Trabalho doméstico e os germes da escravidão

Casos de domésticas escravizadas subiram em 32%, entre 2021 e 2023. Nordeste e Sudeste lideram índices. Perfil das vítimas não choca: 86% são mulheres; 70% negras. Crime se soma ao racismo e estupro. Conheça a história de Silvana, resgatada após 35 anos

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Por Taina Silva Santos, no AzMina

Os casos de escravização de trabalhadoras domésticas aumentaram 32% entre 2021 e 2023, de acordo com dados divulgados pelo Ministério do Trabalho e Emprego em 2024. Segundo Lívia Miraglia, Maria Carolina Oliveira e Carlos Henrique Haddad, 86% das vítimas do trabalho doméstico análogo à escravidão são mulheres e quase 70% delas são negras. O estudo que elas coordenaram, O que escondem as casas grandes no século XXI, indica que, em média, os casos duram 27 anos — um período bem mais extenso quando comparado com os outros tipos de trabalho forçado.

Outro dado apontado na publicação é que a maior parte dos resgates de trabalhadoras domésticas nessas condições aconteceu na região Nordeste do Brasil (33%); seguida pelo Sudeste, com 32%. A região Norte contabiliza 7% dos resgates e o Centro-Oeste teve 4% dos casos. 

O trabalho doméstico análogo à escravidão é um crime previsto no artigo 149 do Código Penal, que o tipifica como trabalho forçado, condições degradantes de trabalho, entre outras situações. Esses casos costumam ser um conglomerado de violação de direitos que envolvem estupro, crimes contra pessoas idosas, sequestro e cárcere privado, além do crime de racismo.

O estado brasileiro passou a documentar os casos de trabalho doméstico análogo à escravidão apenas em 2017, mas sabemos que esse é um problema de longa data no Brasil.  Esse tipo de crime é resultado da articulação entre os resquícios da escravidão e a liberdade precária que impõe uma situação de profunda vulnerabilidade para a população negra no presente. 

Histórias conhecidas

Quem nunca ouviu a história de uma menina que saiu do contexto familiar e foi morar com uma família desconhecida para ter oportunidade de estudar ou “viver em condições melhores” e nunca mais voltou? Certamente, muitas delas foram submetidas ao trabalho forçado, como foi o caso de Sônia Maria de Jesus, que foi resgatada e devolvida ao cativeiro após os escravizadores Jorge Luiz de Borba e Ana Cristina Gayotto, solicitarem à justiça o reconhecimento da paternidade e da maternidade afetiva”. 

Devido à gravidade desse caso, eu passei acompanhar com mais atenção o trabalho doméstico análogo à escravidão. A convite de pessoas comprometidas com essa questão, comecei a me envolver em ações para apoiar as lutas das trabalhadoras domésticas contra esse tipo de prática. Foi assim que eu conheci Silvana Olinda Mendes, uma mulher de 53 anos que foi escravizada em São Paulo, no ano de 1986. 

Silvana permaneceu na casa que ela foi escravizada até o ano de 2021 e, agora, está escrevendo a autobiografia dela. Fiz uma entrevista com ela para que mais pessoas pudessem conhecer as suas perspectivas e entender a gravidade do trabalho doméstico análogo à escravidão. A seguir, compartilho uma parte da nossa conversa. 

Silvana está escrevendo uma autobiografia

Taina: Silvana, me conte sobre você. Como foi a sua vida antes de ter sido submetida ao trabalho doméstico forçado?

Silvana: Eu fui criada numa creche, Baroneza de Limeira, desde pequenininha. Eu fui criada até os meus 11 anos lá. A minha tristeza na creche era porque a minha mãe não ia me visitar. Eu não cheguei a conhecer ela. De resto, pra mim foi tudo de bom. 

Depois de muito tempo, eu fui adotada por 3 famílias, só que eu não fiquei muito tempo com aquelas famílias. A freira falava que eles iam achar as minhas irmãs. Eles acharam 2 irmãs minhas: Simone e Soraia. Elas foram me visitar lá na creche. Eu era muito tímida. Na última vez que a Simone foi me visitar, ela foi para me levar pra ir na praia, na casa da patroa que ela trabalhava. Só que, quando eu fui, eles tinham uma caminhonete que era aberta atrás e eles me colocaram na parte de trás da caminhonete junto com as malas nessa viagem. Ai, eu passei o ano novo, tudo e, no dia seguinte, ela me trouxe de volta para a creche. 

