrou a pesquisa do site holandês Profundo. Entre 7 de outubro de 2023 e janeiro deste ano, o valor total dos títulos emitidos foi de 19,4 bilhões de dólares.

Entre esses bancos estão quatro pesos-pesados dos EUA, incluindo Goldman Sachs e Bank of America, e três na Europa: o alemão Deutsche Bank, o francês BNP Paribas e o Barclays no Reino Unido1.

Empréstimos tomados por Israel
batem recorde,
para financiar o massacre

A tomada de recursos por Telaviv chegou ao máximo em 2024, para sustentar o genocídio, segundo reportado pela Agência Bloomberg. O pico anterior, de 2020, estava relacionado com a pandemia de covid-19. Os valores estão expressos em shekels. Um shekel equivale a cerca de US$ 0,25

Especialistas jurídicos e em políticas públicas disseram ao Follow the Money (FTM) que as partes europeias envolvidas podem ter violado as diretrizes de responsabilidade corporativa da OCDE, organização para o desenvolvimento econômico.

As diretrizes não são legalmente vinculativas para as empresas, mas os governos que as assinaram devem garantir que sejam implementadas e seguidas.

“Qualquer pessoa que tenha avaliou independentemente a situação em Israel vê não apenas violações de direitos humanos, mas também crimes de guerra, crimes contra a humanidade e genocídio”, disse Tara Van Ho, professora associada de direito na St. Mary’s University, no Texas, e especialista nas diretrizes da OCDE. “Se empresas com conhecimento disso continuam suas atividades mesmo assim, sabendo que não têm influência sobre as escolhas de Israel, isso é uma violação flagrante de suas responsabilidades em matéria de direitos humanos”, acrescentou Van Ho.

A Allianz não respondeu diretamente às perguntas da Follow the Money sobre se a compra de títulos do governo israelense estava em conformidade com as diretrizes da OCDE.

“Embora não comentemos sobre relacionamentos ou investimentos individuais de clientes, todas as decisões de negócios na Allianz são tomadas em estrita conformidade com a legislação nacional e internacional aplicável, bem como em alinhamento com nossos abrangentes padrões ambientais, sociais e de governança”, disse um porta-voz.

A FTM contactou os sete bancos envolvidos na subscrição dos títulos para um comentário.

O BNP Paribas – que, de acordo com a pesquisa do Profundo e registos do governo dos EUA, subscreveu 2 bilhões de dólares em títulos israelenses em março de 2024 – afirmou que não investiu nem forneceu qualquer financiamento e que o seu “papel como intermediário está agora encerrado”.
O Citigroup e o Deutsche Bank recusaram-se a comentar. Os outros quatro bancos – Bank of America, Barclays, Goldman Sachs e JPMorgan Chase – não responderam.

Uma forma de cumplicidade”

Allianz, Barclays, BNP Paribas e Deutsche Bank afirmam seguir as diretrizes da OCDE, que exigem que as empresas identifiquem possíveis riscos ou impactos negativos aos direitos humanos em suas operações e os previnam ou reduzam.

De acordo com as diretrizes, as empresas devem fazê-lo envolvendo-se em diálogo com os atores relevantes – como outras empresas, governos, especialistas e ONGs.
No entanto, no caso dos títulos israelenses, é óbvio que essas instituições financeiras não podem influenciar a política de Israel quando se trata de violações de direitos humanos em Gaza e também na Cisjordânia, disse Joseph Wilde-Ramsing, diretor de advocacy da ONG holandesa SOMO (Centro de Pesquisa sobre Corporações Multinacionais).
“Se as empresas não fizerem isso, ou o fizerem sem resultados, há o risco de que suas atividades mudem de ‘diretamente ligadas’ a violações de direitos humanos para ‘contribuindo’ para elas, uma forma de cumplicidade”, disse Wilde-Ramsing, que também é conselheiro do Observatório da OCDE [OCDE Watch], uma rede de organizações da sociedade civil com mais de 140 membros, em 50 países.

