Da pós-verdade à compaixão cívica

De Hannah Arendt, em Verdade e política, à perseguição ao apresentador que revelou corrupção entre emissora de TV e Trump, cinco reflexões sobre manipulação e a tentativa de apagar a história. E como o exercício de democracia exige uma realidade compartilhada em comum

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1. Quando surgiu o termo pós-verdade muitas vozes se alçaram para reclamar que de mentira na política sempre houve e que não era o caso de inventar moda com um novo neologismo para designar algo já sabido. Mas, precisamente, a potência destruidora da pós-verdade consiste em apagar a distinção entre verdade e mentira. Parece que hoje ninguém pode duvidar que pós-verdade era um conceito adequado para começar a explicar uma nova época, sobre a qual ainda estamos muito confusos, mas que apresenta esta característica evidente: o uso indiscriminado que a extrema direita revigorada faz das redes sociais, e da mídia tradicional, para criar e sustentar uma realidade paralela que, hoje, seduz milhões de pessoas em todo o mundo e que, para tanto, precisa eliminar, entre outros, conceitos como verdade e mentira, e a capacidade e a honestidade de distinguir entre os dois.

2. O jornalista Matthew D’Ancona lembra em Pós-Verdade: A Nova Guerra Contra os Fatos em Tempos de Fake News (Faro, 2018) que, antes de que em 2016 os dicionários Oxford declarassem “pós-verdade” palavra do ano, o comediante e apresentador do popular programa da CBS The Late show, Stephen Colbert, havia usado outra numa entrevista, truthiness (a crença na verdade de uma proposição baseada só na intuição ou na percepção de um indivíduo ou de um grupo de pessoas), para explicar que os fatos tinham deixado de ter importância. “Antes era dessa forma, todo o mundo tinha direito a ter sua própria opinião, mas não seus próprios fatos. Isto mudou, os fatos deixaram de interessar.” Curiosamente, poucas semanas atrás ficamos sabendo que Stephen Colbert foi demitido. O apresentador havia chamado de “suborno” o pagamento de US$ 16 milhões (R$89 milhões) que a Paramount, proprietária do canal, fez em um acordo com Donald Trump para evitar um processo judicial. Através do humor, o programa de Colbert é considerado por muitos estadunidenses um dos poucos espaços televisivos que lhes restam onde ainda é possível acessar à verdade do que acontece e escutar uma voz crítica com o poder. Está sendo apagada.

3. Em 1967, Hannah Arendt publicou o ensaio “Verdade e política” na revista The New Yorker por ocasião da polêmica ligada à publicação de Eichmann em Jerusalem. Arendt queria verificar se ainda era legítimo dizer a verdade (fiat veritats, et pereat mundus) e responder à quantidade de mentiras que se disseminaram sobre aquilo que ela havia escrito, de um lado, e sobre os fatos que ela havia reportado, do outro. Nesse texto podemos ler palavras que bem poderiam ter sido escritas esta manhã:

“Fatos e opiniões, embora possam ser mantidos separados, não são antagônicos um ao outro; eles pertencem ao mesmo domínio. Fatos informam opiniões, e as opiniões, inspiradas por diferentes interesses e paixões, podem diferir amplamente e ainda serem legítimas no que respeita à sua verdade fatual. A liberdade de opinião é uma farsa, a não ser que a informação fatual seja garantida e que os próprios fatos não sejam questionados. Em outras palavras, a verdade fatual informa o pensamento político, exatamente como a verdade racional informa a especulação filosófica” (minha ênfase). Em suma, qualquer opinião baseada em fatos alternativos – outra maneira de nomear a pós-verdade – só alimenta um universo de fantasia a serviço de um segmento ideológico da população, e ajuda a corroer o mundo, que por definição é comum a todos.

4. Como explica o filósofo espanhol Fernando Broncano, a democracia não é apenas uma forma política. Também é um projeto epistêmico para a distribuição de conhecimento. O uso estratégico de mentiras não é simplesmente um instrumento político, mas um solvente da esfera pública. Tem sido corretamente descrito como niilismo político e afeta os mecanismos pelos quais uma pessoa pode formar racionalmente uma opinião. Retorna a política a um estado pré-político de violência emocional, onde só cabe vencer sem convencer, uma estratégia de terra arrasada que destrói a possibilidade da democracia deliberativa. Substitui a autoridade da razão para propor um projeto à sociedade pela conquista do poder sem nenhuma restrição moral.

5. No seu último livro publicado no Brasil, Apagando a história: como os fascistas reescrevem o passado para controlar o futuro (L&PM, 2025), o pensador norte-americano Jason Stanley começa destacando que os autoritários entenderam faz muito tempo que para mudar a cultura política de um país é preciso começar tomando o controle da educação. Numa reflexão sobre a manipulação e apagamento da história exercida por dogmáticos de todos os tipos, cujo percurso elucidativo, além dos Estados Unidos, atravessa o passado recente e o presente contínuo de países como Alemanha, Hungria, Índia, Rússia, Turquia e Israel, Stanley termina fazendo uma homenagem ao seu pai, o sociólogo Manfred Stanley, resgatando um conceito cunhado por este, a compaixão cívica, que ele define como “a atitude dos cidadãos uns em relação aos outros, como vizinhos civis, de todas as partes, que não abandonarão as pessoas a sofrimentos evitáveis”. Manfred preferia o termo “compaixão” porque achava “solidariedade” demasiado abstrato e contaminado pelo uso propagandístico e apelar à “unidade” significava induzir as pessoas à uma atitude irrealista e sentimental, uma vez que o verdadeiro desafio consiste em “levar as pessoas a entenderem as condições objetivas históricas e existentes de grupos com os quais elas não têm nenhuma experiência pessoal de vida”. Para tal fim, frisa Jason, “a democracia requer uma realidade compartilhada em comum, incluindo um entendimento comum do passado”. Apagando a história fecha com um parágrafo que dialoga bem com minha proposta anterior em Outras Palavras e que não resisto a transcrever. Stanley: “A democracia é um ideal. É um ideal segundo o qual todos os cidadãos têm uma igualdade política radicada no reconhecimento da plena humanidade de todas as pessoas. E é impossível realizar o ideal de igualdade política sem entender a quem e por que ela foi e é negada”. Da pós-verdade à compaixão cívica, é ainda possível esta viagem?

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