E a freira falou que tinha que ficar na creche até eu completar 15 anos, só que ela (Simone) me tirou antes de eu completar 15 anos. Aí, foi o momento que ela me levou pra essa casa onde eu trabalhei 35 anos. Cheguei na casa e estava toda a família lá, né? O pai, as crianças, porque as meninas ainda eram adolescentes, tinha um bebezinho que era a Karina e a Beth. A Beth era a mais velha. Era uma família que gritava muito, então eu ficava meio assim.

Quando eu cheguei nessa casa, a Simone — minha irmã do meio — se identificou muito comigo e eu me identifiquei muito com ela. No começo era tudo diferente. Não sei se era por causa das minhas irmãs, no começo, eles me tratavam como filha. E eu fui ganhando a confiança da família. Só que aí, depois, eles começaram: “pega água”, “arruma isso”, “arruma aquilo”. Daí, eu tive que começar a cuidar da Karina que era bebezinha. Então, para cuidar da Karina era eu e a minha irmã Soraia. 

Luci era a patroa?

Silvana: Isso. Aí, depois que as minhas irmãs falaram que elas não queriam ficar lá e que elas queriam ganhar um salário, o patrão queria dar do jeito que ele achava que tinha que dar. Só que a Simone queria me levar e a Luci não deixou, porque elas não tinham um lugar fixo para eu ficar. Ai, eu tive que ficar na casa com a Luci. E a Soraia ainda não tinha ido embora. Ficou eu e a Soraia. 

Depois de um bom tempo, eu tinha 14, 15 anos, a Soraia foi embora. Com 11 anos, eles já estavam me pedindo para fazer essas coisas: arrumar as camas pra eu aprender tudo, ajudar na cozinha, ajudar a arrumar a casa… Depois que as minhas irmãs foram embora, eu acabei arcando com os serviços das minhas irmãs, que era limpar a casa, fazer comida, tudo isso aí. Entendeu?

Pra mim era tudo difícil, porque era só eu. E assim… quando eu pensei que eu tinha uma família de verdade, eu não tinha, né? Eu peguei um afeto muito grande porque eu nunca imaginei que eu era uma pessoa escravizada. Eu achava que eu tinha família. Só que, depois, eu comecei a fazer as tarefas mais pesadas. Nós não tínhamos lugar para dormir. A gente dormia com as filhas da patroa, só que a gente dormia no chão. A gente não tinha o nosso quarto.

Vocês dormiam no quarto para cuidar delas?

Silvana: Sim, também. A gente dormia lá. Depois que elas começaram a ter namorado, eu comecei a dormir na sala. Só que era muito difícil pra mim. Porque foi o momento que o meu patrão começou a abusar de mim. 

Abuso sexual?

Silvana: Isso. Ele abusou muito. Muito mesmo. Então, era assim, pra mim era muito pesado isso daí, porque ele não me deixava em paz um minuto. Ele não deixava eu sair. Nem ele, nem ela. Se eu tivesse que fazer uma compra, eu tinha que fazer com elas. Eu não podia ter contato com ninguém na rua.

E você não recebia salário, Silvana?

Silvana: Não. Não recebia nada. Assim, as roupas que eles me davam eram as roupas que não serviam mais nas filhas e eles passavam pra mim. Sapato, qualquer coisa assim, eles passavam pra mim. 

Uma pergunta, na creche você estudava?

Silvana: Estudei até a quinta série.

E como você vê as consequências dessa experiência na sua vida?

Silvana: É uma experiência que machuca a gente. Eu cuidei tanto daquela família, eu acho que dei tudo de mim. Eu cuidava da mãe, das filhas. Pra mim, foi muito difícil. Principalmente, quando eu comecei a ficar doente. No momento que eu mais precisei, nenhuma delas me deu apoio. Eu não podia ir pra lugar nenhum, eles me davam remédio e falavam que eu estava mentindo quando eu reclamava de dor. 

Eu operei a hérnia umas duas vezes e ainda estava na casa, acho que foi o momento de mais sofrimento que eu tive. O médico disse que eu precisava ficar de repouso e eu não fiquei de repouso. Cheguei do hospital, a casa estava bagunçada e eles mandaram eu limpar a casa, preparar a comida, porque era só eu lá. Ninguém fazia nada. Eu não tinha mais o contato das minhas irmãs. Eu não sabia onde elas estavam e foi o momento que me doeu mais. Porque, vamos dizer assim, o trabalho escravo vem da cor, né? E eles me colocaram apelidos que eu não sabia, mas a minha irmã falava que eles estavam me xingando de gorila… macaco. Eu não aceitava tudo isso aí. 