Os sites dos bancos norte-americanos envolvidos na subscrição dos títulos israelenses não mencionam as diretrizes da OCDE.

No entanto, isso não reduz suas responsabilidades de segui-las, uma vez que o governo dos EUA é um dos signatários, disse Wilde-Ramsing.

Indignação na Irlanda e em Luxemburgo

Os títulos estiveram recentemente no centro das atenções globais, que se estenderam da Irlanda e Luxemburgo à Assembleia Geral da ONU em Nova York.

Em julho, um relatório de Francesca Albanese, Relatora Especial da ONU sobre a situação dos direitos humanos nos territórios palestinos, afirmou que os títulos do governo israelense desempenharam um “papel crítico” em Gaza.

E no mês passado, o Banco Central da Irlanda anunciou que a aprovação do prospecto de 2025 para os títulos israelenses no mercado da UE estava sendo transferida para a autoridade financeira de Luxemburgo.

Para vender títulos do governo israelense na UE, é necessária a aprovação de um banco central do bloco. Como consequência do Brexit, Israel designou a Irlanda como o país para aprovar seus títulos, uma responsabilidade que havia sido dada ao Reino Unido antes de 2021.

A situação tornou-se cada vez mais controversa este ano, devido à postura da Irlanda. Houve resistência de parlamentares da oposição e ativistas, e pedidos para que o banco central se recusasse a aprovar os títulos.

A transferência da aprovação do prospecto de 2025 para Luxemburgo também gerou reação política no pequeno país da UE. De acordo com o Luxembourg Times, políticos da oposição afirmam que o regulador financeiro ignorou o direito internacional e alertam que o país pode ser visto como cúmplice em crimes de guerra e genocídio.

A história dos títulos do governo israelense

Israel, como todas as nações, emite títulos do governo para levantar fundos.

Em 3 de setembro de 1950, o primeiro primeiro-ministro do país, David Ben-Gurion, revelou um plano para apoiar o novo Estado por meio de títulos soberanos.

Para despertar também o interesse da diáspora judaica e das principais instituições financeiras, Ben-Gurion apresentou os títulos aos norte-americanos um ano depois, no Madison Square Garden, em Nova York.

Desde 1951, os títulos da dívida israelense são vendidos nos EUA pela Development Corporation for Israel – comumente conhecida como Israel Bonds. Esse veículo de captação opera como um intermediário entre o ministério das Finanças de Israel e o mercado norte-americano.
Entre 1951 e julho de 2023, a Israel Bonds arrecadou 49 bilhões de dólares por meio de títulos. Esses recursos obtidos com os títulos têm sido, como é usual com o financiamento de títulos públicos, um instrumento importante para sustentar o orçamento do governo israelense.

Dados do ministério das finanças de Israel mostram que o país emitiu dívida externa no valor de cerca de 10 bilhões de dólares em 2023 e aproximadamente 13,5 bilhões de dólares em 2024.

Durante o período de 2014 a 2022, a média comparável foi cerca de 75% menor. A partir desse orçamento, Israel construiu estradas e edificou casas, escolas e hospitais, entre outras coisas. No entanto, ONGs como a Democracy for the Arab World Now (DAWN) afirmam que os títulos israelenses também financiaram a expansão e manutenção de assentamentos ilegais na Cisjordânia e, desde 7 de outubro de 2023, a guerra em Gaza.

Este artigo foi atualizado em 06/10/2025 às 11:21 para acrescentar uma resposta do BNP Paribas e uma recusa em comentar do Citigroup e do Deutsche Bank.

1 O Goldman Sachs é o maior subscritor, com US$ 7,2 bilhões, seguido pelo Bank Of America (US$ 3.6 bilhões) e o Citigroup (US$ 2.9 bi). Vêm em seguida o Deutsche Bank (US$ 2,5 bi) e o BNP Paribas (US$ 2 bi), com o JPMorgan Chase (0,7 bi) e o Barclays (0.5 bi) atrás.

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