Depois foi vindo as crianças da casa, a minha patroa foi adoecendo e, mesmo assim, ficava num serviço que eu não descansava. Eram 24 horas trabalhando. Como eu dormia na sala, eu tinha que esperar eles saírem da sala para poder descansar, mas às 8h, eu tinha que estar de pé. Então, no trabalho escravo, eles não têm noção. Você ficar presa na casa o tempo todo, quando eu ia viajar com eles, era só para trabalhar. Quando ia pra praia, eu ia para ficar dentro do apartamento, preparar as coisas todas para eles. 

Depois que a mãe das meninas faleceu, eu achei que eu ia ficar mais tranquila, mas eu passei a ser mais maltratada ainda. 

Quando eu caí da escada, eles não me ajudaram em nada. Eu trabalhei muito e fiquei com trombose nas duas pernas, subindo e descendo escada. Eu não queria que ninguém passasse o que eu passei.

O número de casos de trabalho doméstico análogo à escravidão tem crescido consideravelmente no país. Na sua visão, o que faz com que casos como o seu ainda existam?

Silvana: Eu acho que as pessoas devem ser fortes e denunciar que estão sendo escravizadas. Só que, pela situação que o Brasil vive e pela situação que a gente vive, a gente tem medo. Eu não denunciava, porque eu não tinha nem telefone, eu não podia sair de casa. Eu estava no hospital e tinha muito medo de denunciar. Porque eu achei que eles viriam atrás de mim pra falar que eu era a errada. Eles me culparam de tudo, como se eu tivesse culpa de ter trabalhado lá e ter aceitado tudo o que passei. Eu aceitei, porque eu não tinha ninguém. Eu saí da creche e fui direto para aquela casa, eu não conhecia nada de São Paulo. 

Agora eu estou estudando, e fiz uma entrevista na escola e tinha muitas mulheres que estavam passando pela mesma situação que eu. Aí, eu falei: vocês têm que denunciar. Mas, tem muitas que são analfabetas e não sabem como fazer isso. São pessoas que sofreram bastante. Agora, estão começando a ir pra escola e ver o que é uma liberdade depois de tudo que passaram. 

Quais são as mudanças que você acredita que precisam ser feitas para que as trabalhadoras domésticas sejam respeitadas e tenham os direitos garantidos?

Silvana: Em primeiro lugar, os patrões precisam ter respeito pelas pessoas que vão limpar as casas deles. Elas precisam poder sair, poder passear. Fazer os seus deveres e ir embora. Mas, eu acho que tem gente que mora na casa em que trabalham, porque não tem lugar pra ficar e é onde os patrões acabam abusando. Eu acho que todas as empregadas domésticas têm o direito de liberdade, de estar recebendo o seu dinheirinho. 

Faz cerca de quatro anos que você saiu das condições de trabalho análogo à escravidão. Como está a sua vida hoje e quais foram os principais desafios que você enfrentou após o resgate?

Silvana: Pra mim foi muito difícil. Eu me sentia muito sozinha. Eu não sei se é porque eles mexeram tanto com a minha cabeça, mas eu achava que eu ainda tinha que ficar com aquela família. Então, eu não aceitava de jeito nenhum. Só que, agora, eu vendo o meu lado, eu me saí muito bem. Conquistar o meu espaço, conhecer o resto dos meus irmãos que eu não conhecia. A coisa boa que aconteceu comigo foi eu ter conversado com a médica no hospital e eu ter me libertado disso aí. Eu consegui uma coisa que eu achava que eu não ia conseguir, que é, aos poucos, caminhar sem a bengala. Eu estou conquistando coisas que eu nunca imaginei… Assistir peça de teatro (que eu gostei muito), ir no parque Ibirapuera. Ainda tem várias coisas que eu quero e vou conseguir. 

Você está escrevendo a sua autobiografia. O que te motivou a querer escrever a sua história e qual é a contribuição dela?

Silvana: Eu acho que a minha história pode contribuir muito. Eu sempre sonhei em escrever um livro. Eu lia muitos livros. Eu tinha os almanaques do Paulo Coelho e eles estragaram todos os meus livros. E os da Zíbia Gasparetto também. Como eu gostava muito de ler esses livros, eu tive uma inspiração e falei: um dia, eu quero ser escritora que nem eles. E esses dias, enquanto eu estava pegando uber, eu ouvia cada história, então pensei assim: se eu começar a contar a história de cada uber que eu pego, vai virar um livro maravilhoso. O meu sonho é escrever contos românticos também, porque eu sou muito romântica. 

Para denunciar qualquer caso de escravização de trabalhadoras domésticas, procure o Ministério Público do Trabalho da sua região, acesse o Sistema Ipê e acione o Disque 100

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